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quinta-feira, 11 de fevereiro de 2010

SALMOS E CANTICOS POR JOÃO PAULO II

Salmos e Cânticos das Laudes
por João Paulo II

(Audiências das quartas feiras de 28 março 2001 a 1 outubro 2003. Tradução ao português de Portugal)

Introdução

Os Salmos na Tradição da Igreja

1. Na Carta Apostólica Novo millennio ineunte manifestei o desejo de que a Igreja se distinga cada vez mais na "arte da oração", aprendendo-a sempre de novo dos lábios do Mestre divino (cf. n. 32). Este empenho deve ser vivido sobretudo na Liturgia, fonte e auge da vida eclesial. Nesta linha é impor-tante prestar uma maior atenção pastoral à promoção da Liturgia das Horas como oração de todo o povo de Deus (cf. ibid., 34). De facto, se os sacerdotes e os religiosos têm um precioso mandamento para a celebrar, ela é contudo proposta ardentemente também aos leigos.

Propunha esta finalidade, há cerca de trinta anos, o meu venerado prede-cessor Paulo VI, com a constituição Laudis canticum na qual delineava o modelo vigente desta oração, desejando que os Salmos e os Cânticos, estru-tura básica da Liturgia das Horas, fossem compreendidos "com renovado amor pelo Povo de Deus" (AAS 63 [1971], 532).

É encorajador o facto de muitos leigos, quer nas paróquias quer nos agre-gados eclesiais, terem aprendido a valorizá-la. Contudo, ela permanece uma oração que requer uma adequada formação catequética e bíblica, para a po-der apreciar profundamente.

Com esta finalidade, iniciamos hoje uma série de catequeses sobre os Sal-mos e sobre os Cânticos propostos na oração matutina das Laudes. Desta forma, desejo encorajar e ajudar todos a rezar com as mesmas palavras usa-das por Jesus e que se encontram há milénios na oração de Israel e da Igreja.

2. Podemos introduzir-nos na compreensão dos Salmos através de vários ca-minhos. O primeiro consistiria em apresentar a sua estrutura literária, os seus autores, a sua formação, os contextos em que surgiram. Depois, seria sugestiva uma leitura que realçasse o seu carácter poético, que por vezes alcança níveis altíssimos de intuição lírica e de expressão simbólica. Não menos interessante seria percorrer novamente os Salmos considerando os vários sentimentos do ânimo humano que eles manifestam: alegria, reco-nhecimento, acção de graças, amor, ternura, entusiasmo, mas também sofri-mento intenso, recriminação, pedido de ajuda e de justiça, que por vezes acabam em cólera e imprecações. Nos Salmos, o ser humano encontra-se a si próprio completamente.

A nossa leitura terá sobretudo por finalidade evidenciar o significado reli-gioso dos Salmos, mostrando como eles, mesmo tendo sido escritos há tan-tos séculos por crentes hebreus, podem ser incluídos na oração dos discípu-los de Cristo. Por isso, deixar-nos-emos ajudar pelos resultados da exegese, mas pôr-nos-emos juntos na escola da Tradição, sobretudo escutando os Pa-dres da Igreja.

3. Com efeito, com profunda penetração espiritual, eles souberam discernir e indicar a grande "chave" de leitura dos Salmos no próprio Cristo, na pleni-tude do seu mistério. Os Padres estavam convencidos disto: nos Salmos fa-la-se de Cristo. De facto, Jesus ressuscitado aplicou a si próprio os Salmos quando disse aos discípulos: "era necessário que se cumprisse tudo quanto a Meu respeito está escrito em Moisés, nos Profetas e nos Salmos" (Lc 24, 44). Os Padres acrescentam que nos Salmos se fala a Cristo ou até que é Cristo quem fala. Dizendo isto, eles não pensavam apenas na pessoa indi-vidual de Jesus, mas no Christus totus, no Cristo total, formado por Cristo chefe e pelos seus membros.

Surge assim, para o cristão, a possibilidade de ler o Saltério à luz de todo o mistério de Cristo. Precisamente esta óptica faz emergir também a sua di-mensão eclesial, que é realçada de maneira particular pelo cântico coral dos Salmos. Compreende-se desta forma como os Salmos tenham sido assumi-dos, desde os primeiros séculos, como oração pelo Povo de Deus. Se, em al-guns períodos históricos, se verificou uma tendência para preferir outras orações, foi grande mérito dos monges manter alta na Igreja a chama do Saltério. Um deles, S. Romualdo de Camaldoli, no início do segundo mi-lénio cristão, chegou a defender que como afirma o seu biógrafo Bruno de Querfurt são os Salmos o único caminho para experimentar uma oração ver-dadeiramente profunda: "Una via in psalmis" (Passio sanctorum Benedicti et Johannes ac sociorum eorundem: MPH VI, 1983, 427).

4. Com esta afirmação, à primeira vista exagerada, na realidade ele anco-rava-se na melhor tradição dos primeiros séculos cristãos, quando o Saltério se tinha tornado o livro por excelência da oração eclesial. Esta foi à opção vencedora em relação às tendências heréticas que continuamente atacavam a unidade de fé e de comunhão. A respeito disto, é interessante a maravi-lhosa leitura que Santo Atanásio escreveu a Marcelino na primeira metade do século IV quando a heresia ariana alastrava atentando contra a fé na di-vindade de Cristo. Perante os hereges que atraíam a si o povo também com cânticos e orações que eram agradáveis aos seus sentimentos religiosos, o grande Padre da Igreja dedicou-se com todas as suas energias a ensinar o Saltério transmitido pela Escritura (cf. PG 27, 12 ss.) Foi assim que ao "Pai Nosso", a oração do Senhor por antonomásia, se acrescentou a praxe, que depressa se tornou universal entre os baptizados, da oração dos Salmos.

5. Graças também à oração comunitária dos Salmos, a consciência cristã re-cordou e compreendeu que é impossível dirigir-se ao Pai que habita nos céus sem uma autêntica comunhão de vida com os irmãos e as irmãs que ha-bitam na terra. Além disso, inserindo-se vitalmente na tradição orante dos hebreus, os cristãos aprenderam a rezar cantando as magnalia Dei, isto é, as grandes maravilhas realizadas por Deus quer na criação do mundo e da hu-manidade, quer na história de Israel e da Igreja. Esta forma de oração tirada das Escrituras, não exclui decerto expressões mais livres, e elas continuarão não só a caracterizar a oração pessoal, mas também a enriquecer a própria oração litúrgica, por exemplo com hinos e cânticos. O livro do Saltério per-manece contudo a fonte ideal da oração cristã, e nele se continuará a ins-pirar a Igreja no novo milénio.
(28 de março de 2001)

A Liturgia das Horas, oração da Igreja

1. Antes de iniciar o comentário de cada Salmo e Cânticos de Laudes, com-pletemos hoje a reflexão introdutória que começamos na última catequese. E fazemo-lo a partir de um aspecto muito querido à tradição espiritual: can-tando os Salmos, o cristão experimenta uma espécie de sintonia entre o Es-pírito presente nas Escrituras e o Espírito que nele habita pela graça baptis-mal. Mais do que rezar com palavras próprias, ele faz-se eco dos "gemidos inefáveis" de que fala São Paulo (cf. Rm 8,26), com os quais o Espírito do Senhor impele os cristãos a unirem-se à invocação característica de Jesus: "Abbá, Pai!" (Rm 8,15; Gal 4,6).

Os antigos monges estavam de tal modo seguros desta verdade, que não se preocupavam em cantar os Salmos na própria língua materna, bastando-lhes a consciência de ser, de qualquer modo, "órgãos" do Espírito Santo. Esta-vam convencidos de que a sua fé permitiria aos versículos dos Salmos de-sencadear uma particular "energia" do Espírito Santo. A mesma convicção se manifesta na característica utilização dos Salmos, que foi chamada "o-ração jaculatória" da palavra latina "iaculum", isto é, dardo para indicar brevíssimas expressões salmódicas que podiam ser "lançadas", à maneira de pontas de fogo, por exemplo, contra as tentações. João Cassiano, um escri-tor que viveu entre o IV e o V séculos, recorda que alguns monges tinham descoberto a eficácia extraordinária do brevíssimo incipit do Salmo 69: "dignai-vos, ó Deus, salvar-me; Senhor, apressai-Vos em socorrer-me", que desde então se tornou como o pórtico de entrada na Liturgia das Horas (cf. Conlationes, 10, 10; CPL 512, 298 ss).

2. Ao lado da presença do Espírito Santo, uma outra dimensão importante é a da acção sacerdotal que Cristo desenvolve na oração em que associa a si a Igreja, sua esposa. A tal propósito, referindo-se propriamente à Liturgia das horas, o Concílio Vaticano II ensina: "Jesus Cristo, Sumo Sacerdote da nova e eterna Aliança, [...] une a si toda a humanidade e associa-a a este cântico divino de louvor. Continua este múnus sacerdotal por intermédio da sua Igreja, que louva o Senhor sem cessar e intercede pela salvação de todo o mundo, não só com a celebração da Eucaristia, mas de vários outros mo-dos, especialmente pela recitação do Ofício divino" (Sacrosanctum Con-cilium, 83).

A Liturgia das Horas tem, também, o carácter de oração pública, na qual a Igreja está particularmente envolvida. É esclarecedor, então, descobrir como a Igreja definiu progressivamente este seu empenho específico de oração di-vidida pelas várias fases do dia. É necessário, por isso, recuar aos primeiros tempos da comunidade apostólica, quando ainda estava em vigor uma es-treita ligação entre a oração cristã e a chamada "oração legal" assim pres-crita pela Lei moisaica que se fazia em determinadas horas do dia no Templo de Jerusalém. Pelo livro dos Actos sabemos que os Apóstolos "co-mo se tivessem uma só alma, frequentavam diariamente o Templo" (2, 46), e também que "subiam ao templo para a oração da nona hora" (3,1). E, por outra parte, sabemos também que as "orações legais" por excelência eram precisamente as da manhã e da tarde.

3. Pouco a pouco, os discípulos de Jesus descobriram alguns Salmos parti-cularmente apropriados a determinados momentos do dia, da semana ou do ano, recolhendo neles um sentido profundo em relação ao mistério cristão. É uma testemunha competente deste processo São Cipriano, que assim es-creve na primeira metade do século III: "É necessário, de facto, rezar desde o início do dia para celebrar na oração da manhã a ressurreição do Senhor. Isto corresponde ao que, uma vez, o Espírito Santo indicava nos Salmos com estas palavras: "atendei à voz do meu clamor, ó meu Rei e meu Deus. A Vós é que rezo; pela manhã, Senhor, ouvis a minha voz, mal nasce o dia exponho o meu pedido e aguardo ansiosamente" (Sal 5, 3-4). [...] Quando, depois, o sol se põe e chega o fim do dia, é necessário põr-se de novo em oração. De facto, uma vez que Cristo é o verdadeiro sol e o verdadeiro dia, no momento em que o sol e o dia do mundo chegam ao fim, pedindo através da oração que a luz volte para nós, pedimos que Cristo vol-te a trazer-nos a graça da luz eterna" (De oratione dominica, 35: PL,39, 655).

4. A tradição cristã não se limitou a perpetuar a hebraica, mas renovou al-gumas coisas que acabaram por caracterizar de modo diverso toda a expe-riência de oração vivida pelos discípulos de Jesus. De facto, para além de recitarem, de manhã e pela tarde, o Pai nosso, os cristãos escolheram com liberdade os Salmos para celebrar com eles a sua oração de cada dia. Ao longo da história, este processo sugeriu a utilização de determinados Sal-mos, particularmente significativos para alguns momentos de fé. Entre es-tes, tinha o primeiro lugar a oração de vigília, que preparava para o Dia do Senhor, o Domingo, em que se celebrava a Páscoa da Ressurreição.

Uma característica tipicamente cristã foi, posteriormente, o acrescentar no fim de cada Salmo e Cântico, da doxologia trinitária, "Glória ao Pai e ao Fi-lho e ao Espírito Santo". Assim, cada Salmo e Cântico aparecem iluminados pela plenitude de Deus.

5. A oração cristã nasce, alimenta-se e desenvolve-se à volta do aconteci-mento da fé por excelência, o Mistério pascal de Cristo. Assim, de manhã e à tarde, ao nascer e ao põr do sol, se recordava a Páscoa, a passagem do Se-nhor da morte à vida. O símbolo de Cristo "luz do mundo" aparece na lâm-pada durante a oração de Vésperas, também chamada por isso lucernário. As horas do dia lembram, por sua vez, a narração da Paixão do Senhor, e a hora tércia a descida do Espírito Santo no Pentecostes. A oração da noite, por fim, tem um carácter escatológico, evocando a vigilância recomendada por Jesus na esperança da sua volta (cf. Mc 13, 35-37).

Cadenciando deste modo a sua oração, os cristãos responderam ao manda-mento do Senhor de "orar incessantemente" (cf. Lc 18, 1; 21, 36; I Ts 5, 17); Ef 6, 18), mas sem esquecer que toda a vida deve, de qualquer modo, tornar-se oração. Orígenes escreve a este propósito: "Reza sem cessar aque-le que une a oração às obras e as obras à oração" (Sobre a oração XII, 2; PG 11, 452 C).

Este horizonte, no seu conjunto, constitui o ambiente natural da recitação dos Salmos. Se eles são assim sentidos e vividos, a doxologia trinitária que coroa cada Salmo torna-se, para cada um dos que acreditam em Cristo, um contínuo mergulhar, sobre as ondas do Espírito e em comunhão com todo o povo de Deus, no oceano de vida e de paz em que está imerso com o Baptis-mo, ou seja, no mistério do Pai, do Filho e do Espírito Santo.
(4 de abril de 2001)





Salmos

Salmo 5
A oração da manhã para obter a ajuda do Senhor

1. "Pela manhã, Senhor, ouvis a minha voz, mal nasce o dia exponho o meu pedido e aguardo ansiosamente". Com estas palavras, o Salmo 5 apre-senta-se como uma oração da manhã e por isso se situa bem na liturgia das Laudes, o cântico do fiel no início do dia. A tonalidade de fundo desta súpli-ca está marcada também por tensão e ansiedade pelos perigos e amarguras que podem acontecer inesperadamente. Mas não falta a confiança em Deus, sempre pronto a amparar o seu fiel para que não tropece no caminho da vi-da.

"Ninguém, a não ser a Igreja, possui uma confiança assim" (São Jerónimo, Tractatus LIX in psalmos, 5, 27: PL 26, 829). E Santo Agostinho, cha-mando a atenção para o título que é dado ao Salmo, título que diz na sua versão latina: Para aquela que recebe a herança, explica: "Portanto, trata-se da Igreja que recebe em herança a vida eterna por meio de nosso Senhor Je-sus Cristo, de maneira que ela possui o próprio Deus, adere a Ele, e n'Ele encontra a sua felicidade, segundo o que está escrito: "Bem-aventurados os mansos, porque possuirão a terra" (Mt 5, 5) (Enarr. in Ps., 5: CCL 38, 1, 2-3).

2. Como acontece muitas vezes nos Salmos de "súplica" dirigidos ao Senhor para que nos liberte do mal, são três as personagens que entram em cena neste Salmo. Em primeiro lugar, aparece Deus (vv. 2 e 7), o Tu por exce-lência do Salmo, ao qual se dirige confiante aquele que invoca. Perante os pesadelos de um dia cansativo e talvez rigoroso em relação à injustiça, alheio a qualquer compromisso com o mal: "Tu não és um Deus que se apraz com o mal" (v. 5).

Um longo elenco de pessoas más o malvado, o estulto, quem pratica o mal, o mentiroso, o sanguinolento, o ignorante passa diante do olhar do Senhor. Ele é o Deus santo e justo e põe-se ao lado de quem percorre os caminhos da verdade e do amor, opondo-se a quem escolhe "as veredas que conduzem ao reino das sombras" (cf. Pr 2, 18). Então, o fiel não se sente sozinho e abandonado quando enfrentar a cidade, penetrando na sociedade e no enre-do das vicissitudes quotidianas.

3. Nos versículos 8-9 da nossa oração matutina a segunda personagem, quem ora, apresenta-se a si próprio com um Eu, revelando que toda a sua pessoa se dedica a Deus e à sua "grande misericórdia". Ele tem a certeza de que as portas do templo, isto é, o lugar da comunhão e da intimidade divina, fechadas para os incrédulos, se abrem diante dele. Entra por elas a fim de sentir a segurança da protecção divina, enquanto fora o mal se alastra e cele-bra os seus aparentes e efémeros triunfos.

Da oração matutina no templo o fiel recebe a força interior para enfrentar um mundo com frequência hostil. O próprio Senhor o levará pela mão e o guiará pelas estradas da cidade, ou melhor, "aplanará para ele o caminho", como diz o Salmista com uma imagem simples e sugestiva. No original he-braico esta serena confiança funda-se em duas palavras (hésed e sedaqáh): por um lado, "misericórdia ou fidelidade" e, por outro, "justiça ou salva-ção". São as palavras típicas para celebrar a aliança que une o Senhor ao seu povo e a cada um dos fiéis.

4. Por fim, eis que se projecta no horizonte a obscura figura da terceira per-sonagem deste drama quotidiano: são os inimigos, os malvados, que já se a-pontavam nos versículos precedentes. Depois do "Tu" de Deus e do "Eu" do orante, encontra-se agora um Eles que indica uma multidão hostil, sím-bolo do mal do mundo (vv. 10-11). A sua fisionomia esboçada com base num elemento fundamental na comunicação social, a palavra. Quatro elementos boca, coração, garganta, língua exprimem a radicalidade da maldade ineren-te às suas escolhas. A sua boca está cheia de falsidade, o seu coração pla-neia constantemente traições, a sua garganta é como um sepulcro aberto, preparada para desejar apenas a morte, a sua língua é sedutora, mas "carre-gada de veneno mortal" (Tg 3, 8).

5. Depois deste severo e realístico retrato do perverso que atenta contra o justo, o Salmista invoca a condenação divina num versículo (v. 11), que a liturgia cristã omite, querendo desta forma conformar-se com a revelação neo-testamentária do amor misericordioso, que oferece também ao malvado a possibilidade da conversão.

Neste ponto, a oração do Salmista tem um final cheio de luz e de paz (vv. 12-13), depois do obscuro perfil do pecador que acabamos de delinear. Uma vaga de serenidade e de alegria envolve quem é fiel ao Senhor. O dia que agora se inicia para o crente, apesar de ser marcado por canseiras e ansie-dades, terá sempre sobre si o sol da bênção divina. O Salmista, que conhece profundamente o coração e o estilo de Deus, não tem nenhuma dúvida: "Pois Vós, Senhor, abençoais o justo; dum escudo de graças o circundais" (v. 13).
(30 de maio de 2001)

Salmo 8
A grandeza do Senhor e a dignidade do homem

1. "O homem..., no centro deste empreendimento, revela-se um gigante. Re-vela-se divino, não em si, mas no seu princípio e no seu destino. Por conse-guinte, seja honrado o homem, a sua dignidade, o seu espírito, a sua vida". Com estas palavras, em Julho de 1969 Paulo VI confiava aos astronautas a-mericanos que partiam para a lua o texto do Salmo 8, que agora aqui se ou-viu, para que entrasse nos espaços cósmicos (Insegnamenti VII [1969], págs. 493-494).

De facto, este hino é uma celebração do homem, uma criatura que, se for comparada com a grandeza do universo, é insignificante, é uma "cana" frá-gil, para usar uma imagem do grande filósofo Blaise Pascal (Pensamentos, n. 264). Contudo, é uma "cana pensante" que pode compreender a criação, porque é senhor da criação, "coroado" pelo próprio Deus (cf. Sl 8, 6). Como acontece com frequência nos hinos que exaltam o Criador, o Salmo 8 come-ça e acaba com uma solene antífona dirigida ao Senhor, cuja magnificência está espalhada no universo: "Ó Senhor, nosso Deus, como é grande o vosso nome em toda a terra" (vv. 2.10).

2. O verdadeiro e próprio conteúdo do cântico deixa imaginar uma atmos-fera nocturna, com a lua e as estrelas que se acendem no céu. A primeira es-trofe do hino (cf. vv. 2-5) é dominada por um confronto entre Deus, o ho-mem e o universo. Na cena sobressai antes de tudo o Senhor, cuja glória é cantada pelos céus, mas também pelos lábios da humanidade. O louvor que surge espontâneo nos lábios das crianças silencia e confunde as conversas arrogantes dos que negam Deus (cf. v. 3). Eles são definidos como "insen-satos, corruptos e abomináveis", porque se iludem que podem desafiar e opor-se ao Criador com a sua razão e acção (cf. Sl 13, 1).

Logo a seguir, eis que se abre um sugestivo cenário de uma noite estrelada. Face a este horizonte infinito surge a eterna pergunta: "Que é o homem?" (Sl 8, 5). A primeira e imediata resposta fala de nulidade, quer em relação à grandeza dos céus, quer sobretudo a respeito da majestade do Criador. Com efeito, o céu, diz o Salmista, é "teu", a lua e as estrelas "por ti foram fixa-das" e são "obra dos teus dedos" (cf. v. 4). É bonita esta última expressão, mais do que a mais comum "obra das tuas mãos" (v. 7): Deus criou estas realidades colossais com a facilidade e o esmero de um bordado ou um tra-balho de cinzel, com o toque leve de quem faz deslizar os seus dedos pelas cordas da arpa.

3. Por conseguinte, a primeira reacção é de assombro: como pode Deus "re-cordar-se" e "ocupar-se" desta criatura tão frágil e delicada (cf. v. 5)? Mas eis a grande surpresa: ao homem, criatura frágil, Deus concedeu uma digni-dade maravilhosa: fez com que ele fosse pouco inferior aos anjos ou, como também pode ser traduzido o original hebraico, pouco inferior a um Deus (cf. v. 6).

Entramos, desta forma, na segunda estrofe do Salmo (cf. vv. 6-10). O ho-mem é visto como o lugar-tenente real do próprio Criador. De facto, Deus "coroou-o" como um vice-rei, destinando-o a um senhorio universal: "Tudo submetestes debaixo dos seus pés" e o adjectivo "tudo" ressoa enquanto desfilam as várias criaturas (cf. vv. 7-9). Mas este domínio não é con-quistado pela capacidade do homem, realidade frágil e limitada, nem é obtido com uma vitória sobre Deus, como queria o mito grego de Prometeu. É um domínio proporcionado por Deus: às mãos frágeis e por vezes egoís-tas do homem está confiado todo o horizonte das criaturas, para que ele con-serve a sua harmonia e beleza, o use mas não abuse, faça emergir os seus segredos e desenvolva as suas potencialidades.

Como declara a Constituição pastoral Gaudium et spes do Concílio Vati-cano II, "o homem foi criado à "imagem de Deus", capaz de reconhecer e amar o seu Criador, que o constitui senhor de todas as criaturas terrenas, pa-ra as governar e usar, glorificando a Deus" (n. 12).

4. Infelizmente, o governo do homem, afirmado no Salmo 8, pode ser mal compreendido e deformado pelo homem egoísta, que muitas vezes se reve-lou mais um tirano insensato do que um governador sábio e inteligente. O Livro da Sabedoria adverte-nos contra os desvios deste género, quando es-clarece que Deus formou "o homem... para dominar sobre as criaturas..., e governar o mundo com santidade e justiça" (9, 2-3). Mesmo num contexto diferente, também Job faz apelo ao nosso Salmo para recordar sobretudo a debilidade humana, que não mereceria tanta atenção por parte de Deus: "Que é o homem, para que faças caso dele e ponhas nele a tua atenção, para que o visites todas as manhãs e o proves a cada instante?" (7, 17-18). A his-tória documenta o mal que a liberdade humana semeia no mundo com as devastações ambientais e com as injustiças sociais mais clamorosas.

Ao contrário dos seres humanos, que humilham os próprios semelhantes e a criação, Cristo apresenta-se como o homem perfeito, "coroado de glória e de honra... em virtude de ter padecido a morte, a fim de que, pela graça de Deus, provasse a morte por todos" (Heb 2, 9). Ele reina sobre o universo com aquele domínio de paz e de amor que prepara o novo mundo, os novos céus e a nova terra (cf. 2 Pd 3, 13), Aliás, a sua autoridade real como sugere o autor da Carta aos Hebreus aplicando-lhe o Salmo 8 é exercida através da entrega suprema de si na morte "em benefício de todos".

Cristo não é um soberano que se deixa servir, mas que serve e se consagra ao próximo: "Porque o Filho do Homem também não veio para ser servido, mas para servir e dar a vida em resgate de muitos" (Mc 10, 45). Desta for-ma, Ele recapitula em si "todas as coisas que há no Céu e na Terra" (Ef 1, 10). Nesta luz cristológica, o Salmo 8 revela toda a força da sua mensagem e da sua esperança, convidando-nos a exercer a nossa soberania sobre a criação, não dominando-a, mas amando-a.
(26 de junho de 2002)

Salmo 8
Grandeza do Senhor e dignidade do homem

1. Meditando o Salmo 8, um admirável hino de louvor, encaminhamo-nos para a conclusão do nosso longo itinerário no âmbito dos Salmos e dos Cân-ticos que constituem a alma orante da Liturgia das Laudes. Durante estas catequeses, a nossa reflexão deteve-se sobre 84 orações bíblicas, das quais procurámos realçar sobretudo a intensidade espiritual, mesmo sem descurar a beleza poética.

De facto, a Bíblia convida-nos a abrir o caminho do nosso dia com um cân-tico que não proclame apenas as maravilhas realizadas por Deus e a nossa resposta de fé, mas que também as celebre "com arte" (cf. Sl 46, 8), isto é, de maneira bonita, luminosa, suave e, ao mesmo tempo, forte.

Maravilhoso entre todos é o Salmo 8, no qual o homem, inserido num qua-dro nocturno, quando na imensidão do céu começam a brilhar a lua e as es-trelas (cf. v. 4), sente-se como um grão de areia no infinito e no espaço ili-mitado que estão acima dele.

2. Com efeito, no centro do Salmo 8 emerge uma dupla experiência. Por um lado, a pessoa humana sente-se quase esmagada pela grandeza da criação, "obra dos dedos" divinos. Esta curiosa expressão substitui a "obra das mãos" de Deus (cf. v. 7), quase para indicar que o Criador traçou um dese-nho ou um bordado com os astros maravilhosos, lançados na grandeza do cosmos.

Mas por outro lado, Deus inclina-se sobre o homem e coroa-o como o seu vice-rei: "De glória e de honra o coroastes" (v. 6). Melhor, a esta criatura tão frágil confia todo o universo, para que o conheça e dele tire o sustento de vida (cf. vv. 7-9).

O horizonte da soberania do homem sobre as outras criaturas é especificado como que a recordar a página de abertura do Génesis: rebanhos, gado, ani-mais do campo, aves do céu e peixes do mar são confiados ao homem para que, impondo-lhes um nome (cf. Gn 2, 19-20), descubra a sua profunda rea-lidade, a respeite e a transforme com o trabalho e a destine para fonte de beleza e de vida. O Salmo torna-nos conscientes da nossa grandeza, mas também da nossa responsabilidade em relação à criação (cf. Sb 9, 3).

3. Lendo de novo o Salmo 8, o autor da Carta aos Hebreus descobriu nele u-ma compreensão mais profunda do desígnio de Deus em relação ao homem. A vocação do homem não pode ser limitada ao actual mundo terreno; se o Salmista afirma que Deus pôs tudo sob o domínio do homem, significa que deseja que ele submeta também "o mundo futuro" (Hb 2, 5), "um reino ina-balável" (12, 28). Numa palavra, a vocação do homem é uma "vocação celeste" (3, 1). Deus quer "conduzir à glória" celeste "uma multidão de fi-lhos" (2, 10). Para que este projecto divino se realizasse, era necessário que a vida fosse traçada por um "pioneiro" (cf. ibid.), no qual a vocação do homem encontrasse o seu primeiro cumprimento perfeito. Este pioneiro é Cristo.

O autor da Carta aos Hebreus observou a respeito disto que as expressões do Salmo se aplicam a Cristo de maneira privilegiada, ou seja, mais por-menorizada do que para os outros homens. De facto, o Salmista usa o verbo "inferiorizar", dizendo a Deus: "fizeste-o por um pouco de tempo inferior aos anjos, coroaste-o de glória e de honra" (cf. Sl 8, 6; Hb 2, 6). Para os ho-mens comuns, este verbo não é apropriado; não foram "inferiorizados" em relação aos anjos, dado que nunca foram superiores a eles. Mas para Cristo, o verbo é exacto, porque, sendo Filho de Deus, ele era superior aos anjos e foi diminuído quando se fez homem, sendo depois coroado de glória com a sua ressurreição. Assim Cristo cumpriu plenamente a vocação do homem e cumpriu-a, explica o autor, "em benefício de todos" (Hb 2, 9).

4. A esta luz, Santo Agostinho comenta o Salmo e aplica-o a nós. Ele parte da frase na qual se delineia a "coroação" do homem: "De glória e de honra o coroastes" (v. 6). Contudo, naquela glória ele vê o prémio que o Senhor nos dá quando superarmos a prova da tentação.

Eis as palavras do grande Padre da Igreja na sua Exposição do Evangelho segundo Lucas: "O Senhor coroou o seu dilecto também de glória e de mag-nificência. Aquele Deus que deseja distribuir as coroas, procura as tenta-ções: por isso, quando és tentado, sê consciente de que te é preparada a co-roa. Se extingues os combates dos mártires, extinguirás também as suas co-roas; se extingues os seus suplícios, também extinguirás as suas bem-aven-turanças" (IV, 41: SAEMO 12, págs. 330-333).

Deus prepara para nós aquela "coroa de justiça" (2 Tm 4, 8) que recom-pensará a nossa fidelidade para com Ele, mantida também no tempo da tempestade, que abala o nosso coração e a nossa mente. Mas ele está, em to-dos os tempos, atento à sua criatura predilecta e desejaria que nela brilhasse sempre a "imagem" divina (cf. Gn 1, 26), para que saiba ser, no mundo, si-nal de harmonia, de luz e de paz.
(24 setembro 2003)

Salmo 14
A alegria dos que entram no templo

1. A tradição de Israel impôs ao hino de louvor agora proclamado o título de "Salmo para a todáh", isto é, para a acção de graças no cântico litúrgico, e por isso adapta-se bem à entoação das Laudes matutinas. Nos poucos ver-sículos deste alegre hino podem identificar-se três elementos significativos, de forma que tornam espiritualmente frutuoso o seu uso por parte da comu-nidade orante cristã.

2. Antes de tudo, encontra-se o apelo premente à oração, claramente descri-ta na sua dimensão litúrgica. É suficiente enumerar os verbos usados no im-perativo que marcam o Salmo e são acompanhados por indicações de ordem cultual: "Aclamai..., servi ao Senhor com alegria, vinde à sua pre-sença com cânticos de júbilo! Sabei que o Senhor é Deus... Entrai nos seus pórticos com acção de graças, entrai nos seus átrios com louvores, glorificai e bendi-zei o seu nome" (vv. 2-4). Uma série de convites não só para entrar na área sagrada do templo através dos seus pórticos e átrios (cf. Sl 14, 1; 23, 3.7-10), mas também a cantar hinos jubilosos a Deus.

É uma espécie de fio constante de louvor que nunca se interrompe, expri-mindo-se numa contínua profissão de fé e de amor. Um louvor que se eleva da terra para Deus, e que ao mesmo tempo alimenta a alma do crente.

3. Desejaria reservar outra pequena observação ao início do cântico, onde o Salmista chama toda a terra a aclamar o Senhor (cf. v. 1). Sem dúvida, o Salmo dedicará depois toda a sua atenção ao povo eleito, mas o horizonte envolvido no louvor é universal, como acontece muitas vezes no Saltério, sobretudo nos chamados "hinos ao Senhor e Rei" (cf. Sl 95-98). O mundo e a história não estão nas mãos do destino, da confusão, de uma necessidade cega. Pelo contrário, são governados por um Deus que é ao mesmo tempo misterioso, mas que também deseja que a humanidade viva, de modo está-vel, relações justas e autênticas. Ele "fixou o orbe, não vacilará, governa os povos com equidade... governará a terra com justiça, e os povos na Sua fi-delidade" (Sl 95, 10.13).

4. Por conseguinte, estamos todos nas mãos de Deus, Senhor e Rei, e todos o celebramos, confiantes de que Ele não nos deixará cair das Sua mãos de Criador e de Pai. A esta luz, pode apreciar-se melhor o terceiro elemento significativo do Salmo. No centro do louvor que o Salmista coloca nos nossos lábios, encontra-se de facto uma espécie de profissão de fé, expressa mediante uma série de atributos que definem a realidade íntima de Deus. Este credo fundamental contém as seguintes afirmações: o Senhor é Deus, o Senhor é o nosso criador, nós somos o seu povo, o Senhor é bom, o seu amor é eterno, a sua fidelidade não tem fim (cf. vv. 3-5).

5. Tem-se, em primeiro lugar, uma renovada confissão de fé no único Deus, como nos é pedido pelo primeiro mandamento do Decálogo; "Eu sou o Se-nhor, teu Deus... não terás outro Deus além de Mim" (Êx 20, 2.3). E como se repete muitas vezes na Bíblia: "Reconhece, agora, e grava no teu cora-ção, que só o Senhor é Deus e que não há outro" (Dt 4, 39). Depois, é pro-clamada a fé em Deus criador, fonte do ser e da vida. Segue-se a afirmação, expressa através da chamada "fórmula da aliança", da certeza que Israel tem da eleição divina: "pertencemos-Lhe, somos o Seu povo e as ovelhas do Seu rebanho" (v. 3). É uma certeza que os fiéis do novo Povo de Deus fazem sua, na consciência de constituírem a grei que o Pastor supremo das almas conduz aos prados eternos do céu (cf. 1 Pd 2, 25).

6. Depois da proclamação do Deus uno, criador e fonte da aliança, o retrato do Senhor cantado pelo nosso Salmo continua com uma meditação de três qualidades divinas, muitas vezes exaltadas no Saltério: a bondade, o amor misericordioso (hésed), e a fidelidade. São as três virtudes que caracterizam a aliança de Deus com o seu povo; elas exprimem um vínculo que jamais será violado, dentro do fluxo das gerações e apesar do rio lamacento dos pe-cados, das rebeliões e das infidelidades humanas. Com confiança serena no amor divino que nunca virá a faltar, o povo de Deus encaminha-se na histó-ria com as suas tentações e debilidades quotidianas.

E esta confiança far-se-á cântico, ao qual por vezes as palavras já não bas-tam, como observa Santo Agostinho: "Quanto mais aumentar a caridade, tanto mais te darás conta do que dizias e não dizias. Com efeito, antes de sa-borear determinadas coisas, pensavas que podias utilizar palavras para indi-car Deus; ao contrário, quando começaste a saboreá-lo, apercebeste-te de que não és capaz de explicar adequadamente aquilo que sentes. Mas se te aperceberes de que não sabes exprimir com as palavras o que sentes, deve-rás, por isso, permanecer calado e não louvar?... Não, certamente. Não serás tão ingrato. A Ele devemos a honra, o respeito, o maior louvor... Ouve o Salmo: "Terra inteira, louva o Senhor!". Compreenderás a alegria de toda a terra, se tu mesmo te alegras no Senhor" (Exposições sobre os Salmos III/1, Roma 1993, pág. 459).
(7 de novembro de 2001)

Salmo 18
Hino a Deus criador

1. O sol, com o seu progressivo resplandecer no céu, com o esplendor da sua luz, com o calor benéfico dos seus raios, conquistou a humanidade des-de as suas origens. Os seres humanos manifestaram de muitas formas a sua gratidão por esta fonte de vida e de bem-estar com um entusiasmo que, com frequência, se eleva alcançando o cume da autêntica poesia. O maravilhoso Salmo 18, do qual foi proclamada a primeira parte, não é apenas uma ora-ção em forma de hino com uma intensidade extraordinária; ele é também um cântico poético elevado ao sol e à sua irradiação sobre a terra. Nisto o salmista insere-se na longa série dos cantores do antigo Próximo Oriente, que exaltam o astro do dia que brilha nos céus e que domina longamente nas suas regiões com o seu calor ardente. Basta pensar no célebre hino a Anton, composto pelo Faraó Akhnaton no séc. XIV a.C., dedicado ao disco solar considerado uma divindade.

Mas para o homem da Bíblia há uma diferença radical em relação a estes hi-nos solares: o sol não é um Deus, mas uma criatura ao serviço do único Deus e criador. É suficiente recordar as palavras do Génesis: "Deus disse: Haja luzeiros no firmamento dos céus para diferenciarem o dia da noite e servirem de sinais, determinando as estações, os dias e os anos... Deus fez dois grandes luzeiros: o maior para presidir ao dia, e o menor para presidir à noite... E Deus viu que isto era bom" (1, 14.16.18).

2. Antes de percorrer os versículos do Salmo escolhido pela Liturgia, lança-mos um olhar ao seu conjunto. O Salmo 18 é parecido com um díptico. Na primeira parte (vv. 2-7) a que agora se tornou a nossa oração encontramos um hino ao Criador, cuja misteriosa grandeza se manifesta no sol e na lua. Ao contrário, na segunda parte do Salmo (vv. 8-15), encontramos um hino sapiencial à Torah, ou seja, à Lei de Deus.

As duas partes estão ligadas por uma orientação comum: Deus esclarece o universo com o brilho do sol e ilumina a humanidade com o esplendor da sua Palavra contida na Revelação bíblica.

Trata-se quase de um sol duplo: o primeiro é uma epifania cósmica do Cria-dor, o segundo é uma manifestação histórica e gratuita de Deus Salvador. Não é por acaso que a Torah, a Palavra divina, é descrita com características "solares": "Os Seus mandamentos são luminosos, deleitam o coração" (cf. v. 9).

3. Mas, por agora, dirijamo-nos à primeira parte do Salmo. Ela inicia-se com uma maravilhosa personificação dos céus, que são para o Autor sa-grado testemunhos eloquentes da obra criadora de Deus (vv. 2-5). De facto, eles "narram", "anunciam", as maravilhas da obra divina (cf. v. 2).

Também o dia e a noite são representados como mensageiros que trans-mitem a grande notícia da criação. Trata-se de um testemunho silencioso, que contudo se faz ouvir com vigor, como uma voz que percorre todo o universo.

Com o olhar interior da alma, com a intuição religiosa que não se deixa dis-trair pela superficialidade, o homem e a mulher podem descobrir que o mundo não é mudo, mas fala do Criador. Como diz o antigo sábio, "pela grandeza e beleza das criaturas pode-se, por analogia, chegar ao conheci-mento do seu Autor" (Sb 13, 5). Também São Paulo recorda aos Romanos que "desde a criação do mundo, as Suas (de Deus) perfeições invisíveis,... tornam-se visíveis quando as Suas obras são consideradas pela inteligência" (Rm 1, 20).

4. Depois, o hino começa a falar do sol. O globo luminoso é descrito pelo poeta inspirado como um herói guerreiro que sai do quarto nupcial onde passou a noite, isto é, sai do seio das trevas e inicia a sua corrida incansável no céu (vv. 6-7). É semelhante a um atleta que nunca pára nem se cansa, enquanto todo o nosso planeta está envolvido pelo seu calor irresistível.

Por conseguinte, o sol é comparado a um esposo, a um herói, a um campeão que, por ordem divina, todos os dias deve realizar uma tarefa, uma con-quista e uma corrida nos espaços siderais. E eis que o Salmista indica agora o sol irradiante no céu, enquanto a terra inteira está envolvida pelo seu calor, o ar é imóvel, nenhum ângulo do horizonte está privado da sua luz.
5. A imagem solar do Salmo é retomada pela liturgia pascal cristã para des-crever o êxodo triunfador de Cristo da escuridão do sepulcro, e a sua entra-da na plenitude da vida nova da ressurreição. A liturgia bizantina canta nas Matinas do Sábado Santo: "Assim como o sol surge depois da noite todo radiante na sua luminosidade renovada, assim também Vós, Verbo, resplan-decereis com um brilho renovado quando, depois da morte, deixardes o vosso leito nupcial". Uma Estrofe (a primeira), a das Matinas de Páscoa relaciona a revelação cósmica com o acontecimento pascal de Cristo: "O céu rejubile e exulte com ele também a terra, porque todo o universo, o visível e o invisível, participa desta festa: Cristo, nossa alegria perene, res-suscitou". E outra Estrofe (a terceira) acrescenta: "Hoje todo o universo, céu, terra e abismo, está repleto de luz e toda a criação já canta a ressu-rreição de Cristo, nossa força e nossa alegria". Por fim, outra (a quarta) con-clui: "Cristo, nossa Páscoa, levantou-se do túmulo como um sol de justiça irradiando sobre todos nós o esplendor da sua caridade".

A liturgia romana não é explícita como a oriental, ao comparar Cristo com o sol. Mas descreve as repercussões cósmicas da sua ressurreição, quando abre o seu cântico de Louvor na manhã de Páscoa com o famoso hino: "Au-rora lucis rutilat, caelum resultat laudibus, mundos exultans iubilat, gemens infernus ululat" "A aurora resplandece de luz, o céu exulta de cânticos, o mundo rejubila dançando, o inferno geme com gritos".

6. Contudo, a interpretação cristã do Salmo não elimina a sua mensagem de base, que é um convite a descobrir a palavra divina que se encontra na cria-ção. Sem dúvida, como será dito na segunda parte do Salmo, há outra Palavra, mais nobre, mais preciosa do que a própria luz, a da Revelação bi-blica.

Contudo, para todos os que estão atentos na escuta e não têm os olhos ve-lados, a criação constitui como que uma primeira revelação, que tem uma linguagem própria e eloquente: ela é quase outro livro sagrado, cujas letras são representadas pela multidão de criaturas presentes no universo. São João Crisóstomo afirma: "O silêncio dos céus é uma voz mais sonora do que a de uma trombeta: esta voz brada aos nossos olhos e não aos nossos ouvi-dos a grandeza de quem os fez" (PG 49, 105). E Santo Atanásio: "O fir-mamento, através da sua magnificência, da sua beleza, da sua ordem, é um pregador prestigioso do seu artífice, cuja eloquência enche o universo" (PG 27, 124)
(30 de janeiro de 2002)

Salmo 23
O Senhor entra no seu templo

1. O antigo cântico do Povo de Deus, que agora acabamos de ouvir, ressoa-va no fundo do templo de Jerusalém. Para poder captar com clareza a ideia-base que atravessa este hino, é necessário ter bem presentes três dos seus pressupostos fundamentais. O primeiro diz respeito à verdade da criação: Deus criou o mundo e é o seu Senhor. O segundo refere-se ao juízo ao qual Ele submete as suas criaturas: devemos apresentar-nos a Ele para sermos in-terrogados sobre o que realizamos. O terceiro é o mistério da vinda de Deus: Ele vem ao mundo e à história, e deseja ter livre acesso, para estabelecer com os homens uma relação de profunda comunhão. Um comentador mo-derno escreveu: "Estas são três formas elementares da experiência de Deus e da relação com Deus; nós vivemos por obra de Deus, perante Deus e po-demos viver com Deus" (G. Ebeling, Sobre os Salmos, Bréscia 1973, pág. 97).

2. A estes três pressupostos correspondem as três partes do Salmo 23, que agora procuraremos aprofundar, considerando-as como três partes de um tríptico poético e orante. A primeira é uma breve aclamação ao Criador, ao qual pertence a terra com os seus habitantes (vv. 1-2). É uma espécie de profissão de fé no Senhor da criação e da história. A criação, segundo a an-tiga visão do mundo, é concebida como uma obra arquitectónica: Deus lan-ça as bases da terra sobre o mar, símbolo das águas desordenadas e des-truidoras, sinal do limite das criaturas, condicionadas pelo nada e pelo mal. A realidade está suspensa sobre este abismo e é a obra criadora e providen-cial de Deus que a conserva no ser e na vida.

3. Do horizonte cósmico a perspectiva do Salmista limita-se ao microcosmo de Sião, "o monte do Senhor". Estamos agora na segunda parte do Salmo (vv. 3-6). Estamos diante do templo de Jerusalém. A procissão dos fiéis di-rige aos guardas da porta santa uma pergunta inicial: "Quem será digno de subir ao monte do Senhor? Quem poderá permanecer em seu lugar santo?". Os sacerdotes como se verifica também em alguns textos bíblicos chamados pelos estudiosos "liturgia de entrada" (cf. Sl 14; Is 33, 14-16; Mq 6, 6-8) respondem fazendo o elenco das condições para poder ter acesso à comu-nhão com o Senhor no culto. Não se trata de normas meramente rituais e ex-teriores que devem ser cumpridas, mas de empenhos morais e existenciais a serem praticados. É quase como um exame de consciência ou um acto peni-tencial que precede a celebração litúrgica.

4. São três as exigências apresentadas pelos sacerdotes. Em primeiro lugar é preciso ter "mãos inocentes e um coração puro". "Mãos" e "coração" recor-dam a acção e a intenção, isto é, todo o ser do homem que deve estar radi-calmente orientado para Deus e para a sua lei. A segunda exigência é a de "não dizer mentiras" que, na linguagem bíblica, não remete apenas para a sinceridade mas sobretudo para a luta contra a idolatria, sendo os ídolos fal-sos deuses, ou seja, "mentira". Desta forma, recorda-se o primeiro manda-mento do Decálogo, a pureza da religião e do culto. Por fim, eis a terceira condição que diz respeito às relações com o próximo: "não jurar com perfí-dia contra o próximo". A palavra, como sabemos, numa civilização oral co-mo era a do antigo Israel, não podia ser instrumento de engano, mas ao con-trário, símbolo de relações sociais inspiradas na justiça e na rectidão.

5. Desta forma, chegamos à terceira parte que descreve indirectamente a en-trada jubilosa dos fiéis no templo para se encontrarem com o Senhor (vv. 7-10). Num sugestivo jogo de apelos, perguntas e respostas, apresenta-se a re-velação progressiva de Deus, marcada por três dos seus títulos solenes: "Rei da glória, Senhor forte e poderoso, Senhor dos exércitos". As portas do tem-plo de Sião são personificadas e convidadas a levantar os seus dintéis para deixar entrar o Senhor que toma posse da sua casa.

O cenário triunfal, descrito pelo Salmo nesta terceira parte poética foi uti-lizada pela liturgia cristã do Oriente e do Ocidente para recordar tanto a vi-toriosa descida de Cristo ao inferno, da qual fala a Primeira Carta de Pedro (cf. 3, 19), como a gloriosa ascensão ao céu do Senhor ressuscitado (cf. Act 1, 9-10). O mesmo Salmo ainda é cantado em coros alternados pela liturgia bizantina na noite pascal, da mesma forma como era utilizado pela liturgia romana, no final da procissão dos ramos, no segundo Domingo da Paixão. A solene liturgia da abertura da Porta Santa, durante a inauguração do Ano Jubilar, permitiu-nos reviver com intensa comoção interior os mesmos sen-timentos vividos pelo Salmista quando atravessou a porta do antigo Templo de Sião.

6. O último título, "Senhor dos exércitos", não tem como poderia parecer à primeira vista um carácter marcial, mesmo se não exclui uma referência às tropas de Israel. Ao contrário, está dotado de um valor cósmico: o Senhor, que agora está para vir ao encontro da humanidade dentro do espaço limita-do do santuário de Sião, é o Criador que tem por exército todas as estrelas do céu, ou seja, todas as criaturas do universo que lhe obedecem. No livro do profeta Baruc lê-se: "As estrelas brilham nos seus postos e alegram-se. Ele chama-as e elas respondem: "Aqui estamos". E, jubilosas, dão luz ao Seu criador" (Br 3, 34-35). O Deus infinito, omnipotente e eterno adapta-se às criaturas humanas, aproxima-se delas para as encontrar, ouvir e entrar em comunhão com elas. E a liturgia é a expressão deste encontro na fé, no diá-logo e no amor.
(20 de junho de 2001)

Salmo 28
O Senhor proclama solenemente a sua palavra

1. Alguns estudiosos consideram o Salmo 28, que acabamos de recitar, co-mo um dos textos mais antigos do Saltério. É poderosa a imagem que o sus-tém no seu desenvolvimento poético e orante: de facto, estamos perante o desencadear progressivo de uma tempestade. Ela é marcada no original he-braico por uma palavras, qol, que significa ao mesmo tempo "voz" e "tro-vão". Por isso alguns comentadores deram ao nosso texto o título de "Salmo dos sete trovões", devido ao número de vezes que essa palavra nele é re-petida. Pode dizer-se, com efeito, que o Salmista concebe o trovão como um símbolo da voz divina que, com o seu mistério transcendente e inatingível, irrompe na realidade criada chegando ao ponto de a perturbar e amedrontar, mas que no seu significado mais profundo é palavra de paz e de harmonia. Aqui o pensamento vai para o capítulo 12 do IV Evangelho, onde a voz que, do céu, responde a Jesus, é entendida pela multidão como um trovão (cf. Jo 12, 28-29).

Ao propor o Salmo 28 para a oração das Laudes, a Liturgia das Horas con-vida-nos a assumir uma atitude de profunda e confiante adoração da Majes-tade divina.

2. São dois os momentos e os lugares aos quais o cantor bíblico nos conduz. No centro (cf. vv. 3-9) encontra-se a representação da tempestade que se de-sencadeia a partir da "extensão das águas" do Mediterrâneo. As águas ma-rinhas, aos olhos do homem da Bíblia, encarnam a desordem que atenta contra a beleza e o esplendor da criação, chegando a corrompê-la, a destruí-la e a abatê-la. Por conseguinte, temos na observação da tempestade que se enfurece, a descoberta do poder imenso de Deus. Quem reza vê o furacão que se desloca para norte e cai na terra firme. Os cedros altíssimos do monte Líbano e do monte Sirion, chamado outras vezes Hermon, são arrancados pelos raios e parecem saltar sob os trovões como animais amedrontados. Os estrondos aproximam-se, atravessam toda a Terra Santa e descem para sul, nas estepes desérticas de Kades.

3. Após esta visão de grande movimento e tensão somos convidados a con-templar, por contraste, outro cenário que é representado no início e no final do Salmo (cf. vv. 1-2.9-11). Ao assombro e ao medo contrapõe-se agora a glorificação adorante de Deus no templo de Sião.

Há quase um canal de comunicação que une o santuário de Jerusalém com o santuário celeste: nestes dois âmbitos sagrados há paz e eleva-se o louvor à glória divina. O barulho ensurdecedor dos trovões é substituído pela harmo-nia do cântico litúrgico, o terror pela certeza da protecção divina. Agora Deus aparece "dominante sobre a tempestade" como "rei para sempre" (v. 10), isto é, como o Senhor e o Soberano de toda a criação.

4. Diante destes dois quadros antitéticos o orante é convidado a realizar uma dupla experiência. Em primeiro lugar, deve descobrir que o mistério de Deus, expresso no símbolo da tempestade, não pode ser apreendido e domi-nado pelo homem. Como canta o profeta Isaías, o Senhor, semelhante ao es-plendor ou à tempestade, irrompe na história semeando pânico em relação aos perversos e aos opressores. Sob a intervenção do seu juízo, os adver-sários soberbos são destronados como árvores atingidas por um furacão ou como cedros despedaçados pelas flechas divinas (cf. Is 14, 7-8).

Nesta luz é evidenciado aquilo que o pensador moderno (Rudolph Otto) qualificou como o tremendum de Deus, ou seja, a sua transcendência ine-fável e a sua presença de juíz justo na história da humanidade. Ela ilude-se em vão ao pensar que pode opor-se ao seu poder soberano. Também Maria exaltará no Magnificat este aspecto do agir de Deus: "Exerceu a força com o Seu braço e aniquilou os que se elevavam no seu próprio conceito. Der-rubou os poderosos dos seus tronos e exaltou os humildes" (Lc 1, 51-52).

5. Mas o Salmo apresenta-nos outro aspecto do rosto de Deus, o que se des-cobre na intimidade da oração e na celebração da liturgia. Segundo o pensa-dor mencionado, é o fascinosum de Deus, ou seja, o fascínio que provém da sua graça, o mistério do amor que se propaga no fiel, a segurança serena da bênção reservada para o justo. Até perante a confusão do mal, das tempes-tades da história, e da própria cólera da justiça divina, o orante se sente em paz, envolvido pelo manto de protecção que a Providência oferece a quem louva a Deus e segue os seus caminhos. Através da oração chega-se à cons-ciência de que o verdadeiro desejo do Senhor consiste em conceder a paz.

No templo é restabelecida a nossa apreensão e cancelado o nosso terror; nós participamos na liturgia celeste com todos "os filhos de Deus", anjos e san-tos. E sobre a tempestade, semelhante ao dilúvio destruidor da maldade hu-mana, curva-se então o arco-íris da bênção divina, que recorda "a aliança eterna concluída entre Deus e todos os seres vivos de toda a espécie que há na terra" (Gn 9, 16).

É esta, principalmente, a mensagem que se realça na leitura "cristã" do Sal-mo. Se os sete "trovões" do nosso Salmo representam a voz de Deus no uni-verso, a expressão mais nobre desta voz é aquela com que o Pai, na teofania do Baptismo de Jesus, revelou a Sua identidade mais profunda como "Filho muito amado" (Mc 1, 11 e par.). São Basílio escreve: "Talvez, e de maneira mais mística, "a voz do Senhor sobre as águas" ecoou quando veio uma voz do alto ao baptismo de Jesus e disse: Este é o Meu Filho muito amado. En-tão, de facto, o Senhor pairava sobre muitas águas, santificando-as com o baptismo. O Deus da glória ecoou do alto com a voz poderosa do seu teste-munho... E podes também entender como "trovão" aquela mudança que, de-pois do baptismo, se realiza através da grande "voz" do Evangelho" (Homi-lias sobre os Salmos: PG 30, 359).
(13 de junho de 2001)

Salmo 32

Hino à providência de Deus

1. Distribuído em 22 versículos, tantos quanto é o número de letras do alfa-beto hebraico, o Salmo 32 é um cântico de louvor ao Senhor do universo e da história. Um frémito de alegria invade-o desde as primeiras expressões: "Exultai, ó justos, no Senhor, aos rectos de coração pertence o louvor. Lou-vai o Senhor com a cítara: cantai-lhe salmos com a harpa decacorde. Can-tai-lhe um cântico novo, tocai os instrumentos com arte, entre orações" (vv. 1-3). Por conseguinte, esta aclamação (tern'ah) é acompanhada pela música e é expressão de uma voz interior de fé e de esperança, de felicidade e de confiança. O cântico é "novo", não só porque renova a certeza da pre-sença divina no âmbito da criação e das vicissitudes humanas, mas também por-que antecipa o louvor perfeito que se entoará no dia da salvação definitiva, quando o Reino de Deus chegar à sua actuação gloriosa.

É precisamente para a realização final em Cristo que olha São Basílio, o qual explica este trecho da seguinte forma: "Habitualmente, chama-se "no-vo" o que é inusitado ou o que acaba de nascer. Se pensas no modo maravi-lhoso e superior a qualquer imaginação da encarnação do Senhor, cantas necessariamente um cântico novo e extraordinário. E se percorres com a mente a regeneração e a renovação de toda a humanidade, envelhecida pelo pecado, e anuncias os mistérios da ressurreição, também cantas um cântico novo e extraordinário" (Homilia sobre o Salmo 32, 2: PG 29, 327). Em síntese, segundo São Basílio o convite do salmista que diz: "Cantai-lhe um cântico novo", para os crentes em Cristo significa: "Honrai a Deus, não se-gundo o antigo costume da "letra", mas na novidade do "espírito". De facto, quem não compreende a Lei sob o aspecto exterior, e todavia reconhece o seu "espírito", canta um "cântico novo"" (ibid.).

2. No seu corpo central, o hino divide-se em três partes que se compõem co-mo uma trilogia de louvor. Na primeira (cf. vv. 6-9) celebra-se a palavra criadora de Deus. A admirável arquitectura do universo, semelhante a um templo cósmico, desabrochou e cresceu não através de uma luta entre deu-ses, como sugeriam algumas cosmogonias do antigo Próximo Oriente, mas apenas com base na eficaz palavra divina. Precisamente como ensina a primeira página do Génesis (cf. cap. 1): "Deus disse... e tudo foi feito". De facto, o Salmista repete: "Porque Ele falou e as coisas existiram. Ele man-dou e as coisas subsistiram" (v. 9).

O orante reserva um relevo especial ao controle das águas do mar porque, na Bíblia, elas são o sinal do caos e do mal. Apesar dos seus limites, o mun-do é contudo mantido no seu ser pelo Criador que, como recorda o livro de Job, ordena que o mar se detenha no litoral: "Chegarás até aqui, mas não irás mais além; aqui se quebrará o orgulho das tuas ondas" (38, 11).

3. O Senhor também é o soberano da história humana, como está escrito na segunda parte do Salmo 32, nos versículos 10-15. Com uma vigorosa antíte-se, opõem-se os projectos dos poderes terrenos e o desígnio admirável que Deus está a traçar na história. Quando querem ser alternativos, os progra-mas humanos introduzem a injustiça, o mal e a violência, pondo-se contra o projecto divino de justiça e salvação. E apesar dos êxitos transitórios ou a-parentes, limitam-se a simples conjuras, que se destinam a dissolver-se e a falir. No livro bíblico dos Provérbios declara-se sintéticamente: "Há muitos projectos no coração do homem, mas é a vontade do Senhor que prevalece" (19, 21). De maneira análoga, o Salmista recorda-nos que, do céu, sua habi-tação transcendente, Deus acompanha todos os itinerários da humanidade, mesmo os que são insensatos e absurdos, e intui todos os segredos do cora-ção humano.

"Onde quer que tu vás, tudo o que tu realizas, quer nas trevas, quer à luz do dia, o olhar de Deus observa-te", comenta São Basílio (Homilia sobre o Sal-mo 32, 8: PG 29, 343). Feliz será o povo que, acolhendo a revelação divina, seguir as suas indicações de vida, percorrendo as suas veredas nos caminhos da história. No final só permanece uma coisa: "Somente o plano do Senhor subsiste para sempre, os desígnios do Seu coração, por todas as idades" (v. 11).

4. A terceira e última parte do Salmo (cf. vv. 16-22) retoma de dois pontos de vistas novos o tema do senhorio único de Deus sobre as vicissitudes hu-manas. Em primeiro lugar, por parte dos poderosos, convidados a não se iludirem no que se refere à força militar dos exércitos e das cavalarias. De-pois, por parte dos fiéis, muitas vezes oprimidos, famintos e à beira da mor-te: são convidados a ter esperança no Senhor que não os deixará precipitar no abismo da destruição.

Revela-se, desta forma, também a função "catequética" deste Salmo. Ele transforma-se num apelo à fé num Deus que não é indiferente à arrogância dos poderosos e que está próximo das debilidades da humanidade, elevan-do-a e apoiando-a se tem esperança, se n'Ele confia, se a Ele eleva a súplica e o louvor.

"A humildade dos que servem a Deus explica ainda São Basílio mostra que eles esperam na sua misericórdia. De facto, quem não tem confiança nos seus grandes empreendimentos, nem espera ser justificado pelas suas obras, tem como única esperança de salvação a misericórdia de Deus" (Homilia sobre o Salmo 32, 10: PG 29, 347).

5. O Salmo termina com uma antífona que foi inserida no final do conhe-cido hino Te Deum: "Venha sobre nós, Senhor, o Vosso amor, pois espe-ramos em Vós" (v. 22). Graça divina e esperança humana encontram-se e abraçam-se. Aliás, a fidelidade amorosa de Deus (segundo o valor da pala-vra hebraica original usada aqui, hésed), semelhante a um manto, envolve-nos, aquece-nos e protege-nos, oferecendo-nos serenidade e dando um fun-damento certo à nossa fé e esperança.
(8 de agosto de 2001)

Salmo 35
Malícia do pecador, bondade do Senhor

1. Cada vez que tem início um dia de trabalho e de relacionamentos huma-nos, duas são as atitudes fundamentais que cada homem pode assumir: es-colher o bem, ou então ceder ao mal. O Salmo 35, que acabamos de ouvir, apresenta precisamente estes dois perfis antitéticos. Por um lado, há quem desde o seu "leito", de onde está para se levantar, medita projectos iníquos; por outro, ao contrário, há quem procura a luz de Deus, "fonte da vida" (v. 10). O abismo da malícia do ímpio opõe-se ao abismo da bondade de Deus, nascente viva que sacia e luz que ilumina o fiel.

Por isso, dois são os tipos de homem descritos pela oração salmista, que a-caba de ser proclamada, e que a Liturgia das Horas nos propõe para as Lau-des de quarta-feira da primeira Semana.

2. O primeiro retrato que o Salmista nos apresenta é o do pecador (cf. vv. 2-5). No seu interior como diz o original hebraico encontra-se o "oráculo do pecado" (cf. v. 2). A expressão é forte. Faz pensar numa palavra satânica que, em contraste com a palavra divina, ressoe no coração e na linguagem do ímpio.

Nele o mal parece conatural com a sua íntima realidade, de maneira a mani-festar-se em palavras e actos (cf. vv. 3-4). Ele passa os seus dias a escolher "maus caminhos", desde muito cedo, quando ainda está "no seu leito" (v. 5), até à noite, quando está prestes a adormecer. Esta escolha constante do pe-cador deriva de uma opção que empenha toda a sua existência e gera a mor-te.

3. Mas o Salmista está totalmente orientado para o outro retrato em que ele deseja reflectir-se: o do homem que procura o rosto de Deus (cf. vv. 6-13). Ele eleva um verdadeiro e próprio cântico ao amor divino (cf. vv. 6-11) al qual faz seguir, no final, uma suplicante invocação para ser libertado do fas-cínio obscuro do mal e imbuído para sempre pela luz da graça.

Neste cântico desenvolve-se uma verdadeira e própria ladainha de termos, que celebram os lineamentos do Deus de amor: graça, fidelidade, justiça, juízo, salvação, sobra protectora, abundância, delícia, vida e luz. Salientem-se, em particular, quatro destes traços divinos, expressos com vocábulos he-braicos que têm um valor mais intenso do que é demonstrado pela tradução nas línguas modernas.

4. Em primeiro lugar há o termo hésed, "graça", que é fidelidade e, ao mes-mo tempo, amor, lealdade e ternura. Constitui um dos termos fundamentais para exaltar a aliança entre o Senhor e o seu povo. E é significativo que ele ressoe por 127 nos Salmos, mais de metade de todas as vezes que esta pala-vra aparece no restante do Antigo Testamento. Além disso, há o termo 'emunáh, que deriva da mesma raiz do amen, a palavra da fé, e significa es-tabilidade, segurança e fidelidade inabalável. A seguir, vem a palavra se-daqáh, a "justiça", que tem um significado sobretudo salvífico: é a atitude santa e providencial de Deus que, através da sua intervenção na história, liberta do mal e da injustiça os seus fiéis. Enfim, eis a mishpát, o "juízo" com que Deus governa as suas criaturas, debruçando-se sobre os pobres e os oprimidos, e derrubando os arrogantes e os prepotentes.

Quatro palavras teológicas, que o orante repete na sua profissão de fé, en-quanto se encaminha pelas sendas do mundo, convicto de ter ao seu lado o Deus amoroso, fiel, justo e salvador.

5. Aos vários títulos com que exalta a Deus, o Salmista acrescenta duas imagens sugestivas. Por um lado, a abundância de alimentos: ela faz pen-sar, em primeiro lugar, no banquete sagrado, que se celebrava no templo de Sião, com a carne das vítimas sacrificais. Há também a fonte e a torrente, cujas águas saciam não apenas a garganta sedenta, mas também a alma (cf. vv. 9-10; Sl 41, 2-3; 62, 2-6). O Senhor sacia e dessedenta o orante, tor-nando-o partícipe da sua vida plena e imortal.

A outra imagem é representada pelo símbolo da luz: "Na vossa Luz é que vemos a luz" (v. 10).

Trata-se de uma luminosidade que se irradia como que "a cântaros" e é um sinal da revelação de Deus ao seu fiel. Assim aconteceu com Moisés no Sinai (cf. Êx 34, 29-30) e assim acontece com o cristão, na medida em que, "com o rosto descoberto, com o rosto reflectindo a glória do Senhor, como um espelho, é transformado nessa mesma imagem" (cf. 2 Cor 3, 18).

Na linguagem dos Salmos, "ver a luz do rosto de Deus" significa concreta-mente encontrar o Senhor no templo, onde se celebra a oração litúrgica e se escuta a palavra divina. Também o cristão vive esta experiência, quando celebra os louvores do Senhor na aurora do dia, antes de se encaminhar pelas sendas nem sempre lineares da vida quotidiana.
(22 de agosto de 2001)

Salmo 41
Anseio pelo Senhor e pelo seu Templo

Como a corça suspira / pelas correntes de água,
assim minha alma suspira / por ti, meu Deus.
Minha alma tem sede de Deus, / do Deus vivo:
quando entrarei para ver / a face de Deus? [Sal 42(41)2-3]

1. Uma corça sequiosa, com a garganta seca, lança o seu grito perante a ari-dez do deserto, ansiosa pelas águas frescas de um riacho. Esta célebre ima-gem abre o Salmo 41, que há pouco foi cantado. Podemos ver nela como que um símbolo da espiritualidade profunda desta composição, verdadeira jóia de fé e de poesia. Na realidade, segundo os estudiosos do Saltério, o nosso Salmo deve unir-se estreitamente ao seguinte, o 42, do qual foi sepa-rado quando os Salmos foram ordenados para formar o livro de oração do Povo de Deus. De facto, ambos os Salmos para além de estarem ligados pe-lo tema e pelo desenvolvimento são marcados pela mesma antífona: "Por-que estás triste, ó minha alma, e te perturbas dentro de mim? Espera em Deus: ainda o poderei louvar, a Ele, salvação do meu rosto e meu Deus" (Sl 41, 6. 12; 42, 5). Este apelo, repetido duas vezes no mesmo Salmo, e uma terceira vez no Salmo seguinte, é um convite dirigido pelo que reza a si mêsmo, com vista a afastar a tristeza por meio da confiança em Deus, que certamente se manifestará de novo como Salvador.

2. Mas voltemos à imagem de partida do Salmo, que gostaria de meditar com o fundo musical do canto gregoriano ou daquela obra-prima polifónica que é o Sicut cervus de Pierluigi da Palestrina.

A corça sequiosa é, de facto, o símbolo do que reza e que se dirige com todo o seu ser, corpo e alma, para o Senhor, sentido como longínquo e ao mesmo tempo necessário: "A minha alma tem sede do Senhor, do Deus vivo" (Sl 41, 3). No hebraico a mesma palavra, nefesh, indica ao mesmo tempo a "al-ma" e a "garganta". Por isso, podemos dizer que a alma o corpo do orante estão envolvidos no desejo primário, espontâneo e substancial de Deus (cf Sl 62, 2). Por alguma razão, há uma longa tradição que descreve a oração como "respiração": ela é original, necessária, fundamental como a respira-ção vital.

Orígenes, grande autor cristão do terceiro século, dizia que a procura de Deus por parte do homem é uma empresa jamais terminada, porque são sempre possíveis e necessários novos progressos. Numa das suas homilias sobre o livro dos Números escreve: "Aqueles que percorrem o caminho da busca da sabedoria de Deus não constroem casas estáveis, mas tendas mó-veis, porque vivem em viagens contínuas caminhando sempre em frente, descobrindo um horizonte que se perde na imensidade" (Homilia XVII, In Numeros, GCS, XVII, 159-160).

3. Procuremos agora descobrir a trama desta súplica, que poderemos ima-ginar dividida em três actos, dois dos quais estão no interior do nosso sal-mo, enquanto o último se abrirá no Salmo seguinte, o 42, que olharemos em seguida. A primeira cena (cf. Sl 41, 2-6) exprime a profunda nostalgia sus-citada pela recordação de um passado tornado feliz por belas celebrações li-túrgicas, agora inacessíveis: "Ao recordar-me destas coisas, a minha alma derrete-se dentro de mim, unir-me-ei com o meu povo, guiá-lo-ei até à casa do Senhor entre vozes de alegria e de louvor da multidão em festa" (v. 5).

"A casa de Deus" com a sua liturgia é o templo de Jerusalém, que o fiel ou-trora frequentava, mas é também o lugar da intimidade com Deus, "fonte de água viva", como canta Jeremias (2, 13). Ora, a única água que aflora às suas pupilas é a das lágrimas (Sl 41, 4) pela distância da fonte da vida. A oração festiva de então, elevada para o Senhor durante o culto no templo, é agora substituída pelas lágrimas, pelo lamento, pela súplica.

4. Infelizmente, opõe-se um presente triste àquele passado alegre e sereno. O Salmista encontra-se, agora, longe de Sião: o horizonte que o circunda é o da Galileia, a região setentrional da Terra Santa, como sugere a menção das nascentes do Jordão, do cume do Hermon de onde brota este rio e de uma alta montanha desconhecida para nós, o Mizar (cf. v. 7). Estamos, pois, mais ou menos na área em que se encontram as cataratas do Jordão, as cas-catas com que começa o percurso deste rio que atravessa toda a Terra pro-metida. Estas águas, porém, não matam a sede como as de Sião. Aos olhos do Salmista são, pelo contrário, semelhantes às águas caóticas do dilúvio que destruiram tudo. Ele sente-as cair sobre os ombros como uma torrente impetuosa que destrói a vida: "todas as vossas vagas e torrentes passaram sobre mim" (v. 8). Na Bíblia, de facto, o caos e o mal, ou o próprio juízo di-vino, são representados como um dilúvio que provoca destruição e morte (Gn, 6, 5-8; Sl 68, 2-3).

Esta irrupção é definida logo a seguir no seu valor simbólico: são os per-versos, os adversários do orante, talvez também os pagãos que habitam nes-ta remota região onde o fiel está desterrado. Eles desprezam o justo e es-carnecem da sua fé, perguntando-lhe ironicamente: "onde está o teu Deus?" (v. 11; cf. v. 4). E ele dirige a Deus o seu pedido angustioso: "porque vos esqueceis de mim?" (v. 10). O "porque" dirigido ao Senhor, que parece au-sente no dia da provação, é típico das súplicas bíblicas.

Frente a estes lábios ressequidos que gritam, frente a esta alma atormentada, a este rosto que está prestes a ser submergido por um mar de lodo, poderá Deus permanecer mudo? Certamente que não! O orante anima-se de novo na esperança (cf. vv. 6. 12). O terceiro acto, contido no Salmo seguinte, o 42, será uma invocação confiante dirigida a Deus (Sl 42, 1. 2a. 3a. 4b) e usará expressões alegres e reconhecidas: "Então, entrarei no altar de Deus, o Deus da minha alegria, do meu júbilo".
(16 de janeiro de 2002)

Salmo 42
Desejo do Templo de Deus

1. Numa Audiência geral de há algum tempo, ao comentar o Salmo que an-tecede o que acabamos de cantar, dissemos que ele se ligava intimamente com o Salmo seguinte. De facto, os Salmos 41 e 42 constituem um único cântico, dividido em três partes pela própria antífona: "Porque estás abati-da, ó minha alma, e te perturbas dentro de mim? Confia no Senhor, que ain-da o hei-de louvar. Ele é a alegria do meu rosto. Ele é o meu Deus" (Sl 41, 6.12; 42, 5).

Estas palavras, semelhantes a um solilóquio, exprimem os sentimentos pro-fundos do Salmista. Ele está longe de Sião, ponto de referência da sua exis-tência porque é sede privilegiada da presença divina e do culto dos fiéis. Por isso, sente uma solidão feita de incompreensão e até de agressividade por parte dos incrédulos, agravada pelo isolamento e pelo silêncio por parte de Deus. Mas o Salmista reage contra a tristeza com um convite à confiança, que ele dirige a si mesmo, e com uma bonita afirmação de esperança: ele es-pera poder louvar ainda a Deus, "salvação do seu rosto".

No Salmo 42, em vez de falar só a si próprio como no Salmo anterior, o Sal-mista dirige-se a Deus e suplica-Lhe que o defenda dos adversários. Repe-tindo quase literalmente uma invocação anunciada no outro Salmo (cf. 41, 10), o orante dirige desta vez efectivamente a Deus o brado de des-conforto: "Por que é que então me repelis? Por que ando eu triste sob a pressão do meu inimigo?" (Sl 42, 2).

2. Contudo ele já sente o intervalo obscuro da distância que está para ter-minar e exprime a certeza da volta a Sião para encontrar a casa divina. A cidade santa já não é a pátria perdida, como acontecia na lamentação do Sal-mo anterior (cf. Sl 41, 3-4), mas tornou-se a meta jubilosa, rumo à qual se está a caminho. A orientação da vinda para Sião será a "verdade" de Deus e a sua "luz" (cf. Sl 42, 3). O próprio Senhor será o fim último da viagem. Ele é invocado como juiz e defensor (cf. vv. 1-2). Três verbos realçam a sua implorada intervenção: "fazei-me justiça", "defendei a minha causa", "li-vrai-me" (v. 1). São como que três estrelas de esperança, que se acendem no céu tenebroso da prova e marcam a aurora iminente da salvação.

É significativa a leitura que Santo Ambrósio faz desta experiência do Sal-mista, aplicando-a a Jesus que reza no Getsémani: "Não quero que te admi-res se o profeta diz que a sua alma estava abatida, visto que o próprio Se-nhor Jesus disse: agora a minha alma está abatida. De facto, quem assumiu as nossas debilidades, assumiu também a nossa sensibilidade, o que fez com que ficasse entristecido até à morte, mas não pela morte. Não teria podido causar melancolia uma morte voluntária, da qual dependia a felicidade de todos os homens... Portanto estava triste até à morte, na esperança de que a graça fosse realizada. Demonstra isto o seu próprio testemunho, quando diz da sua morte: há um baptismo com o qual devo ser baptizado: e como me sinto angustiado enquanto não for realizado! (As lamentações de Job e de David, VII, 28, Roma 1980, pág. 233).

3. Agora, na continuação do Salmo 42, diante dos olhos do Salmista está pa-ra se abrir a solução tão desejada: o regresso à fonte da vida e da comunhão com Deus. A "verdade", ou seja a fidelidade amorosa do Senhor, e a "luz", isto é, a revelação da sua benevolência, são descritas como mensageiras que o próprio Deus enviará do céu a fim de tomar pela mão o fiel e conduzi-lo à meta desejada (cf. Sl 42, 3).

É muito eloquente a sequência das etapas de aproximação de Sião e do seu centro espiritual. Primeiro aparece "o monte santo", a colina na qual se ele-va o templo e a fortaleza de David. Depois, vêm "as habitações", ou seja, o santuário de Sião com todos os seus espaços e edifícios que o compõem. Se-gue-se, depois, "o altar de Deus", a sede dos sacrifícios e do culto oficial de todo o povo. A meta última e decisiva é o Deus da alegria, é o abraço, a inti-midade reencontrada com Ele, que antes estava longe e silencioso.

4. A este ponto, tudo é cântico, júbilo, festa (cf. v. 4). No original hebraico fala-se do "Deus que é alegria do meu júbilo". Trata-se de uma maneira de dizer para exprimir o superlativo: o Salmista quer realçar que o Senhor é a raiz de qualquer felicidade, é a alegria suprema, é a plenitude da paz.

A tradução grega dos Setenta parece ter recorrido a uma palavra aramaica equivalente que indica a juventude e traduziu "ao Deus que alegra a minha juventude", introduzindo, desta forma, a idea do vigor e da intensidade da a-legria dada pelo Senhor. O saltério latino da Vulgata, que é uma tradução feita com base no grego, diz assim: "ad Deum qui laetificat juventutem meam". Desta forma, o Salmo era recitado aos pés do altar, na anterior litur-gia eucarística, como invocação introdutória ao encontro com o Senhor.

5. A lamentação inicial da antífona dos Salmos 41-42 ressoa pela última vez no final (cf. Sl 42, 5). O orante ainda não alcançou o templo de Deus, ainda está envolvido pela obscuridade da provação; mas já brilha aos seus olhos a luz do encontro futuro e os seus lábios já conhecem a tonalidade do cântico de alegria. O apelo é, a este ponto, mais marcado pela esperança. De facto, observa Santo Agostinho comentando o nosso Salmo: "Espera em Deus, responderá à sua alma aquele que por ela está perturbado... Entretanto vive na esperança. A esperança que se vê não é esperança; mas se esperamos no que não vemos é pela paciência que nós a aguardamos (cf. Rm 8, 24-25)" (Exposição sobre os Salmos I, Roma 1982, pág. 1019).

Então, o Salmo torna-se a oração de quem é peregrino na terra e ainda está em contacto com o mal e com o sofrimento, mas tem a certeza de que o ponto de chegada da história não é um abismo de morte, mas o encontro sal-vífico com Deus. Esta certeza é ainda mais forte para os cristãos, aos quais a Carta aos Hebreus proclama: "Vós, porém, aproximastes-vos do monte de Sião, da cidade do Deus vivo, da Jerusalém celeste, das miríades de anjos, da assembleia dos primogénitos que estão inscritos nos Céus, do juiz que é o Deus de todos, dos espíritos dos justos que atingiram a perfeição, de Je-sus, o mediador da Nova Aliança, e de um sangue de aspersão que fala me-lhor do que o de Abel" (Hb 12, 22-24).
(6 de fevereiro de 2002)

Salmo 46
O Senhor é o rei do universo

1. "O Senhor, o Altíssimo, é Grande Rei sobre toda a terra"!
Esta aclamação inicial é repetida em diversas tonalidades em todo o Salmo 46, que agora ouvimos. Ele configura-se como um hino ao Senhor soberano do universo e da história: "Ele é o rei da terra inteira... Reina o Senhor so-bre as nações" (vv. 8-9).

Este hino ao Senhor, rei do mundo e da humanidade, como outras compo-sições semelhantes presentes no Saltério (cf. Sl 92; 95-98), supõe uma atmosfera celebrativa litúrgica. Por isso, estamos no coração espiritual do louvor de Israel, que sobe ao céu partindo do templo, o lugar no qual o Deus infinito e eterno se revela e encontra o seu povo.

2. Seguiremos este cântico de louvor glorioso nos seus momentos funda-mentais, semelhantes a duas ondas que progridem rumo à beira-mar. Dife-rem na maneira de considerar a relação entre Israel e as nações. Na primeira parte do Salmo, a relação é de domínio: Deus "submete as nações debaixo do nosso jugo, põe os povos sob os nossos pés" (v. 4); na segunda parte, ao contrário, a relação é de associação: "Reuniram-se os príncipes dos povos ao povo do Deus de Abraão" (v. 10). Por conseguinte, verifica-se um grande progresso.

Na primeira parte (vv. 2-6) diz-se: "Povos todos, batei as palmas, aclamai ao Senhor, com vozes de alegria!" (v. 2). O centro deste aplauso festivo é a figura grandiosa do Senhor supremo, ao qual se atribuem três títulos glorio-sos: "altíssimo, grande e temível" (v. 3). Eles exaltam a transcendência divi-na, a primazia absoluta no ser, a omnipotência. Também Cristo ressuscitado exclamará: "Foi-Me dado todo o poder no céu e na terra" (Mt 28, 18).

3. No âmbito da senhoria universal de Deus sobre todas as nações da terra (cf. v. 4) o orante evidencia a sua presença particular em Israel, o povo da eleição divina, "o predilecto", a herança mais preciosa e querida ao Senhor (cf. v. 5). Por conseguinte, Israel sente-se objecto de um amor particular de Deus, que se manifestou com a vitória sobre as nações inimigas. Durante a batalha, a presença da arca da aliança junto das tropas de Israel garantia-lhes a ajuda de Deus; depois da vitória, a arca voltou a ser posta no monte Sião (cf. Sl 67, 19) e todos proclamavam: "Deus se eleva entre aclamações, o Senhor entre clamores de trombeta" (Sl 46, 6).

4. O segundo momento do Salmo (cf. vv. 7-10) abre-se com outra onda de louvor e de cântico festivo: "Cantai ao Senhor, cantai! Cantai ao nosso rei, cantai... Cantai salmos a Deus com toda a arte!" (vv. 7-8). Também agora se entoam hinos ao Senhor sentado no trono na plenitude da sua realeza (cf. v. 9). Este trono real é chamado "santo", porque dele não se pode aproximar o homem limitado e pecador. Mas trono celeste é também a arca da aliança presente na área mais sagrada do templo de Sião. Deste modo, o Deus dis-tante e transcendente, santo e infinito, aproxima-se das suas criaturas, adap-tando-se ao espaço e ao tempo (cf. 1 Rs 8, 27.30).

5. O salmo termina com uma nota surpreendente devido à sua abertura uni-versal: "Reuniram-se os príncipes dos povos ao povo de Deus de Abraão" (v. 10). Remonta-se a Abraão, o patriarca que está na base não só de Israel mas também de outras nações. Ao povo eleito que dele descende, é confiada a missão de fazer convergir para o Senhor todas as nações e todas as cul-turas, porque Ele é Deus de toda a humanidade. Do oriente ao ocidente reu-nir-se-ão então em Sião para encontrar este rei de paz e de amor, de unidade e de fraternidade (cf. Mt 8, 11). Como esperava o profeta Isaías, os povos inimigos entre si foram convidados a lançar à terra as armas e a viver juntos sob a única soberania divina, sob um governo regido pela justiça e pela paz (Is 2, 2-5). O olhar de todos estará fixo na nova Jerusalém onde o Senhor "sobe" para se revelar na glória da sua divindade. Será "uma grande multi-dão que ninguém podia contar, de todas as nações, tribos, povos e línguas... clamavam em alta voz, dizendo: a salvação pertence ao nosso Deus que está sentado no trono e ao Cordeiro" (Ap 7, 9.10).

6. A Carta aos Efésios vê a realização desta profecia no mistério de Cristo redentor quando afirma, dirigida aos cristãos não provenientes do judaís-mo: "vós éreis gentios pela carne... lembrai-vos que nesse tempo estáveis sem Cristo, privados do direito de cidade em Israel e alheios às alianças da Promessa sem esperança e sem Deus no mundo. Agora, porém, vós, que ou-trora estáveis longe, pelo sangue de Cristo, vos aproximastes. Ele é a nossa paz, Ele que de dois povos fez um só, destruindo o muro de inimizade que os separava" (Ef 2, 11-14).

Por conseguinte, em Cristo, a realeza de Deus, cantada pelo nosso Salmo, realizou-se na terra para todos os povos. Uma homilia anónima do século VIII comenta do seguinte modo este mistério: "Até à vinda do Messias, es-perança das nações, os povos gentios não adoraram Deus e não conheceram quem Ele é. E enquanto o Messias não os resgatou, Deus não reinou sobre as nações por meio da sua obediência e do seu culto. Pelo contrário, agora Deus, com a sua Palavra e com o seu espírito, reina sobre eles, porque os salvou do engano e fez com que se tornassem amigos" (Palestino anónimo, Homilia árabe-cristã do século VIII, Roma, 1994, pág. 100).
(5 de setembro de 2001)

Salmo 47
Acção de graças pela salvação do povo

1. O Salmo que foi proclamado é um cântico em honra de Sião, "a cidade do grande Soberano" (Sl 47, 3), que nessa época era sede do templo do Senhor e lugar da sua presença entre a humanidade. A fé cristã já o aplica à "Jeru-salém, lá do alto", que é "nossa mãe" (Gl 4, 26).

A tonalidade litúrgica deste hino, a evocação de uma procissão de festa (cf. vv. 13-14), a visão pacífica de Jerusalém que reflecte a salvação divina, fa-zem do Salmo 47 uma oração para iniciar o dia e fazer dele um cântico de louvor, mesmo se no horizonte se condensam algumas nuvens.

Para compreender o sentido do Salmo, servem-nos de ajuda três aclamações colocadas no início, no centro e no final, que nos oferecem como que a cha-ve espiritual da composição e nos introduzem no seu clima interior. Eis as três invocações: "Grande é o Senhor e digno de louvor, na cidade do nosso Deus" (v. 2); "Revivemos, ó Deus, as Vossas graças, no meio do Vosso templo" (v. 10); "Este é o Senhor, o nosso Deus pelos séculos sem fim; Ele é que nos guia" (v. 15).

2. Estas três aclamações, que exaltam o Senhor mas também "a cidade do nosso Deus" (v. 2), enquadram duas partes grandes do Salmo. A primeira é uma jubilosa celebração da cidade santa, a vitoriosa Sião, contra os assaltos dos inimigos, serena sob o manto da protecção divina (cf. vv. 3-8). Tem-se quase uma litania de definição desta cidade: é uma altura admirável que se ergue como um farol de luz, uma fonte de alegria para todos os povos da te-rra, o único verdadeiro "Olimpo" onde o céu e a terra se encontram. É para usar uma expressão do profeta Ezequiel a cidade-Emanuel, porque "Deus está ali" presente nela (cf. 48, 35). Mas em redor de Jerusalém estão a agru-par-se as tropas em cerco, como um símbolo do mal que atenta contra o es-plendor da cidade de Deus. O confronto tem um êxito previsto e quase ime-diato.

3. De facto, os poderosos da terra, ao assaltar a cidade santa, provocaram também o seu Rei, o Senhor. O Salmista mostra como o orgulho de um exército poderoso se dissolve com a imagem sugestiva das dores de parto: "foram colhidos pelo terror, um terror como o da mulher em parto" (v. 7). A arrogância transforma-se em fragilidade e fraqueza, o poder em queda e de-rrota.

O mesmo conceito é expresso com outra imagem: o exército em marcha é comparado a uma frota naval invencível, sobre a qual cai um furacão causa-do por um terrível vento do oriente (cf. v. 8).

Por conseguinte, permanece uma certeza incontestável para os que estão sob a protecção divina: a última palavra não é confiada ao mal mas ao bem; Deus triunfa sobre as potências adversas, mesmo quando parecem ser gran-diosas e invencíveis.
4. Então o fiel, celebra precisamente no templo o seu agradecimento ao Deus libertador. O seu é um hino ao amor misericordioso do Senhor, ex-presso com a palavra hebraica hésed, típica da teologia da aliança. Che-gamos assim à segunda parte do Salmo (cf. vv. 10-14). Depois do grande cântico de louvor a Deus fiel, justo e salvador (cf. vv. 10-12), realiza-se uma espécie de procissão à volta do templo e da cidade santa (cf. vv. 13-14). Contam-se as torres, sinal da protecção certa de Deus, observam-se as fortalezas, expressão da estabilidade oferecida a Sião pelo seu Fundador. Os muros de Jerusalém falam e as suas pedras recordam os factos que devem ser transmitidos "às gerações futuras" (v. 14) através da narração que os pais farão aos seus filhos (cf. Sl 77, 7). Sião é o espaço de uma cadeia inin-terrupta de acções salvíficas do Senhor, que são anunciadas na catequese e celebradas na liturgia, para que os crentes continuem a ter esperança na in-tervenção libertadora de Deus.

5. É maravilhosa na antífona conclusiva uma das mais nobres definições do Senhor como pastor do seu povo: "Ele é que nos guia" (v. 15). O Deus de Sião é o Deus do Êxodo, da liberdade, da proximidade ao seu povo escravo no Egipto e peregrino no deserto. Agora que Israel se estabeleceu na terra prometida, sabe que o Senhor não o abandona: Jerusalém é o sinal da sua proximidade, e o templo é o lugar da sua esperança.

Voltando a ler estas expressões, o cristão eleva-se à contemplação de Cristo, o templo de Deus novo e vivo (cf. Jo 2. 21), e dirige-se para a Jerusalém celeste, que já não precisa de um templo e de uma luz exterior, porque "o Senhor, Deus Todo-Poderoso, é o seu Templo, assim como o Cordeiro... porque é iluminada pela glória de Deus e a sua luz é o Cordeiro" (Ap 21, 22-23).

Santo Agostinho convida-nos a fazer de novo esta leitura "espiritual", con-vencido de que nos livros da Bíblia "não se encontra nada que se refira ape-nas à cidade terrena, mas tudo o que dela se refere, ou para ela se realiza, simboliza algo que por alegoria se pode também referir à Jerusalém celeste" (Cidade de Deus, XVII, 3, 2). Faz-lhe eco São Paulino de Nola, que preci-samente ao comentar as palavras do nosso Salmo, exorta a rezar a fim de que "possamos ser como pedras vivas nas muralhas da Jerusalém celeste e livre" (Carta 28, 2 a Severo). E ao contemplar a robustez e solidez desta ci-dade, o mesmo Padre da Igreja prossegue: "De facto, todo aquele que habita nesta cidade revela-se como o Uno em três pessoas... Dela Cristo foi consti-tuído não só fundamento, mas também torre e porta... Funda-se portanto so-bre Ele a casa da nossa alma e sobre ele se eleva uma construção digna de uma base assim tão grande, e a porta de entrada para a sua cidade será para nós precisamente Aquele que nos orientará nos séculos e nos levará ao lugar das suas pastagens" (ibid.).
(17 de outubro de 2001)

Salmo 50
Senhor, tende piedade de mim

1. Escutámos o Miserere, uma das orações mais célebres do Saltério, o Sal-mo penitencial mais intenso e repetido, o cântico do pecado e do perdão, a meditação mais profunda sobre a culpa e a graça. A Liturgia das Horas faz-nos repeti-lo nas Laudes de cada sexta-feira. Desde há muitos séculos nu-merosos corações de fiéis judeus e cristãos elevam aos céus como que um suspiro de arrependimento e de esperança dirigido a Deus misericordioso.

A tradição judaica colocou o Salmo nos lábios de David, convidado pelas palavras severas do profeta Natan a fazer penitência (cf. vv. 1-2; 2 Sam 11, 12), o qual lhe reprovava o adultério cometido com Betsabé e o homicídio de seu marido, Urias. Mas o Salmo enriquece-se nos séculos seguintes, com a oração de muitos outros pregadores, que retomam os temas do "coração novo" e do "Espírito" de Deus infundido no homem redimido, segundo o emsinamento dos profetas Jeremias e Ezequiel (cf. v. 12; Jr 31, 31-34; Ez 11, 19; 36, 24-28).

2. São dois os horizontes que o Salmo 50 delineia. Em primeiro lugar, está a região tenebrosa do pecado (cf. vv. 3-11), na qual se encontra o homem des-de o início da sua existência: "Eis que eu nasci na culpa, e a minha mãe con-cebeu-me no pecado" (v. 7). Mesmo se esta declaração não pode ser as-sumida como uma formulação explícita da doutrina do pecado original co-mo foi delineada pela teologia cristã, não há dúvida de que ela lhe corres-ponde: de facto, exprime a dimensão profunda da inata debilidade moral do homem. O Salmo, nesta primeira fase, apresenta-se como uma análise do pecado, feita diante de Deus. São três as palavras hebraicas usadas para de-finir esta triste realidade, que provém da liberdade humana mal empregue.

3. A primeira palavra, hattá, significa literalmente "não atingir o alvo": o pecado é uma aberração que nos afasta de Deus, meta fundamental das nos-sas relações, e por conseguinte também do próximo.

A segunda palavra hebraica é "awôn, que remete para a imagem de "torcer", "curvar". Por conseguinte, o pecado é um desvio sinuoso do caminho recto; é a inversão, a deturpação, a deformação do bem e do mal, no sentido decla-rado por Isaías: "Ai dos que ao mal chamam bem, e ao bem, mal, que têm as trevas por luz e a luz por trevas" (Is 5, 20). Precisamente por este motivo, na Bíblia, a conversão é indicada como um "voltar" (em hebraico shûb) ao caminho recto, corrigindo o percurso.

A terceira palavra que o salmista usa para falar do pecado é peshá. Ela ex-prime a rebelião do súbdito em relação ao soberano e, por conseguinte, é um desafio aberto dirigido a Deus e ao seu projecto para a história humana.

4. Mas se o homem confessa o seu pecado, a justiça salvífica de Deus está pronta para o purificar radicalmente. Desta forma passa-se para a segunda parte espiritual do Salmo, a luminosa da graça (cf. vv. 12-19). De facto, através da confissão das culpas abre-se para quem reza um horizonte de luz no qual Deus actua. O Senhor não age apenas negativamente, eliminando o pecado, mas regenera a humanidade pecadora através do seu Espírito vivi-ficante: infunde no homem um "coração" novo e puro, ou seja, um conhe-cimento renovado, e abre-lhe a possibilidade de uma fé límpida e de um culto agradável a Deus.

Orígenes fala a este propósito de uma terapia divina, que o Senhor realiza através da sua palavra e mediante a obra regeneradora de Cristo: "Assim co-mo Deus predispôs para o corpo o remédio das ervas terapêuticas mistura-das com sabedoria, assim também preparou remédios para a alma com as palavras que infundiu, distribuindo-as nas divinas Escrituras... Deus tam-bém deu outra actividade médica, cujo arquiatra é o Salvador, o qual diz de si mesmo: "não são os sadios que precisam do médico, mas os doentes". Ele era o médico por excelência capaz de curar qualquer debilidade, qual-quer enfermidade" (Homilias sobre os Salmos, Florença, 1991, pp. 247-249).

5. A riqueza do Salmo 50 mereceria uma exegese cuidadosa de cada uma das suas partes. É o que faremos quando ele voltar a ressoar nas várias sex-tas-feiras das Laudes. O olhar de conjunto, que agora dirigimos a esta grande súpplica bíblica, já nos revela algumas componentes fundamentais de uma espiritualidade que deve reflectir-se na existência quotidiana dos fiéis. Em primeiro lugar, há um profundo sentido do pecado, entendido co-mo uma escolha livre, conotada negativamente a nível moral e teologal: "Contra Vós apenas é que eu pequei, pratiquei o mal perante os Vossos o-lhos" (v. 6). Depois, verifica-se também no Salmo um profundo sentido da possibilidade de conversão: o pecador, sinceramente arrependido (cf. v. 5), apresenta-se em toda a sua miséria e despojamento a Deus, supli-cando-lhe que não o afaste da sua presença (cf. v. 13).

Por fim, no Miserere, vê-se uma radicada convicção do perdão divino que "apaga, lava e purifica" o pecador (cf. vv. 3-4) e chega até a transformá-lo numa criatura nova que tem espírito, língua, lábios e coração transformados (cf. vv. 14-19). "Mesmo se os nossos pecados afirmava santa Faustina Ko-walska fossem escuros como a noite, a misericórdia divina é mais forte do que a nossa miséria. É necessária uma só coisa: que o pecador abra pelo me-nos um pouco da porta do seu coração... o resto fá-lo-á Deus... Tudo se ini-ciou com a tua misericórdia e tudo terminará com a tua misericórdia" (M. Winowska, O ícone do Amor misericordioso. A mensagem da Irmã Fausti-na, Roma, 1981, pág. 271).
(24 de outubro de 2001)

Salmo 50
Senhor, tende piedade de mim!

1. Cada semana da Liturgia das Laudes é marcada na sexta-feira pelo Salmo 50, o Miserere, o Salmo penitencial mais amado, cantado e meditado, hino ao Deus misericordioso elevado pelo pecador arrependido. Já tivemos oca-sião, numa catequese precedente, de apresentar o quadro geral desta grande oração. Em primeiro lugar, entra-se na região tenebrosa do pecado para aí levar a luz do arrependimento humano e do perdão divino (cf. vv. 3-11). Depois, exalta-se o dom da graça divina, que transforma e renova o espírito e o coração do pecador arrependido: esta é uma região luminosa, cheia de esperança e de confiança (cf. vv. 12-21).

Detemo-nos, nesta nossa reflexão, nalgumas considerações, na primeira par-te do Salmo 50, aprofundando alguns dos seus aspectos. Mas, no começo, desejaríamos mencionar a maravilhosa proclamação divina do Sinai, que é quase o retrato do Deus cantado pelo Miserere: "Javé! Javé! Deus miseri-cordioso e clemente, vagaroso em encolerizar-Se, cheio de bondade e fide-lidade, que mantém a Sua graça até à milésima geração, que perdoa a ini-quidade, a rebeldia e o pecado" (Êx 34, 6-7).

2. A invocação inicial eleva-se a Deus para obter o dom da purificação que faça como dizia o profeta Isaías "brancos como a neve" e "como a lã" os pe-cados, em si semelhantes ao "escarlate" e "vermelhos como a púrpura" (cf. Is 1,18). O Salmista confessa o seu pecado de forma clara e sem hesitações: "Reconheço, de verdade, a minha culpa... Contra Vós apenas é que eu pe-quei, pratiquei o mal perante os vossos olhos" (Sl 50, 5-6).

Por conseguinte entra em cena a consciência pessoal do pecador que se abre para compreender claramente o seu mal. É uma experiência que envolve li-berdade e responsabilidade, e leva a admitir que se quebrou o vínculo para construir uma escolha de vida alternativa em relação à Palavra divina. Disto deriva uma decisão radical de mudança. Tudo isto está encerrado naquele "reconhecer", um verbo que em hebraico não significa apenas uma adesão intelectual mas uma opção vital.

É o que, infelizmente, muitos não fazem, como nos adverte Orígenes: "Há quem, depois de ter pecado, se sinta completamente tranquilo e não se preo-cupe com o seu pecado nem tocado pela consciência do mal cometido, mas viva como se nada tivesse acontecido. Sem dúvida, esse não poderia dizer: tenho sempre consciência do meu pecado. Ao contrário, quando, depois do pecado, o pecador se inquieta e se aflige devido ao seu pecado, quando se sente atormentado pelos remorsos, dilacerado sem tréguas e sofre sobressal-tos no seu íntimo que se eleva para o contestar, ele, com razão, exclama: não há paz para os meus ossos face ao aspecto dos meus pecados... Por-tanto, quando os pecados cometidos se apresentam aos olhos do nosso cora-ção, os revemos um por um, os reconhecemos, nos envergonhamos e arre-pendemos do que fizemos, então perturbados e aterrorizados, justamente di-zemos que não há paz para os nossos ossos face ao aspecto dos nossos pecados..." (Homilias sobre os Salmos, Florença 1991, págs. 277-279).

O reconhecimento e a consciência do pecado é, portanto, fruto de uma sen-sibilidade adquirida graças à luz da Palavra de Deus.

3. Na confissão do Miserere há um realce de particular evidência: o pecado não é compreendido apenas na sua dimensão pessoal e "psicológica", mas é analisado sobretudo na sua qualidade teológica. "Contra Vós apenas é que eu pequei" (Sl 50, 6), exclama o pecador, ao qual a tradição deu o rosto de David, consciente do seu adultério com Betsabé, e da denúncia do profeta Natan contra este crime e contra o crime da morte do seu marido, Urias (cf v. 2; 2 Sam 11, 12).

Por conseguinte, o pecado não é apenas uma questão psicológica ou social, mas é um acontecimento que prejudica a relação com Deus, violando a sua lei, recusando o seu projecto na história, alterando a escala dos valores, "mudando as trevas em luz e a luz em trevas", isto é, "chamando bem ao mal e mal ao bem" (cf. Is 5, 20). Antes de ser uma possível afronta contra o homem, o pecado é antes de mais traição a Deus. São emblemáticas as pala-vras que o filho desprovido de bens pronuncia diante de seu pai, pródigo de amor: "Pai, pequei contra o Céu isto é, contra Deus e contra ti!" (Lc 15, 21).

4. A este ponto o Salmista introduz outro aspecto, mais directamente rela-cionado com a realidade humana. Foi a frase que suscitou muitas interpre-tações e que também foi relacionada com a doutrina do pecado original: "Eis que eu nasci na culpa, e a minha mãe concebeu-me pecador" (Sl 50, 7). O orante deseja indicar a presença do mal dentro do nosso ser, como é evi-dente na menção da concepção e do nascimento, uma forma de exprimir to-da a existência partindo da sua origem. Mas o Salmista não relaciona for-malmente esta situação com o pecado de Adão e Eva, isto é, não fala ex-plicitamente de pecado original.

Contudo, é evidente que, segundo o texto do Salmo, o mal se esconde nas próprias profundezas do homem, é inerente à sua realidade histórica e, por isso, é decisivo o pedido da intervenção da graça divina. O poder do amor de Deus supera o poder do pecado, o rio transbordante do mal pode menos do que a água fecundante do perdão: "Onde abunda o pecado, superabunda a graça" (Rm 5, 20).

5. Por este caminho, a teologia do pecado original e toda a visão bíblica do homem pecador são indirectamente recordados com palavras que deixam, ao mesmo tempo, entrever a luz da graça e da salvação.

Como teremos ocasião de descobrir no futuro, voltando a falar deste Salmo e dos versículos seguintes, a confissão da culpa e a consciência da própria miséria não levam ao terror ou ao pesadelo do juízo, mas à esperança da pu-rificação, da libertação, da nova criação.

De facto, Deus salva-nos "não por causa das obras da justiça que tivéssemos feito, mas por misericórdia, mediante o baptismo de regeneração e reno-vação do Espírito Santo, que derramou sobre nós abundantemente por Jesus Cristo, nosso Salvador" (Tit 3, 5-6).
(8 de maio de 2002)

Salmo 50
Tende piedade de mim, ó Senhor!

1. Em cada semana a Liturgia das Laudes propõe de novo o Salmo 50, o célebre Miserere. Já o meditámos outras vezes nalgumas das suas partes. Também agora nos detemos de modo particular numa parte deste grandioso pedido de perdão: os versículos 12-16.

Antes de mais, é significativo notar que, no original hebraico, ressoa três vezes a palavra "espírito", pedido a Deus como dom e acolhido pela criatura arrependida do seu pecado: "Renovai ao meu interior um espírito recto... nem me priveis do Vosso santo espírito... sustentai-me com um espírito ge-neroso" (vv. 12.13.14). Quase se poderia falar recorrendo a um termo li-túrgico de uma "epiclese", ou seja, de uma tríplice invocação do Espírito que, como na criação se libertava sobre as águas (cf. Gn 1, 2), agora penetra na alma do fiel infundindo nova vida e elevando-o do reino do pecado para o céu da graça.

2. Os Padres da Igreja, no "espírito" invocado pelo Salmista, vêem a presen-ça eficaz do Espírito Santo. Assim, Santo Ambrósio está convencido de que se trata do único Espírito Santo "que fermentava com fervor nos profetas, foi dado [por Cristo] aos apóstolos e foi unido ao Pai e ao Filho no sacra-mento do baptismo" (O Espírito Santo, I, 4, 55: SAEMO 16, pág. 95). A mesma convicção é expressa por outros Padres como Dídimo, o Cego, de Alexandria do Egipto, e Basílio de Cesareia, nos respectivos tratados sobre o Espírito Santo (Dídimo o Cego, O Espírito Santo, Roma 1990, pág. 59; Basílio de Cesareia, O Espírito Santo, IX, 22, Roma 1993, pág. 117 s.).

E ainda Santo Ambrósio, observando que o Salmista fala da alegria da qual a alma está invadida quando recebe o Espírito generoso e poderoso de Deus, comenta: "A alegria e a felicidade são frutos do Espírito e o Espírito Sobe-rano é aquilo sobre o que nós, principalmente, nos baseamos. Portanto, quem é fortalecido com o Espírito soberano não é submetido pela escra-vidão, não sabe ser escravo do pecado, não hesita, não vagueia aqui e acolá, não é incerto nas escolhas mas, alicerçado na rocha, está firme em pés que não vacilam" (Apologia do Profeta David a Teodísio Augusto, 15, 72: SAEMO 5, pág. 129).

3. Com esta tríplice menção do "espírito", o Salmo 50, depois de ter descrito nos versículos precedentes a prisão obscura da culpa, abre-se sobre a razão luminosa da graça. É uma grande mudança, comparável a uma nova cria-ção: como nas origens Deus tinha insuflado o seu espírito na matéria e dera origem à pessoa humana (cf. Gn 2, 7), assim agora o mesmo Espírito divino regenera (cf. Sl 50, 12), renova, transfigura e transforma o pecador arre-pendido, abraça-o de novo (cf. v. 13) e o faz participante da alegria da sal-vação (cf. v. 14). Agora o homem, animado pelo Espírito divino, encami-nha-se pelas estradas da justiça e do amor, como se diz noutro Salmo: "En-sinai-me a cumprir a Vossa vontade, porque sois o meu Deus. Seja guiado pelo Vosso Espírito bondoso em terra plana" (Sl 142, 10).

4. Tendo experimentado este renascimento o orante transforma-se em teste-munha; promete a Deus que ensinará "aos ímpios os Seus caminhos" do bem (Sl 50, 15), de maneira que eles possam, como o filho pródigo, voltar à casa do Pai. Do mesmo modo, Santo Agostinho, depois de ter percorrido os caminhos tenebrosos do pecado, tinha depois sentido a necessidade nas suas Confissões de confirmar a liberdade e a alegria da salvação.

Quem conheceu o amor misericordioso de Deus torna-se uma sua teste-munha fervorosa, sobretudo em relação a quantos ainda estão aprisionados nas redes do pecado. Pensamos na figura de Paulo que, iluminado por Cristo no caminho de Damasco, se torna um incansável missionário da graça divi-na.

5. Pela última vez o orante olha para o seu passado obscuro e brada a Deus: "Livrai-me, Senhor, das acções sanguinárias, Deus da minha salvação" (v. 16). O "sangue", ao qual ele se refere, é interpretado na Escritura de vários modos. A alusão, posta nos lábios do rei David, refere-se à morte de Urias, o marido de Betsabé, a mulher que tinha sido objecto da paixão do sobe-rano. Em sentido mais geral, a invocação indica o desejo de purificação do mal, da violência, e do ódio, sempre presentes no coração humano com força tenebrosa e maléfica. Mas agora, os lábios do fiel, purificados do pe-cado, cantam ao Senhor.

E o trecho do Salmo 50, que hoje comentámos, termina precisamente com o empenho de proclamar a "justiça" de Deus. A palavra "justiça" aqui, como muitas vezes na linguagem bíblica, não designa propriamente a acção puni-tiva de Deus em relação ao mal, mas antes indica a reabilitação do pecador, porque Deus manifesta a sua justiça ao fazer dos pecadores homens justos (cf. Rm 3, 26). Deus não sente prazer pela morte do mau, mas deseja que desista do seu modo de se comportar e de viver (cf. Ez 18, 23).
(4 de dezembro de 2002)

Salmo 50
Tende piedade de mim, Senhor

1. É a quarta vez que ouvimos, durante estas nossas reflexões sobre a Litur-gia das Laudes, a proclamação do Salmo 50, o célebre Miserere. De facto, ele é proposto de novo na sexta-feira de cada semana, para que se torne um oásis de meditação, onde descobrir o mal que se esconde na consciência e invocar do Senhor a purificação e o perdão. Com efeito, como confessa o Salmista noutra súplica, "nenhum vivente é justo na Vossa presença", ó Senhor (Sl 142, 2). No Livro de Job lê-se: "Como, pois, pode justificar-se o homem diante de Deus? Como será puro o homem nascido da mulher? Até a própria luz não brilha e as estrelas não são puras aos Seus olhos! Quanto menos o homem, simples verme, e o filho do homem, mero vermezinho!" (25, 4-6).

Estas são frases fortes e dramáticas, que querem mostrar em toda a serie-dade e gravidade o limite e a fragilidade da criatura humana, a sua capaci-dade perversa de semear o mal e a violência, a impureza e a mentira. Con-tudo, a mensagem de esperança do Miserere, que o Saltério coloca nos lá-bios de David, pecador convertido, é esta: Deus pode "apagar, lavar, puri-ficar" a culpa confessada com o coração contrito (cf. Sl 50, 2-3). Diz o Se-nhor através da voz de Isaías: "Mesmo que os vossos pecados fossem como escarlate, tornar-se-iam brancos como a neve" (1, 18).

2. Deter-nos-emos desta vez brevemente no fim do Salmo 50, um fim cheio de esperança porque o orante é consciente de ter sido perdoado por Deus (cf. vv. 17-21). Agora, os seus lábios preparam-se para proclamar ao mundo o louvor ao Senhor, confirmando desta forma a alegria que experimenta a alma purificada do mal e, por isso, libertada dos remorsos (cf. v. 17).

O orante testemunha de modo claro outra convicção, relacionando-se com o ensinamento reiterado pelos profetas (cf. Is 1, 10-17; Am 5, 21-25; Os 6, 6): o sacrifício mais agradável que se eleva ao Senhor como perfume e fra-grância agradável (cf. Gn 8, 21) não é o holocausto de touros ou de cordei-ros mas, antes, o "coração quebrantado e humilhado" (Sl 50, 19).

A Imitação de Cristo, texto tão querido à tradição espiritual cristã, repete a mesma admoestação do Salmista: "A humilde contrição dos pecados é um sacrifício que te é agradável, um perfume muito mais suave do que o fumo do incenso... Ali purifica-se e lava-se qualquer iniquidade" (III, 52, 4).

3. O Salmo conclui-se de maneira inesperada, com uma perspectiva comple-tamente diferente, que até parece contraditória (cf. vv. 20-21). Da última sú-plica de um só pecador passa-se a uma oração pela reconstrução de toda a cidade de Jerusalém, o que nos leva da época de David à da destruição da cidade, alguns séculos mais tarde. Por outro lado, depois de ter expresso no v. 18 a recusa divina das imolações de animais, o Salmo anuncia no v. 21 que estas mesmas imolações serão agradáveis a Deus.

É evidente que esta passagem final é um acréscimo posterior, feito no tem-po do exílio, que quer, num certo sentido, corrigir ou pelo menos completar a perspectiva do Salmo de David. E isto, sob dois aspectos: por um lado, não se quis que todo o Salmo se limitasse a uma oração individual; era ne-cessário pensar também na situação piedosa de toda a cidade. Por outro la-do, quis-se reduzir a recusa divina dos sacrifícios rituais; esta recusa não po-dia ser completa nem definitiva, porque se tratava de um culto prescrito pe-lo próprio Deus na Tora. Quem completou o Salmo teve uma intuição vali-da: compreendeu a necessidade em que se encontravam os pecadores, a ne-cessidade de uma mediação sacrifical. Os pecadores não são capazes de se purificarem sozinhos; não bastam bons sentimentos. É preciso uma media-ção externa eficaz. O Novo Testamento revelará o sentido pleno desta intui-ção, mostrando que, com a oferta da sua vida, Cristo realizou uma mediação sacrifical perfeita.

4. Nas suas Homilias sobre Ezequiel, São Gregório Magno compreendeu bem a diferença de perspectiva que existe entre os vv. 19 e 21 do Miserere. Ele propõe uma interpretação da mesma, que podemos acolher também, concluindo assim a nossa reflexão. São Gregório aplica o v. 19, que fala de espírito contrito, à existência terrena da Igreja e o v. 21, que fala de holo-causto, à Igreja no céu.

Eis as palavras daquele grande Pontífice: "A santa Igreja tem duas vidas: uma que conduz no tempo, outra que recebe eternamente; uma com a qual fadiga na terra, outra que é recompensada no céu; uma com a qual reúne os méritos, outra que já goza dos méritos recolhidos. E tanto numa como nou-tra vida oferece o sacrifício: aqui o sacrifício da contrição e lá no céu o sa-crifício do louvor. Está escrito acerca do primeiro sacrifício: "O meu sa-crifício, Senhor, será o meu espírito contrito" (Sl 50, 19); acerca do segundo está escrito: "Então agradecereis as ofertas puras, sacrifícios e holocaustos" (Sl 50, 21)... Os dois oferecem a carne, porque aqui a oblação da carne é a mortificação do corpo, no céu a oblação da carne é a glória da ressurreição no louvor a Deus.

No céu oferecer-se-á a carne como que em holocausto quando, transfor-mada na incorruptibilidade eterna, não haverá mais conflito algum e nada será mortal, porque perdurará totalmente acesa de amor por ele, no louvor sem fim" (Homilias sobre Ezequiel/2, Roma 1993, pág. 271).
(30 de julho de 2003)

Salmo 56
A prece matutina no sofrimento

1. É uma noite tenebrosa, em que se sente a presença de feras vorazes nos arredores. O orante está à espera do despontar da aurora, para que a luz ven-ça a obscuridade e os temores. Este é o contexto do Salmo 56, hoje proposto à nossa reflexão: um cântico nocturno que prepara o orante para a luz da au-rora, esperada com ansiedade, para poder louvar ao Senhor na alegria (cf. vv. 9-11). Com efeito, o Salmo passa da lamentação dramática dirigida a Deus, à esperança serena e ao agradecimento jubiloso, expresso com as pa-lavras que em seguida voltarão a ressoar, num outro Salmo (cf. 107, 2-6).

Em síntese, assiste-se à passagem do medo à alegria, da noite ao dia, do pe-sadelo à serenidade e da súplica ao louvor. Trata-se de uma experiência fre-quentemente descrita nos Salmos: "Convertestes o meu luto em júbilo, des-pistes-me do meu saco e cingistes-me de alegria. Por isso, o meu coração há-de cantar-vos sem cessar" (30 [29], 12-13).

2. Portanto, estamos a meditar sobre dois momentos do Salmo 56. O pri-meiro diz respeito à experiência do medo do assalto do mal, que procura a-tingir o justo (cf. vv. 2-7). No centro desta cena há leões em posição de ataque. Esta imagem transforma-se depressa num símbolo bélico, delineado com lanças, flechas e espadas. O orante sente-se atacado por uma espécie de esquadrão da morte. À sua volta, há um grupo de caçadores, que arma cila-das e escava fossas para capturar a presa. Mas esta atmosfera de tensão dissolve-se imediatamente. Com efeito, já no início (cf. v. 2) aparece o sím-bolo protector das asas divinas, que concretamente fazem pensar na arca da aliança com os querubins alados, ou seja, na presença de Deus ao lado dos fiéis no templo santo de Sião.

3. O orante pede instantemente que Deus mande do céu os seus mensagei-ros, a quem atribui os nomes emblemáticos de "Fidelidade" e de "Graça" (cf. v. 4), qualidades próprias do amor salvífico de Deus. Por isso, embora sinta arrepios pelo rugido terrível das feras e pela perfídia dos perseguido-res, no seu íntimo o fiel permanece sereno e confiante, como Daniel na cova dos leões (cf. Dn 6, 17-25).

A presença do Senhor não demora a mostrar a sua eficácia, mediante a auto-punição dos adversários: eles caem na fossa que tinham cavado para o justo (cf. v. 7). Esta confiança na justiça divina, sempre viva nos Salmos, impede o desencorajamento e a rendição à prepotência do mal. Deus, que confunde as manobras dos ímpios, fazendo-os cair dos seus próprios projectos de mal-dade, mais cedo ou mais tarde põe-se ao lado do fiel.

4. Assim, chegamos ao segundo momento do Salmo, o da acção de graças (cf. vv. 8-11). Há um trecho que brilha de intensidade e beleza: "O meu co-ração, Senhor, está firme, o meu coração está firme: quero cantar-vos e lou-var-vos! Despertai, minhas entranhas, despertai, harpa e cítara; quero des-pertar-me com a aurora" (vv. 8-9). As trevas já se dissiparam: o alvorecer da salvação aproxima-se com o cântico do orante.

Aplicando a si esta imagem, o Salmista talvez traduza nos termos da reli-giosidade bíblica, rigorosamente monoteísta, o uso dos sacerdotes egípcios ou fenícios que eram encarregados de "despertar a aurora", ou seja, de fazer voltar a nascer o sol, considerado como uma divindade benéfica. Ele alude também ao costume de suspender e de velar pelos instrumentos musicais no tempo do luto e da provação (cf. Sl 137 [136], 2) e de os "despertar" ao som festivo no tempo da libertação e da alegria. Portanto, a liturgia faz nascer a esperança: dirige-se a Deus, convidando-o a aproximar-se de novo do seu povo e a escutar a sua súplica. Nos Salmos, a aurora é com frequência o momento da concessão divina, depois de uma noite de oração.

5. Assim, o Salmo termina com um cântico de louvor dirigido ao Senhor, que age com as suas grandes qualidades salvíficas, que já se manifestaram com termos diferentes na primeira parte da súplica (cf. v. 4). Agora entram em cena, de modo quase personificador, a Bondade e a Fidelidade. Elas i-nundam os céus com a sua presença e são como a luz que brilha na obscuri-dade das provas e das perseguições (cf. v. 11). É por este motivo que, na tradição cristã, o Salmo 56 se transformou em cântico do despertar para a luz e a alegria pascal, que se irradia no fiel, cancelando o medo da morte e alargando o horizonte da glória celeste.

6. Gregório de Nissa descobre nas palavras deste Salmo uma espécie de descrição típica daquilo que se verifica em cada experiência humana, aberta ao reconhecimento da sabedoria de Deus. "Efectivamente, salvou-me excla-ma fazendo-me sombra com a nuvem do Espírito, e aqueles que me espezi-nharam foram humilhados" (Sobre os títulos dos Salmos, Roma 1994, pág. 183).
Depois, referindo-se às expressões que concluem este Salmo, onde se diz: "O vosso amor chega até aos céus, sobre toda a terra (se estende) a vossa glória", ele conclui: "Na medida em que a glória de Deus se estende sobre a terra, enriquecida pela fé daqueles que são salvos, os poderes celestes en-toam hinos de louvor a Deus, exultando pela nossa salvação" (Ibid., pág. 184).
(19 de setembro de 2001)

Salmo 62
A alma sedenta do Senhor

1. O Salmo 62, no qual nos detemos para reflectir, é o Salmo do amor mís-tico que celebra a adesão total a Deus, partindo de um anseio quase físico e chegando à sua plenitude num abraço íntimo e perene. A oração faz-se de-sejo, sede e fome, porque envolve a alma e o corpo.
Como escreve Santa Teresa de Ávila, "a sede exprime o desejo de algo, mas um desejo tão intenso que perecemos se dele nos privamos" (Caminho de perfeição, c. XIX). Deste Salmo, a liturgia propõe-nos as primeiras duas es-trofes, que estão centradas precisamente nos símbolos da sede e da fome, enquanto a terceira estrofe faz oscilar um horizonte obscuro, do juízo divino sobre o mal, em contraste com a luminosidade e a candura do resto do Sal-mo.

2. Então, iniciemos a nossa meditação com o primeiro cântico, o da sede de Deus (cf. vv. 2-4). É a aurora, o sol que está a nascer no céu obscuro da Te-rra Santa, e o orante começa o seu dia, indo ao templo para buscar a luz de Deus. Ele tem necessidade daquele encontro com o Senhor de maneira qua-se instintiva, dir-se-ia "física". Assim como a terra árida é morta, enquanto não for irrigada pela chuva, e assim como nas fendas do terreno ela se pare-ce com uma boca dessedentada e seca, assim o fiel aspira por Deus para ser por Ele saciado e poder assim existir em comunhão com Ele.

O profeta Jeremias já tinha proclamado: o Senhor é "fonte de águas vivas", reprovando o povo por ter cavado "cisternas rotas, que não podem reter as águas" (2, 13). O próprio Jesus exclamará em voz alta: "Se alguém tem sede venha a mim e beba... que acredite em mim" (Jo 7, 37-38). Em plena tarde de um dia ensolarado e silencioso, Ele promete à mulher samaritana: "Quem beber da água que Eu lhe der, jamais terá sede, porque a água que Eu lhe der se tornará nele uma nascente de água a jorrar para a vida eterna" (Jo 4, 14).

3. No que diz respeito a este tema, a oração do Salmo 62 relaciona-se com o cântico de outro Salmo maravilhoso: "Assim como a corça suspira pelas co-rrentes de água, assim também a minha alma suspira por Vós, ó meu Deus. A minha alma tem sede do Senhor, do Deus vivo" (41, 2-3). Pois bem, na língua do Antigo Testamento o hebraico a "alma" é expressa com o termo nefesh, que nalguns textos designa a "garganta" e em muitos outros chega a indicar todo o ser da pessoa.

Compreendido nesta acepção, o vocábulo ajuda a entender como é essencial e profunda a necessidade de Deus; sem Ele faltam a respiração e a própria vida. Por isso, o Salmista chega a pôr em segundo plano a própria existência física, se vier a faltar a união com Deus: "O vosso amor é mais precioso do que a vida" (62, 4). Inclusivamente no Salmo 72, repetir-se-á ao Senhor: "Além de Vós, nada mais anseio sobre a terra. A minha carne e o meu cora-ção já desfalecem, mas o Senhor é para sempre a rocha do meu coração e a minha herança... o meu bem é estar perto de Deus" (vv. 25-26 e 28).

4. Depois do cântico da sede, eis que se modula nas palavras do Salmista o cântico da fome (cf. Sl 62, 6-9). Provavelmente, com as imagens do "lauto banquete" e da saciedade, o orador remete para um dos sacrifícios que se ce-lebravam no templo de Sião: o sacrifício chamado "de comunhão", ou seja, um banquete sagrado em que os fiéis comiam a carne das vítimas imoladas. Outra necessidade fundamental da vida é aqui utilizada como símbolo da comunhão com Deus: a fome é saciada quando se escuta a Palavra divina e se encontra o Senhor. Com efeito, "o homem não vive somente de pão, mas de tudo o que sai da boca do Senhor" (Dt 8, 3; cf. Mt 4, 4). E aqui o pen-samento do cristão corre para aquele banquete que Cristo preparou na últi-ma noite da sua vida terrestre, e cujo profundo valor Ele já tinha explicado durante o discurso de Cafarnaum: "A minha carne é, em verdade, comida e o meu sangue é, em verdade, bebida. Quem come a minha carne e bebe o meu sangue fica em mim e eu nele" (Jo 6, 55-56).

5. Através do alimento místico da comunhão com Deus, "a alma une-se a Ele", como declara o Salmista. Uma vez mais, a palavra "alma" refere-se a todo o ser humano. Não é sem motivo que se fala de um abraço, de um a-braço quase físico: Deus e o homem já estão em plena comunhão, e dos lá-bios da criatura não pode brotar senão o louvor jubiloso e agradecido. Mês-mo quando estamos na noite escura, sentimo-nos protegidos sob as asas de Deus, como a arca da aliança é coberta pelas asas dos querubins. E então floresce a expressão extática da alegria: "Exulto à sombra das vossas asas". O medo dissolve-se, o abraço não se aperta ao vazio, mas ao próprio Deus, enquanto a nossa mão se entrelaça com o poder da Sua direita (cf. Sl 62, 8-9).

6. A partir de uma leitura do Salmo à luz do mistério pascal, a sede e a fome que nos impelem para Deus encontram a sua satisfação em Cristo crucifi-cado e ressuscitado, de Quem chega até nós, mediante o dom do Espírito e dos Sacramentos, a vida nova e o alimento que a sustém.

É o que nos recorda João Crisóstomo que, comentando a anotação joanina: do lado "saiu sangue e água" (cf. Jo 19, 34), afirma: "Aquele sangue e aque-la água são símbolos do Baptismo e dos Mistérios", ou seja, da Eucaristia. E conclui: "Vedes como Cristo atraiu a si mesmo a esposa? Vedes com que alimento Ele nos nutre a todos nós? Fomos formados e somos nutridos pelo mesmo alimento. Com efeito, assim como a mulher nutre aquele que ela ge-rou com o próprio sangue e leite, assim também Cristo alimenta continua-mente com o seu sangue aquele que Ele mesmo gerou" (Homilia III, desti-nada aos neófitos, 16-19 passim: SC 50 bis, 160-162).
(25 de abril de 2001)

Salmo 64
A alegria das criaturas de Deus pela Sua providência

1. A nossa viagem pelos Salmos da Liturgia das Laudes leva-nos agora a um hino, que nos seduz sobretudo pelo maravilhoso quadro primaveril da última parte (cf. Sl 64, 10-14), um cenário cheio de vigor, esmaltado de co-res, percorrido por vozes de alegria.

Na realidade, o Salmo 64 tem uma estrutura mais ampla, fruto do entrela-çamento de duas tonalidades diferentes: em primeiro lugar, sobressai o te-ma histórico do perdão dos pecados e do acolhimento junto de Deus (cf. vv. 2-5); depois, é feita menção do tema cósmico da acção de Deus em relação aos mares e aos montes (cf. vv. 6-9a); por fim, é desenvolvida a descrição da primavera (cf. vv. 9b-14): no panorama cheio de sol e árido do Próximo Oriente, a chuva fecundante é a expressão da fidelidade do Senhor à criação (cf. Sl 103, 13-16). Para a Bíblia, a criação é a sede da humanidade e o pe-cado é um atentado à ordem e à perfeição do mundo. Portanto, a conversão e o perdão dão de novo integridade e harmonia ao cosmos.

2. A primeira parte do Salmo leva-nos ao interior do templo de Sião. Ali a-corre o povo com o seu montão de misérias morais, para invocar a líber-tação do mal (cf. Sl 64, 2-4a). Uma vez obtida a absolvição das culpas, os fiéis sentem-se hóspedes de Deus, próximos d'Ele, prontos para serem ad-mitidos à sua mesa e para participarem na festa da intimidade divina (cf. vv. 4b-5).

Depois, o Senhor que se eleva no templo é representado com um perfil glo-rioso e cósmico. De facto, diz-se que Ele é a "esperança dos confins da terra e dos mares longínquos... firma as montanhas com a Sua força... aplaca o bramido dos mares, o estrondo das vagas... os que habitam os confins da te-rra tremem perante os Seus prodígios", do Oriente até ao Ocidente (cf. vv. 6-9).
3. No interior desta celebração de Deus Criador, encontramos um aconte-cimento que desejo realçar: o Senhor consegue dominar e silenciar até o es-trondo das águas do mar, que na Bíblia simbolizam a desordem, em opo-sição à ordem da criação (cf. Jb 38, 8-11). Eis a forma de exaltar a vitória divina não só sobre o nada, mas também sobre o mal: por este motivo ao "bramido do mar" e ao "estrondo das suas ondas" associa-se também "o tu-multo dos povos" (cf. Sl 64, 8), isto é, a rebelião dos soberbos.

Santo Agostinho comenta de maneira eficaz: "O mar representa o mundo actual: amargo de salsugem, agitado pela tempestade, onde os homens com a sua cupidez pervertida e desordenada, se tornam como os peixes que se devoram uns aos outros. Olhai para este mar agitado, para este mar amargo, cruel com as suas ondas!... Irmãos, não nos comportemos assim, porque o Senhor é a esperança de todos os confins da terra" (Exposição sobre os Sal-mos II, Roma 1990, pág. 475).

A conclusão que o Salmo nos sugere é fácil: aquele Deus, que elimina a confusão e o mal do mundo e da história, pode vencer e perdoar a maldade e o pecado que o orante leva consigo e apresenta no templo, com a certeza da purificação divina.

4. A este ponto, entram no cenário as outras águas: as da vida e da fecun-didade, que na Primavera regam a terra e, em pensamento, representam a vi-da nova do fiel perdoado. Os versículos finais do Salmo (cf. Sl 64, 10-14), como se dizia, encerram uma grande beleza e significado. Deus mata a sede da terra fendida pela aridez e pelo gelo do inverno, dessedentando-a com a chuva. O Senhor é semelhante a um agricultor (cf. Jo 15, 1), que faz crescer o grão e nascer a erva com o seu trabalho. Prepara o terreno, irriga os sul-cos, revira os torrões, rega todas as partes do seu campo.

O Salmista usa dez verbos para descrever esta amorosa acção do Criador em relação à terra, que é transfigurada numa espécie de criatura viva. De facto, "tudo canta a brada de alegria" (Sl 64, 14). A este propósito, são sugestivos os três verbos relacionados com o símbolo da veste: "as colinas revestem-se de alegria, os campos cobrem-se de rebanhos, e os vales enchem-se de tri-gais" (vv. 13-14). A imagem é a de uma pradaria salpicada pela candura das ovelhas; as colinas revestem-se talvez com os vinhedos, sinal de alegria pe-lo seu produto, o vinho, que "torna alegre o coração do homem" (Sl 103, 15); os vales revestem-se com o manto dourado das searas. O versículo 12 recorda a coroa, que poderia fazer pensar nas grinaldas dos banquetes, colo-cadas na cabeça dos convidados (cf. 28, 1.5).

5. Todas juntas, as criaturas, como que numa procissão, dirigem-se ao Cria-dor e Soberano, dançando e cantando, louvando e rezando. Mais uma vez a natureza torna-se um sinal eloquente da acção divina; é uma página aberta para todos, pronta para manifestar a mensagem nela delineada pelo Criador, porque "pela beleza e grandeza das criaturas pode chegar-se, por analogia, ao conhecimento do seu Autor" (Sab 13, 5; cf. Rm 1, 20). Contemplação teológica e abandono poético fundem-se juntos neste poema e tornam-se a-doração e louvor.

Mas o encontro mais intenso, o que o Salmista tem em vista com todo o seu cântico, é aquele que une criação e redenção. Como a terra na Primavera ressurge pela acção do Criador, assim o homem ressurge do seu pecado pela acção do Redentor. Criação e história estão de tal forma sob o olhar provi-dencial e salvífico do Senhor, que vence as águas agitadas e destruidoras e dá a água que purifica, fecunda e mata a sede. De facto, o Senhor "cura os atribulados de coração e pensa-lhe as chagas", mas também "cobre os céus com as nuvens e... prepara a chuva para a terra;... faz crescer as ervas nas montanhas" (Sl 146, 3.8).

Desta forma, o Salmo torna-se um cântico à graça divina. É ainda Santo Agostinho quem, ao comentar o nosso Salmo, recorda este dom transcen-dente e único: "O Senhor nosso Deus diz ao teu coração: eu sou a tua rique-za. Não te preocupes com aquilo que o mundo te promete, mas com o que te promete o Criador do mundo! Está atento ao que Deus te promete, se ob-servares a justiça; e despreza aquilo que o homem te promete para te afastar da justiça. Não te preocupes, portanto, com aquilo que o mundo promete! Tem antes em consideração o que o Criador do mundo promete" (l.c., pág. 481).
(6 de março de 2002)

Salmo 66
Todos os povos glorifiquem o Senhor

1. Ressoou agora a voz do antigo Salmista, que elevou ao Senhor um jubilo-so cântico de agradecimento. É um texto breve e fundamental, mas que se expande para um horizonte imenso, até abarcar espiritualmente todos os po-vos da terra.

Esta abertura universalista reflecte provavelmente o espírito profético da época posterior ao exílio na Babilónia, quando se desejava que também os estrangeiros fossem conduzidos por Deus até ao seu monte santo para se sentirem repletos de alegria. Os seus sacrifícios e holocaustos teriam sido a-gradáveis, porque o templo do Senhor se tornou "casa de oração para todos os povos" (Is 56, 7).

Também no nosso Salmo, o 66, o coro universal das nações é convidado a unir-se ao louvor que Israel eleva no templo de Sião. De facto, por duas ve-zes volta esta antífona: "Louvem-Vos, ó Senhor, os povos, todos os povos vos dêem graças" (vv. 4.6).

2. Também os que não pertencem à comunidade escolhida por Deus rece-bem d'Ele uma vocação: com efeito, são chamados a conhecer o "caminho" revelado a Israel. O "caminho" é o plano divino de salvação, o reino de luz e de paz, em cuja actuação estão incluídos também os pagãos, convidados a ouvir a voz de Javé (cf. v. 3). O resultado desta escuta obediente é o temor do Senhor em "todos os confins da terra" (v. 8), expressão que não recorda tanto o receio como, ao contrário, o respeito adorante do mistério transcen-dente e glorioso de Deus.

3. Na abertura e na parte conclusiva do Salmo é expresso um desejo insis-tente da bênção divina: "Deus tenha piedade de nós e nos abençoe, e faça resplandecer sobre nós a luz da Sua face... O Senhor, nosso Deus, nos aben-çoa" (vv. 2.7-8).

É fácil ver nestas palavras o eco da famosa bênção sacerdotal ensinada, em nome de Deus, por Moisés a Aarão e aos descendentes da tribo sacerdotal: "O Senhor te abençoe e te proteja! Que o Senhor dirija o Seu olhar para ti e te conceda a paz!" (Nm 6, 24-26).

Pois bem, segundo o Salmista, esta bênção efundida sobre Israel será como uma semente de graça e de salvação a ser lançada à terra do mundo inteiro e da história, pronta para germinar e se tornar uma árvore frondosa.

O pensamento dirige-se também para a promessa feita pelo Senhor a Abra-ão no dia da sua eleição: "Farei de ti um grande povo, abençoar-te-ei, en-grandecerei o teu nome e serás uma fonte de bênção... E todas as famílias da terra serão em ti abençoadas" (Gn 12, 2-3).

4. Na tradição bíblica, um dos efeitos experimentais da bênção divina é o dom da vida, da fecundidade e da fertilidade.

No nosso Salmo é mencionada explicitamente esta realidade concreta, pre-ciosa para a existência: "O campo deu os seus frutos" (v. 7). Esta consta-tação estimulou os estudiosos a relacionar o Salmo ao rito de agradecimento para uma colheita abundante, sinal do favor divino e testemunho para os outros povos da proximidade do Senhor a Israel.

A mesma frase chamou a atenção dos Padres da Igreja, que do horizonte a-grícola passaram para o nível simbólico. Assim, Orígenes aplicou este versí-culo à Virgem Maria e à Eucaristia, isto é, a Cristo que provém da flor da Virgem e se torna fruto, para poder ser comido. Nesta perspectiva "a terra é Santa Maria, que vem da nossa terra, da nossa semente, desta lama, desta argila, de Adão". Esta terra deu o seu fruto: a primeira produziu flor... de-pois esta flor tornou-se fruto, para que o pudéssemos comer, para que co-mês-semos a sua carne. Quereis saber quem é este fruto? É o Casto da Vir-gem, o Senhor da serva, o Deus do homem, o Filho da Mãe, o fruto da terra" (74 Homilias sobre o Livro dos Salmos, Milão 1993, pág. 141).

5. Concluímos com as palavras de Santo Agostinho, no seu comentário ao Salmo. Ele identifica o fruto que germinou na terra com a novidade que se produz nos homens graças à vinda de Cristo, uma novidade de conversão e um fruto de louvor a Deus.

Com efeito, "a terra estava coberta de espinhos", explica ele. Mas "apro-ximou-se a mão daquele que desenraiza, aproximou-se a voz da sua ma-jestade e da sua misericórdia; e a terra começou a louvar. Agora a terra dá o seu fruto". Certamente não daria fruto, "se antes não tivesse sido regada" pela chuva, "se não tivesse vindo primeiro do alto a misericórdia de Deus". Mas já assistimos a um fruto maduro na Igreja, graças à pregação dos Após-tolos: "Enviando depois a chuva através das suas nuvens, ou seja, através dos apóstolos que anunciaram a verdade, "a terra deu o seu fruto" mais a-bundantemente: e esta messe já encheu o mundo inteiro" (Exposições sobre os Salmos, II, Roma 1970, pág. 551).
(9 de outubro de 2002)

Salmo 76
Deus renova os prodígios do seu amor

1. A Liturgia, ao inserir nas Laudes de uma manhã o Salmo 76 que acaba-mos de proclamar, deseja recordar-nos que o início do dia nem sempre é lu-minoso. Assim como alvorecem dias tenebrosos, nos quais o céu está co-berto de nuvens e ameaçado pela tempestade, assim também a nossa vida conhece dias repletos de lágrimas e de receio. Por isso, já no alvorecer a oração se torna lamento, súplica e invocação de ajuda.

O nosso Salmo é, precisamente, uma oração que se eleva para Deus com in-sistência, profundamente animada pela confiança, aliás, pela certeza da in-tervenção divina. De facto, para o Salmista o Senhor não é um imperador impassível, confinado no seu luminoso céu, indiferente às nossas vicissi-tudes. Desta impressão, que por vezes nos oprime o coração, surgem per-guntas tão amarguradas que fazem vacilar a fé: "Deus está a desmentir o seu amor e a sua eleição?

Esqueceu-se dos tempos em que nos amparava e nos fazia felizes?". Como veremos, estas perguntas desaparecerão devido a uma renovada confiança em Deus, redentor e salvador.

2. Sigamos, então, o desenvolvimento desta oração que começa com uma tonalidade dramática, na angústia, para depois, pouco a pouco, se abrir à se-renidade e à esperança. Eis diante de nós, em primeiro lugar, a lamentação sobre o presente triste e sobre o silêncio de Deus (cf. vv. 2-11). É dirigido ao céu, aparentemente mudo, um brado que pede ajuda, as mãos elevam-se em súplica, o coração desfalece devido às aflições. Nas noites em que não se dorme, feitas de lágrimas e de orações, "volta ao coração" um cântico, como diz o versículo 7, uma estrofe desconfortada ressoa continuamente no fundo da alma.

Quando o sofrimento chega ao ápice e se deseja afastar o cálice do sofri-mento (cf. Mt 26, 39), as palavras explodem e tornam-se perguntas dilace-rantes, como já se disse (cf. Sl 76, 8-11). Este brado interpela o mistério de Deus e do seu silêncio.

3. O Salmista pergunta porque é que o Senhor o recusa, porque mudou o seu rosto e o seu modo de agir, esquecendo o amor, a promessa de salvação e a ternura misericordiosa. "A direita do Altíssimo", que realizara os prodígios salvíficos do Êxodo, parece estar paralisada (cf. v. 11). E este é um verda-deiro e próprio "tormento", que faz vacilar a fé de quem reza.

Se fosse assim, Deus seria irreconhecível, tornar-se-ia um ser cruel ou uma presença como a dos ídolos, que não sabem salvar porque são incapazes, in-diferentes e impotentes. Nos versículos da primeira parte do Salmo 76 en-contra-se todo o drama da fé no tempo das provações e do silêncio de Deus.

4. Mas há motivos de esperança. É o que sobressai na segunda parte da sú-plica (cf. vv. 12-21), semelhante a um hino destinado a repropor a confir-mação corajosa da própria fé também nos dias tenebrosos do sofrimento. Canta-se o passado de salvação, que teve a sua epifania de luz na criação e na libertação da escravidão do Egipto. O presente amargo é iluminado pela experiência salvífica do passado, que é uma semente lançada na história: ela não morreu, mas simplesmente foi sepultada, para depois germinar (cf. Jo 12, 24).

Por conseguinte, o Salmista recorre a um importante conceito bíblico, o do "memorial", que não é apenas uma vaga recordação confortadora, mas é a certeza de uma acção divina que nunca virá a faltar: "Tenho na memória as gestas do Senhor, lembro-me das Suas maravilhas" (Sl 76, 12).

Professar a fé nas obras de salvação do passado faz ter fé em tudo o que o Senhor é constantemente e, portanto, também no tempo presente. "Ó Deus, santos são os Vossos caminhos... Vós sois o Deus que opera prodígios" (vv. 14-15). Assim o presente, que parecia não ter futuro nem luz, é iluminado pela fé em Deus e aberto à esperança.

5. A fim de apoiar esta fé o Salmista provavelmente cita um hino mais an-tigo, talvez cantado na liturgia do templo de Sião (cf. vv. 17-20). É uma clamorosa teofania na qual o Senhor entra na história, agitando a natureza e sobretudo as águas, símbolo da confusão, do mal e do sofrimento. É muito bonita a imagem do caminho de Deus sobre as águas, sinal do seu triunfo sobre as forças negativas: "Sobre o mar foi o Vosso caminho, e a Vossa sen-da, no meio de águas caudalosas, sem que se conhecesse o Vosso caminho" (v. 20). E o pensamento dirige-se para Cristo que caminha sobre as águas, símbolo eloquente da sua vitória sobre o mal (cf. Jo 6, 16-20).
Por fim, recordamos que Deus guiou o seu povo, "como um rebanho", "pela mão de Moisés e de Aarão" (Sl 76, 21), o Salmo leva-nos implicitamente a uma certeza: Deus conduzir-nos-á de novo à salvação. A sua mão poderosa e invisível estará connosco através da mão visível dos pastores e dos guias por Ele estabelecidos. O Salmo, que começou com um brado de sofrimento, no final suscita sentimentos de fé e de esperança no grande pastor das nos-sas almas (cf. Heb 13, 21; 1 Pd 2, 25).
(13 de março de 2002)

Salmo 79
Visitai, Senhor, a vossa vinha

1. O salmo que agora foi entoado tem a tonalidade de um lamento e de uma súplica de todo o povo de Israel. A primeira parte emprega um célebre sím-bolo bíblico, o pastoral. O Senhor é invocado como "pastor de Israel", a-quele que "conduziu José como um rebanho" (Sl 79, 2). Do alto da arca da aliança, sentado sobre os querubins, o Senhor guia o seu rebanho, isto é, o seu povo, e protege-o dos perigos.

Assim fizera durante a travessia do deserto. Mas agora, parece estar ausente, quase adormecido ou indiferente. Ao rebanho que devia orientar e nutrir (cf. Sl 22) oferece apenas um pão embebido em lágrimas (cf. Sl 79, 6). Os inimigos escarnecem este povo humilhado e ofendido; contudo, Deus não se mostra admirado, não "desperta" (v. 3), nem revela o seu poder, defendendo as vítimas da violência e da opressão. A invocação da antífona repetida (cf. vv. 4.8) tenta fazer com que Deus abandone a sua atitude indiferente, fa-zendo com que ele volte a ser pastor e defesa do seu povo.

2. Na segunda parte da oração, densa de tensão e, ao mesmo tempo, de con-fiança, encontramos outro símbolo querido à Bíblia, o da vinha. É uma ima-gem que se compreende facilmente, porque faz parte do panorama da terra prometida e é sinal de fecundidade e de alegria.

Como ensina o profeta Isaías numa das suas mais nobres páginas poéticas (cf. Is 5, 1-7), a vinha encarna Israel. Ela ilustra duas dimensões fundamen-tais: por um lado, dado que é plantada por Deus (cf. Is 5, 2; Sl 79, 9-10), a vinha representa o dom, a graça, o amor de Deus; por outro, ela precisa do trabalho do camponês, graças ao qual produz uvas que podem dar o vinho e, portanto, representa a resposta humana, o empenho pessoal e o fruto de o-bras justas.

3. Através da imagem da vinha, o Salmo recorda as principais etapas da his-tória hebraica: as suas raízes, a experiência do êxodo do Egipto, a entrada na terra prometida. A vinha tinha alcançado o seu nível mais amplo de ex-tensão sobre toda a região palestina e para além dela, com o reino de Salo-mão. De facto, expandia-se dos montes setentrionais do Líbano, com os seus cedros, até ao mar Mediterrâneo e quase até ao grande rio Eufrates (cf. vv. 11-12).

Mas o esplendor deste florescimento foi interrompido. O Salmo recorda-nos que na vinha de Deus passou a tempestade, isto é, Israel sofreu uma pro-vação áspera, uma dura invasão que devastou a terra prometida. O próprio Deus derrubou, como se fosse um invasor, o muro que circundava a vinha, deixando assim que nela irrompessem os saqueadores, representados pelo jávali, um animal considerado, pelos costumes antigos, violento e impuro. Ao poder do javali uniram-se todos os animais selvagens, símbolo de uma horda inimiga que tudo devasta (cf. vv. 13-14).

4. Então, dirige-se a Deus o premente apelo para que volte a manifestar-se em defesa das vítimas, rompendo o seu silêncio: "Voltai, sem tardança ó Deus dos exércitos, observai o céu e considerai; atendei a esta vinha" (v. 15). Deus será ainda o protector da cepa vital desta vinha submetida a uma tempestade tão violenta, afastando tudo o que procurara desenraizá-la e in-cendiá-la (cf. vv. 16-17).

A este ponto, o Salmo abre-se a uma esperança com tonalidades messiâ-nicas. De facto, o versículo 18 reza assim: "Que a Tua mão se estenda sobre o homem da Tua direita, sobre o filho do homem que Vós fortalecestes". O pensamento dirige-se talvez, antes de mais, para o rei davídico que, com o apoio do Senhor, orientará a reconquista da liberdade. Contudo, é implícita a confiança no futuro Messias, aquele "filho do homem" que será cantado pelo profeta Daniel (cf. 7, 13-14) e que Jesus assumirá como título predi-lecto para definir a sua obra e a sua pessoa messiânica. Aliás, os Padres da Igreja serão unânimes ao indicar na vinha recordada pelo Salmo uma prefi-guração profética de Cristo "videira verdadeira" (Jo 15, 1) e da Igreja.

5. Sem dúvida, para que o rosto do Senhor volte a brilhar, é necessário que Israel se converta na fidelidade e na oração a Deus Salvador. É o que o Sal-mista exprime ao afirmar: "não nos afastaremos mais de ti" (Sl 79, 19).

Por conseguinte, o Salmo 79 é um cântico prevalecentemente marcado pelo sofrimento, mas também por uma confiança inabalável. Deus está sempre disposto a "voltar" para o seu povo, mas é necessário que também o seu po-vo "volte" para Ele na fidelidade. Se nós nos convertemos do pecado, o Se-nhor "converter-se-á" da sua intenção de castigar: é esta a convicção do Salmista, que tem o seu eco também nos nossos corações, abrindo-os à es-perança.
(10 de abril de 2002)

Salmo 80
Solene convite a renovar a Aliança

1. "Tocai a trombeta pelo novo mês, na luz cheia, dia da nossa festa" (Sl 81 [80], 4). Estas palavras do Salmo 80, agora proclamado, remetem para uma celebração litúrgica segundo o calendário lunar do antigo Israel. É difícil definir com exactidão a festividade a que o Salmo se refere; é certo que o calendário litúrgico bíblico, embora comece com o fluxo das estações e por-tanto da natureza, se apresenta firmemente ancorado na história da salvação e, em particular, no principal acontecimento do êxodo da escravidão egíp-cia, ligado à lua cheia do primeiro mês (cf. Êx 12, 2-6; Lv 23, 5). Com efei-to, foi ali que se revelou o Deus libertador e salvador.

Como afirma poeticamente o versículo 7 desse mesmo Salmo, foi Deus que tirou dos ombros do hebreu escravo no Egipto, a cesta repleta de tijolos, ne-cessários para a construção da cidade de Pitom e Ramsés (cf. Êx 1, 11.14). O próprio Deus pôs-se ao lado do povo oprimido e, com o seu poder, tirou e cancelou o sinal amargo da escravidão, a cesta dos tijolos cozidos ao sol, expressão dos trabalhos forçados a que eram obrigados os filhos de Israel.

2. Agora, sigamos a evolução deste cântico da liturgia de Israel. Ele abre-se com um convite à festa, ao cântico, à música: trata-se da convocação oficial da assembleia litúrgica, segundo o antigo preceito do culto, nascido já na terra do Egipto, com a celebração da Páscoa (cf. Sl 81 [80], 2-6). Depois deste apelo, ergue-se a voz do próprio Senhor, através do oráculo do sacer-dote no templo de Sião, e estas palavras divinas hão-de ocupar todo o resto do Salmo (cf. vv. 6-17).

O tema que se desenvolve é simples e inclui dois pólos ideais. Por um lado, há o dom divino da liberdade que foi oferecida a Israel oprimido e infeliz: "Clamaste na opressão, e Eu libertei-te" (v. 8). Existe uma referência tam-bém ao apoio que o Senhor ofereceu a Israel, a caminho no deserto, ou seja, ao dom da água em Meriba, num contexto de dificuldade e de provação.

3. Por outro lado, porém, juntamente com o dom divino, o Salmista introduz outro elemento significativo. A religião bíblica não é um monólogo solitário de Deus, uma sua acção destinada a ficar inerte. Pelo contrário, é um diálo-go, uma palavra acompanhada de uma resposta, um gesto de amor que exige adesão. Por isso, reserva-se um amplo espaço aos convites que Deus dirige a Israel.

O Senhor convida, em primeiro lugar, à observância do primeiro manda-mento, fundamento de todo o Decálogo, ou seja, a fé no único Senhor e Sal-vador, e a rejeição dos ídolos (cf. Êx 20, 3-5). O discurso do sacerdote em nome de Deus é cadenciado pelo verbo "escutar", querido ao livro do Deu-teronómio, que exprime a adesão obediente à Lei do Sinai e constitui um sinal da resposta de Israel ao dom da liberdade. Com efeito, no nosso Salmo ouve-se repetir: "Escuta, meu povo... Oxalá me ouvisses, Israel! (...) E o meu povo não escutou a minha voz, Israel não quis obedecer-me... Ah, se o meu povo me escutasse! (...) (vv. 9.12 e 14).

É somente através da fidelidade à escuta e à obediência que o povo pode re-ceber plenamente os dons do Senhor. Infelizmente, é com amargura que Deus deve dar-se conta das numerosas infidelidades de Israel. O caminho no deserto, a que o Salmo faz alusão, está totalmente constelado de tais ac-tos de rebelião e de idolatria, que alcançarão o seu ápice na configuração do bezerro de ouro (cf. Êx 32, 1-4).

4. A última parte do Salmo (cf. vv. 14-17) tem uma tonalidade melancólica. Efectivamente, nele Deus exprime um desejo que até agora não foi satisfei-to: "Ah, se o meu povo me escutasse, se Israel andasse pelos meus cami-nhos!" (v. 14).

Porém, esta melancolia inspira-se no amor e está ligada a um profundo de-sejo de cumular de bens o povo eleito. Se Israel caminhasse pelas sendas do Senhor, eles poderiam dar imediatamente a vitória sobre os seus inimigos (cf. v. 15) e nutri-lo "com a flor do trigo" e saciá-lo "com o mel do rochedo" (v. 17). Seria um alegre banquete de pão fresquíssimo, acompanhado do mel que parece correr das rochas da terra prometida, representando a prosperi-dade e o completo bem-estar, como não raro se repete na Bíblia (cf. Dt 6, 3; 11, 9; 26, 9 e 15; 27, 3; e 31, 20). Com a apresentação desta maravilhosa perspectiva, evidentemente o Senhor procura obter a conversão do seu po-vo, uma resposta de amor sincero e efectivo ao seu amor, mais generoso do que nunca.

Na leitura cristã, a oferta divina revela a sua amplitude. Com efeito, Orí-genes oferece-nos esta interpretação: o Senhor "fê-los entrar na terra pro-metida; não os nutriu com o maná, como no deserto, mas com a semente que caiu na terra (cf. Jo 12, 24-25), que renasceu... Cristo é a semente; Ele é também a rocha que, no deserto, saciou o povo de Israel com a água. Em sentido espiritual, saciou-o com o mel, e não com a água, a fim de que quantos acreditarem e receberem este alimento, sintam o mel na sua boca" (Homilia sobre o Salmo 80, n. 17, em: Orígenes-Jerónimo, 74 Homilias sobre o Livro dos Salmos, Milão 1993, pp. 204-205).

5. Como sempre na história da salvação, a última palavra no contraste entre Deus e o povo pecador nunca é o juízo e o castigo, mas o amor e o perdão. Deus não deseja julgar nem condenar, mas salvar e libertar a humanidade do mal. Ele continua a repetir-nos as palavras que lemos no livro do Profeta Ezequiel: "Porventura sentirei prazer com a morte do injusto... O que eu quero é ele se converta dos seus maus caminhos, e viva (...) Por que motivo deveríeis morrer, casa de Israel? Eu não sinto prazer com a morte de nin-guém. Palavra oráculo do Senhor Deus. Convertei-vos e tereis a vida" (18, 23 e 31-32).

A liturgia torna-se o lugar privilegiado onde escutar o apelo divino à con-versão e voltar ao abraço do Deus "misericordioso e clemente, lento a en-colerizar-se, mas cheio de bondade e de fidelidade" (Êx 34, 6).
(24 de abril de 2002)

Salmo 83
Desejo do templo do Senhor

1. Damos continuidade ao nosso itinerário no âmbito dos Salmos da Litur-gia das Laudes. Ouvimos agora o Salmo 83, atribuído pela tradição judaica "aos filhos de Coré", uma família sacerdotal que se ocupava do serviço li-túrgico e guardava a entrada da tenda da arca da Aliança (cf. 1 Cor 9, 19).

Trata-se de um cântico muito suave, repassado por uma aspiração mística ao Deus da vida, celebrado várias vezes (cf. Sl 83, 2.4.9.13) com o título de "Senhor dos exércitos", isto é, Senhor das estrelas e, por conseguinte, do universo. Por outro lado, este título estava relacionado especialmente com a arca conservada no templo, chamada "a arca do Deus dos exércitos que se senta sobre os querubins" (1 Sm 4, 4; cf. Sl 79, 2). De facto, ela era sentida como o sinal da protecção divina nos dias do perigo e da guerra (cf. 1 Sm 4, 3-5; 2 Sm 11, 11).

O quadro de todo o Salmo está representado pelo templo para o qual se dirige a peregrinação dos fiéis. A estação parece ser a outonal, porque se fala da "primeira chuva" que alivia a aridez do Verão (cf. Sl 83, 7). Por isso, poderíamos pensar na peregrinção rumo a Sião, para a terceira festividade principal do ano hebraico, a dos Tabernáculos, memória da peregrinação de Israel no deserto.

2. O templo está presente com todo o seu fascínio desde o início até ao fim do Salmo. Na abertura (cf. vv. 2-4) encontramos a admirável e delicada i-magem das aves que construíram os seus ninhos no santuário, privilégio in-vejável.

Esta é uma representação da felicidade de todos os que como os sacerdotes do templo têm uma residência fixa na Casa de Deus, gozando da sua inti-midade e da sua paz. Com efeito, todo o ser do crente está orientado para o Senhor, estimulado por um desejo quase físico e instintivo: "A minha alma desfalece e consome-se pelos átrios do Senhor. O meu coração e a minha carne gritam de alegria de encontro ao Deus vivo" (v. 3). Depois, o templo volta a aparecer no fim do Salmo (cf. vv. 11-13). O peregrino exprime a sua grande felicidade de estar algum tempo nos átrios da casa de Deus e opõe esta felicidade espiritual à ilusão idólatra, que impulsiona para as "tendas dos ímpios", isto é, os templos aviltantes da injustiça e da perversão.

3. Só no santuário do Deus vivo existem a luz, a vida e a alegria, e é "bem-aventurado todo aquele que confia" no Senhor, escolhendo o caminho da rectidão (cf. vv. 12, 13). A imagem do caminho conduz-nos ao centro do Salmo (cf. vv. 5-9), onde se desenvolve outra peregrinação mais sig-nificativa. Se é bem-aventurado aquele que habita no templo de maneira estável, é muito mais bem-venturado aquele que decide empreender uma viagem de fé até Jerusalém.

Também os Padres da Igreja nos seus comentários ao Salmo 83 dão um realce particular ao v. 6: "Felizes os que em Vós têm a sua força, que têm a peito as peregrinações". As antigas traduções do Saltério falavam da decisão de realizar as "ascensões" rumo à cidade santa. Portanto, para os Padres, a peregrinação a Sião tornava-se o símbolo do progresso contínuo dos justos para as "tendas eternas", onde Deus acolhe os seus amigos na alegria total (cf. Lc 16, 9).

Gostaríamos de nos deter um momento acerca desta "ascensão" mística, que tem na peregrinação terrena uma imagem e um sinal. E fá-lo-emos com as palavras de um escritor cristão do século VII, abade do mosteiro do Sinai.

4. Trata-se de São João Clímaco, que dedicou um tratado inteiro A Escada do Paraíso para explicar os numerosos degraus pelos quais a vida espiritual se eleva. No fim da sua obra ele cede a palavra à própria caridade, situada no cimo da escada do progresso espiritual.

É ela que convida e exorta, propondo sentimentos e atitudes que já foram sugeridos pelo nosso Salmo: "Subi, irmãos, ascendei. Cultivai, no vosso co-ração o profundo desejo de subir sempre (cf. 83, 6). Escutai as Escrituras que convidam: "Vinde, subamos à Montanha do Senhor, à Casa do Deus de Jacob" (Is 2, 3), que fez os nossos pés rápidos como os de um cervo e nos indicou como meta um lugar sublime, para que, seguindo as suas veredas, saíssemos vencedores (cf. Sl 17, 33). Apressemo-nos, então, todos como es-tá escrito enquanto não tivermos encontrado, na unidade da fé, o rosto de Deus, e reconhecendo-O, não tivermos alcançado o homem perfeito na maturidade completa da idade de Cristo (cf. Ef 4, 13)" (A Escada do Paraíso, Roma 1989, pág. 355).

5. Em primeiro lugar, o Salmista pensa na peregrinação concreta que, de Sião, conduz às várias localidades da Terra Santa. A chuva que está a cair parece ser uma antecipação das bênçãos jubilosas que o envolverão como um manto (cf. Sl 83, 7) quando estiver diante do Senhor no templo (cf. v. 8). A viagem cansativa através "do vale do pranto" (cf. v. 7) é transfigurada pela certeza de que a meta é Deus, aquele que dá vigor (cf. v. 8), escuta a súplica do fiel (cf. v. 9) e torna-se o seu "escudo" protector (cf. v. 10).

É precisamente nesta luz que a peregrinação concreta se transforma como intuíram os Padres numa parábola da vida inteira, passada entre o afasta-mento e a intimidade com Deus, entre o mistério e a revelação. Também no deserto da existência quotidiana, os seis dias de trabalho semanal são fecun-dados, iluminados e santificados pelo encontro com Deus no sétimo dia a-través da liturgia e da oração.

Caminhemos, então, também quando estamos no "vale do pranto", tendo o olhar fixo naquela meta luminosa de paz e de comunhão. Também nós re-petimos no nosso coração a bem-aventurança final, semelhante a uma antí-fona que conclui o Salmo: "Senhor dos exércitos, feliz o homem que em vós confia!" (v. 13).
(28 de agosto de 2002)

Salmo 84
A nossa salvação está próxima

1. O Salmo 84, que agora proclamámos, é um cântico jubiloso e repleto de esperança no futuro da salvação. Ele reflecte o momento exaltante da volta de Israel do exílio na Babilónia para a terra dos antepassados. A vida nacio-nal recomeça naquele querido lar, que tinha sido apagado e destruído pela conquista de Jerusalém por parte do exército do rei Nabucodonosor, em 586 a.C.

De facto, no original hebraico do Salmo ouve-se ressoar repetidamente o verbo shûb, que indica a vinda dos deportados, mas significa também "vin-da" espiritual, isto é, "conversão". Por conseguinte, o renascimento não se refere apenas à nação, mas também às comunidades dos fiéis, que tinham vivido o exílio como uma punição dos pecados cometidos e que viam agora a repatriação e a nova liberdade como uma bênção divina, em virtude da conversão alcançada.

2. O Salmo pode ser acompanhado no seu desenvolvimento, segundo duas etapas fundamentais. A primeira, marcada pelo tema da "vinda", com todos os valores que mencionámos.
Celebra-se antes de tudo a vinda física de Israel: "Senhor... Vós sois quem restaurais a parte de Jacob" (v. 2); "Restaurai-nos, ó Deus, nossa salvação... Será que já não nos restituirás a vida...?" (vv. 5.7). Este é um precioso dom de Deus, que se preocupa em libertar os seus filhos da opressão e se empe-nha na sua prosperidade. Com efeito, Ele "ama tudo o que existe... perdoa a todos, porque todos são dele, o Senhor que ama a vida" (cf. Sb 11, 24.26).

Mas, paralelamente a esta "vinda", que na prática unifica os dispersos, há outra "vinda", mais interior e espiritual. O Salmista reserva-lhe um amplo espaço, atribuindo-lhe um relevo particular, que é válido não só para o an-tigo Israel mas para os fiéis de todos os tempos.

3. Nesta "vinda" o Senhor age eficazmente, revelando o seu amor ao per-doar a iniquidade do seu povo, ao eliminar todos os seus pecados, ao aban-donar todo o seu desdém e ao pôr fim à sua ira (cf. Sl 84, 3-4).

Precisamente a libertação do mal, o perdão das culpas e a purificação dos pecados criam um novo povo de Deus. Isto é expresso através de uma in-vocação, que também entrou na liturgia cristã: "Concedei, Senhor, que veja-mos os vossos favores; seja-nos oferecida a vossa salvação" (v. 8).

Mas a esta "vinda" de Deus que perdoa deve corresponder a outra "vinda", isto é, a conversão do homem que se arrepende. De facto, o Salmo declara que a paz e a salvação são oferecidas a quem "já não voltará ao desvio" (cf. v. 9). Quem percorre com decisão os caminhos da santidade recebe os dons da alegria, da liberdade e da paz.

Sabemos que, com frequência, as palavras bíblicas que se referem ao peca-do recordam um enganar-se no caminho, um falhar a meta, um desviar-se da via recta. A conversão é, precisamente, um "voltar" para o caminho linear, que leva para a casa do Pai, que nos espera para nos abraçar, perdoar e nos fazer felizes (cf. Lc 15, 11-32).

4. Assim, chegamos à segunda parte do Salmo (cf. Sl 84, 10-14), tão queri-da à tradição cristã. Nela é descrito um mundo novo, em que o amor de Deus e a sua fidelidade, como se fossem pessoas, se abraçam; de modo se-melhante, também a justiça e a paz se beijam, quando se encontram. A ver-dade germina como numa renovada primavera; e a justiça, que para a Bíblia é também salvação e santidade, desce do céu para começar o seu caminho no meio da humanidade.
Todas as virtudes, primeiro expulsas da terra devido ao pecado, entram ago-ra de novo na história e, cruzando-se, desenham o mapa de um mundo pací-fico. Misericórdia, verdade, justiça e paz tornam-se como que os quatro pontos cardeais desta geografia do espírito. Também Isaías canta: "Destilai, ó céus, lá das alturas, o orvalho, e as nuvens façam chover a vitória; abra-se a terra e produza o fruto da salvação; ao mesmo tempo faça germinar a jus-tiça! Eu sou o Senhor, que crio tudo isto" (45, 8).

5. As palavras do Salmista, já no segundo século com Santo Ireneu de Lião, foram interpretadas como anúncio da "geração de Cristo por parte da Vir-gem" (Adversus haereses, III, 5, 1). Com efeito, a vinda de Cristo é a fonte da misericórdia, o desabrochar da verdade, o florescer da justiça e o esplen-dor da paz.

Por isso o Salmo, sobretudo na sua parte final, é lido de novo em chave na-talícia pela tradição cristã. Eis como o interpreta Santo Agostinho, num dos seus discursos para o Natal. Deixemos que seja ele a concluir a nossa refle-xão. ""A verdade surgiu da terra": Cristo, que disse: "Eu sou a verdade" (Jo 14, 6) nasceu da Virgem. "E a justiça aproximou-se do céu": quem crê n'Aquele que nasceu, não se justifica sozinho, mas é justificado por Deus. "A verdade surgiu da terra": porque "o Verbo se fez homem" (Jo 1, 14). "E a justiça aproximou-se do céu"; porque "qualquer graça excelente e qual-quer dom perfeito provêm do alto" (Tg 1, 17). "A verdade surgiu da terra", isto é, tomou um corpo de Maria. "E a justiça aproximou-se do céu"; porque "o homem nada pode receber se não lhe for concedida pelo céu" (Jo 3, 27)" (Discursos, IV/1, Roma 1984, pág. 11).
(25 de setembro de 2002)

Salmo 85
Oração a Deus na aflição

1. O Salmo 85, que agora foi proclamado e que será objecto da nossa refle-xão, oferece-nos uma sugestiva definição do orante. Ele apresenta-se a Deus com estas palavras: sou "Vosso servo" e "filho da Vossa serva" (v. 16). Sem dúvida, a expressão pode pertencer à linguagem do cerimonial de corte, mas também era usada para indicar o servo adoptado como filho do chefe de u-ma família ou de uma tribo. Sob esta luz, o Salmista, que se define também "fiel" do Senhor (cf. v. 2), sente que está ligado a Deus por um vínculo não só de obediência, mas também de familiaridade e de comunhão. Por isso a sua súplica está impregnada de confiante abandono e de esperança.

Seguimos agora esta oração que a Liturgia das Laudes nos propõe no início de um dia que, presumivelmente, apresentará não só compromissos e fadi-gas, mas também incompreensões e dificuldades.

2. O Salmo começa com um apelo intenso, que o orante dirige ao Senhor confiando no seu amor (cf. vv. 1-7). No final, ele exprime de novo a certeza de que o Senhor é um "Deus piedoso e compassivo, paciente, grande na bondade e na fidelidade" (v. 15; cf. Êx 34, 6). Estas afirmações reiteradas e convictas de confiança revelam uma fé intacta e pura, que se abandona ao "Senhor bom... cheio de misericórdia para todos os que Vos invocam" (Sl 85, 5).

No centro do Salmo eleva-se um hino, que alterna sentimentos de agradeci-mento com uma profissão de fé nas obras de salvação que Deus realiza para os povos (cf. vv. 8-13).

3. Contra qualquer tentação idolátrica, o orante proclama a unicidade abso-luta de Deus (cf. v. 8). Depois é expressa a esperança audaciosa que um dia "todos os povos" adorarão o Deus de Israel (v. 9). Esta perspectiva mara-vilhosa encontra o seu cumprimento na Igreja de Cristo, porque ele convi-dou os seus apóstolos a ensinar "todas as nações" (Mt 28, 19). Ninguém po-de oferecer uma libertação total, a não ser o Senhor do qual todos dependem como criaturas e ao qual nos devemos dirigir em atitude de adoração (cf. Sl 85, 9). De facto, ele manifesta no cosmos e na história as suas obras admi-ráveis, que testemunham a sua senhoria absoluta (cf. v. 10).

A este ponto o Salmista recorta um espaço para se apresentar diante de Deus com uma pergunta intensa e pura: Ensinai-me, Senhor, o Vosso cami-nho e caminharei na verdade, dirigi o meu coração para que tema o Vosso nome" (v. 11). É bonito este pedido para poder conhecer a vontade de Deus, e esta invocação para poder obter o dom de "um coração simples", seme-lhante ao de uma criança, que sem segundas intenções nem cálculos se con-fia plenamente ao Pai para se encaminhar pelas veredas da vida.

4. Surge então nos lábios do fiel o louvor ao Deus misericordioso, que não o deixa precipitar no desespero e na morte, nem no mal nem no pecado (cf. vv. 12-13; Sl 15, 10-11).
O Salmo 85 é um texto querido ao judaísmo, que o inseriu na liturgia de uma das solenidades mais importantes, o Yôm Kippur ou dia da expiação. O livro do Apocalipse, por sua vez, tirou dele um versículo (cf. v. 9), colo-cando-o na gloriosa liturgia celeste dentro do "cântico de Moisés, servo de Deus, e do cântico do Cordeiro": "Todas as nações virão prostrar-se diante de Ti", e o Apocalipse acrescenta: "pois os teus juízos foram manifestados" (Ap 15, 4).

Santo Agostinho dedicou ao nosso Salmo um longo e apaixonado comen-tário num cântico a Cristo e ao cristianismo. A tradução latina, no v. 2, con-forme com a versão grega do Livro dos Setenta, em vez de "fiel" usa a ver-são "santo": "Guarda-me porque sou santo". Na realidade, só Cristo é santo. Todavia, raciocina Santo Agostinho, também o cristão pode aplicar a si es-tas palavras: "Sou santo, porque tu me santificaste; porque o recebi [este tí-tulo], e não porque o tinha eu mesmo; porque tu mo concedeste, não porque eu o mereci". Por conseguinte, "digam também todos os cristãos, ou melhor, diga-o todo o corpo de Cristo, grite-o em toda a parte, enquanto sofre as tri-bulações, as várias tentações, os numerosos escândalos: "Guarda a minha alma, porque sou santo! Salva o teu servo, meu Deus, que espera em ti". Eis que este santo não é soberbo, porque confia no Senhor" (vol. II, Roma 1970, pág. 1251).

5. O cristão santo abre-se à universalidade da Igreja e reza com o Salmista: "Todas as nações que criaste virão colocar-se perante Vós, ó Senhor" (Sl 85, 9). E Agostinho comenta: "Todas as nações no único Senhor são um só po-vo e constituem a unidade. Assim como existe a Igreja e as igrejas, e as i-grejas são a Igreja, assim aquele "povo" é o mesmo que os povos. Inicial-mente, eram vários povos, numerosas nações; agora é um só povo. Por quê um só povo? Porque há uma só fé, uma só esperança, uma só caridade, e uma única expectativa. Por fim, porque não deveria ser um só povo, se a pá-tria é uma só? A pátria é o céu, a pátria é Jerusalém. E este povo está espa-lhado do oriente até ao ocidente, do norte até ao mar, nas quatro partes do mundo inteiro" (ibid., pág. 1269).

Sob esta luz universal a nossa oração litúrgica transforma-se num suspiro de louvor e num cântico de glória ao Senhor em nome de todas as criaturas.
(23 de outubro de 2002)

Salmo 86
Jerusalém, mãe de todos os povos

1. O cântico a Jerusalém, cidade da paz e mãe universal, que agora ouvimos ressoar, encontra-se infelizmente em contraste com a experiência histórica que a cidade está a viver. Tarefa da oração é semear confiança e gerar espe-rança.

A perspectiva universal do Salmo 86 pode levar a pensar no Hino do Livro de Isaías, que vê convergir para Sião todos os povos para ouvir a Palavra do Senhor e redescobrir a beleza da paz, transformando "as espadas em relhas de arados" e "as suas lanças em foices" (cf. 2, 2-5). Na realidade, o Salmo coloca-se numa perspectiva muito diferente, a de um movimento que, em vez de convergir para Sião, parte de Sião; o Salmista vê em Sião a origem de todos os povos. Depois de ter declarado a primazia da cidade santa não por méritos históricos ou culturais, mas apenas devido ao amor que Deus tem por ela (cf. Sl 86, 1-3), o Salmo abre-se precisamente para uma celebra-ção deste universalismo que irmana todos os povos.

2. Sião é cantada como mãe de toda a humanidade e não só de Israel. Esta a-firmação possui uma audácia extraordinária. O Salmista está consciente dis-to e fá-lo notar: "Gloriosas coisas se apregoam de ti, ó cidade de Deus" (v. 3). Como pode uma modesta capital de uma pequena nação ser apresentada como a origem de povos muito poderosos? Por que pode ter, Sião, esta grande pretensão? A resposta é dada na mesma frase: Sião é mãe de toda a humanidade, porque é a "cidade de Deus"; por conseguinte, está na base do projecto de Deus.

Todos os pontos cardeais da terra estão em relação com esta mãe: Raab, ou seja, o Egipto, o grande estado ocidental; Babilónia, a conhecida potência o-riental; Tiro, que personifica o povo comercial do norte, enquanto a Etiópia representa o sul profundo e a Palestina a área central, também ela filha de Sião.

Na repartição de registo espiritual de Jerusalém estão inscritos todos os po-vos da terra: é repetida três vezes a frase "Ali nasceram / Este nela nasceu" (vv. 4.5.6). É a expressão jurídica oficial com a qual na época se declarava que uma pessoa tinha nascido numa determinada cidade e, como tal, gozava da plenitude dos direitos civis daquele povo.

3. É sugestivo observar que até as nações consideradas hostis a Israel su-biam a Jerusalém e nela eram recebidas não como estrangeiros mas como "familiares". Aliás, o Salmista transforma a procissão destes povos rumo a Sião num cântico coral e numa dança gloriosa: eles encontram as suas "fon-tes" (cf. v. 7) na cidade de Deus da qual promana um torrente de água viva que fecunda todo o mundo, em sintonia com quanto foi proclamado pelos profetas (cf. Ez 47, 1-12; Zc 13, 1; 14, 8; Ap 22, 1-2).

Todos devem descobrir em Jerusalém as suas raízes espirituais, sentir-se na sua pátria, sentir-se membros da mesma família, abraçar-se como irmãos, que voltaram para a sua casa.

4. O Salmo 86, página de verdadeiro diálogo inter-religioso, reúne a herança universal dos profetas (cf. Is 56, 6-7; 60, 6-7; 66, 21; Job 4, 10-11; Mal 1, 11, etc.) e antecipa a tradição cristã que aplica este Salmo à "Jerusalém lá de cima", da qual São Paulo proclama que "é livre e é a nossa mãe" e tem mais filhos do que a Jerusalém terrena (cf Gl 4, 26-27). O Apocalipse fala do mesmo modo quando canta a "Jerusalém que desce do Céu, de junto de Deus" (21, 2.10).

Em continuidade com o Salmo 86 também o Concílio Vaticano II vê na Igreja universal o lugar em que se encontram reunidos "todos os justos a co-meçar por Adão, desde o justo Abel, até ao último eleito". Ela será "consu-mada na glória no fim dos séculos" (Lumen gentium, 2).

5. Esta leitura eclesial do Salmo abre-se, na tradição cristã, a uma nova lei-tura em chave mariológica. Jerusalém era, para o Salmista uma verdadeira "metrópole", isto é, uma "cidade-mãe", dentro da qual se encontrava o pró-prio Senhor (cf. Sof 3, 14-18). A esta luz, o cristianismo canta Maria como a Sião viva, em cujo seio é gerado o Verbo encarnado e por conseguinte são regenerados os filhos de Deus. As vozes dos Padres da Igreja de Ambrósio de Milão a Atanásio de Alexandria, de Máximo, o Confessor a João Damas-ceno, de Cromácio de Aquileia a Germano de Constantinopla concordam com esta nova leitura cristã do Salmo 86.

Preparemo-nos agora para ouvir um mestre da tradição arménia, Gregório de Narek (c. 950-1010), que no seu Discurso panegírico da bem-aventurada Virgem Maria assim se dirige à Virgem: "Refugiando-nos sob a tua dignís-sima e poderosa intercessão, estamos protegidos, ó santa Mãe de Deus, en-contrando alívio sob a sombra de tua protecção como protegidos por um muro bem fortificado: muro ornamentado, embutido graciosamente por bri-lhantes puríssimos; muro envolvido de fogo e, por isso, invencível perante os assaltos dos ladrões; muro resplandecente de centelhas, ao qual os cruéis traidores não podem chegar nem aceder; muro circundado por todos os la-dos, segundo David, cujas bases foram lançadas pelo Altíssimo (cf. Sl 86, 1.5); muro poderoso da cidade do alto, segundo São Paulo (cf. Gl 4, 26; Hb 12, 22), onde recebeste todos como habitantes, porque mediante o nasci-mento corporal de Deus fizestes filhos da Jerusalém lá do alto os filhos da Jerusalém terrena. Por isso, os seus lábios bendizem o teu seio virginal e to-dos te proclamam morada e templo d'Aquele que é consubstancial ao Pai. Por isso, justamente se adapta bem a ti a frase do profeta: "Foste para nós refúgio e fortaleza, ajuda sempre pronta nas angústias" (cf. Sl 45, 2)" (Tex-tos marianos do primeiro milénio, IV, Roma 1991, pág. 589).
(13 de novembro de 2002)

Salmo 89
Desça sobre nós a bondade do Senhor

1. Os versículos que agora ressoaram aos nossos ouvidos e aos nossos cora-ções constituem uma meditação sábia que tem, contudo, também uma en-toação de súplica. De facto, o orante do Salmo 89 coloca no centro da sua oração um dos temas mais explorados da filosofia, mais cantados pela poe-sia, mais sentidos pela experiência da humanidade de todos os tempos e de todas as regiões do nosso planeta: a caducidade humana e a fluência do tem-po.

Pensamos em certas páginas inesquecíveis do Livro de Job nas quais é fo-cada a nossa fragilidade. De facto, nós somos como "os que habitam mo-radas de barro e que têm sua origem no pó! São esmagados como um ver-me, entre a noite e a manhã são aniquilados. Desaparecem para sempre e ninguém se recorda deles" (4, 20-21). A nossa vida na terra é "como uma sombra" (cf. Job 8, 9). É ainda Job quem confessa: "os meus dias passaram mais rápidos que um corcel, fugiram sem terem visto a felicidade. Passaram como barcas de junco. Como a águia que se precipita sobre a presa" (9, 25-26).
2. No começo do seu cântico, que se parece com uma elegia (cf. Sl 89, 2-6), o Salmista opõe com insistência a eternidade de Deus ao tempo efémero do homem. Eis a declaração mais explícita: "Mil anos, diante de vós, são como o dia de ontem que já passou, ou como uma vigília da noite" (v. 4).

Como consequência do pecado original, de uma ordem divina, volta a cair na poeira da qual foi tirado, como já se afirma na narração do Génesis: "Re-corda-te que és pó e em pó te tornarás!" (3, 19; cf. 2, 7). O Criador, que dá forma em toda a sua beleza e complexidade à criatura humana, é também aquele que "reduz o homem ao pó" (Sl 89, 3). E "pó" na linguagem bíblica é expressão simbólica também da morte, do inferno, do silêncio sepulcral.

3. Nesta súplica é forte o sentido da limitação humana. A nossa existência tem a fragilidade da erva que brota ao alvorecer; imediatamente ouve o barulho da foice que a reduz a um feixe de erva. Muito depressa, o viço da vida é substituído pela aridez da morte (cf. vv. 5-6; cf. Is 40, 6-7; Job 14, 1-2; Sl 102, 14-16).

Como acontece com frequência no Antigo Testamento, a esta debilidade ra-dical o Salmista associa o pecado: existe em nós a limitação, mas também a culpa. Por isso, a cólera e o juízo do Senhor parecem ameaçar também a nossa existência: "Somos consumidos pela Vossa ira, estarrecidos pelo Vos-so furor. Pusestes as nossas culpas diante de Vós... Todos os nossos dias se esvanecem perante o Vosso desagrado" (Sl 89, 7-9).

4. Com o aparecimento do novo dia a Liturgia das Laudes desperta-nos, com este Salmo, das nossas ilusões e do nosso orgulho. A vida humana é li-mitada "a soma da nossa vida é de setenta anos, os mais fortes chegam aos oitenta" afirma o orante. Além disso, o passar das horas, dos dias e dos me-ses é marcado pela "canseira e pelo sofrimento" (cf. v. 10) e os mesmos a-nos revelam-se ser semelhantes a "um sopro" (cf. v. 9).

Eis, então, a grande lição: o Senhor ensina-nos a "contar os nossos dias" porque, "aceitando-os com realismo sadio, "alcançaremos a sabedoria do coração" (v. 12). Mas o orante pede a Deus algo mais: a sua graça ampare e dê alegria aos nossos dias, apesar de serem escassos e marcados pelas pro-vações. Faça com que saboreemos a esperança, mesmo se o passar do tempo parece arrastar-nos. Só a graça do Senhor pode dar consistência e pereni-dade às nossas acções quotidianas: "Venham sobre nós as graças do Senhor, nosso Deus; consolidai em nós a obra das nossas mãos, fazei que prospere a obra das nossas mãos" (v. 17).

Pedimos a Deus com a oração que um reflexo da eternidade penetre a nossa vida breve e as nossas acções. Com a presença da graça divina em nós, uma luz brilhará com o passar dos dias, a miséria tornar-se-á glória, o que parece estar privado de sentido adquirirá significado.

5. Concluímos a nossa reflexão sobre o Salmo 89 deixando a palavra à anti-ga tradição cristã, que comenta o Saltério tendo como base a figura gloriosa de Cristo. Assim, para o escritor cristão Orígenes, no seu Tratado sobre os Salmos, que chegou até nós com a tradução latina de São Jerónimo, é a ressurreição de Cristo que nos dá a possibilidade, pressentida pelo Salmista, de "exultar e rejubilar todos os dias da nossa vida" (cf. v. 14). E isto porque a Páscoa de Cristo é a fonte da nossa vida para além da morte: "Depois de nos termos alegrado com a ressurreição de nosso Senhor, mediante a qual já acreditamos que fomos redimidos e que um dia também nós ressuscitare-mos, agora, transcorrendo na alegria os dias da nossa vida que ainda nos fal-ta viver, exultamos por esta confiança, e com hinos e cânticos espirituais louvamos Deus através de Jesus Cristo nosso Senhor" (Orígenes Jerónimo, 74 homilias sobre o livro dos Salmos, Milão 1993, pág. 652).
(26 de março de 2003)

Salmo 91
Louvor ao Senhor criador

1. A Antiga tradição hebraica reserva um lugar particular ao Salmo 91, que agora ouvimos como cântico do homem justo ao Deus criador. O título atri-buído ao Salmo indica, de facto, que ele é destinado ao dia de sábado (cf. v. 1). É, pois, o hino que se eleva ao Senhor eterno e glorioso quando, ao pôr do sol de sexta-feira, se entra no santo dia da oração, da contemplação, do sereno repouso do corpo e do espírito.

No centro do Salmo, ergue-se, solene e grandiosa, a figura do Deus altís-simo (cf. v. 9), à volta do qual se esboça um mundo harmonioso e em paz. Perante ele é colocada também a pessoa do justo que, segundo uma con-cepção querida ao Antigo Testamento, está repleto de bem-estar, alegria e longa vida, como natural consequência da sua existência honesta e fiel. Trata-se da denominada "teoria da retribuição", pela qual todo o delito tem um castigo sobre a terra e todo o acto bom tem uma recompensa. Mesmo se há nesta visão uma componente de verdade, todavia como Job fará pensar e como dirá Jesus (cf. Jo 9, 2-3) a realidade da dor humana é muito mais complexa e não pode ser simplificada tão facilmente. O sofrimento humano, de facto, deve ser considerado na perspectiva da eternidade.

2. Mas examinemos agora este hino sapiencial através dos aspectos litúr-gicos. Ele é constituído por um intenso apelo ao louvor, ao canto alegre da acção de graças, ao ar de festa da música, marcada pela harpa de dez cordas, pela lira e pela cítara (cf. vv. 2-4). O amor e a fidelidade do Senhor devem ser celebrados através do canto litúrgico que é conduzido "com arte" (cf. Sl 46, 8). Este convite vale também para as nossas celebrações, porque encon-tram sempre um resplendor não só nas palavras e nos ritos, mas também nas melodias que o animam.

Depois deste apelo a não extinguir mais o fio interior e exterior da oração, verdadeira respiração constante da humanidade fiel, o Salmo 91 propõe, em duas imagens, o perfil do ímpio (cf. vv. 7-10) e do justo (cf. vv. 13-16). O ímpio, porém, é posto perante o Senhor, "o excelso para sempre" (v. 9), que fará morrer os seus inimigos e dispersará todos os que fazem o mal (cf. v. 9). De facto, só à luz divina se consegue compreender em profundidade o bem e o mal, a justiça e a perversão.

3. A figura do pecador é delineada com uma imagem vegetal: "os pecadores germinam como a erva e florescem todos os que fazem o mal" (v.8). Mas este florescer está destinado a secar e a desaparecer. O Salmista, efectiva-mente, multiplica os verbos e as palavras que descrevem a destruição: "Es-pera-os uma ruína eterna... os teus inimigos, Senhor, perecerão, serão dis-persos todos os que fazem o mal" (vv 8.10).

Na raiz deste êxito catastrófico está o mal profundo que ocupa o espírito e o coração do perverso: "O homem insensato não compreende e o estulto não penetra nestas coisas" (v. 7). Os adjectivos aqui usados pertencem à língua-gem sapiencial e denotam a brutalidade, a cegueira, a surdez de quem pensa poder tornar-se perverso sobre a face da terra, sem travões morais, com a ilusão de que Deus está ausente e indiferente. O orante, por outro lado, está certo de que o Senhor, mais cedo ou mais tarde, aparecerá no horizonte para fazer justiça e dobrar a arrogância do insensato (cf Sl 13).
4. Eis-nos, pois, diante da figura do justo, representada como uma grande pintura e cheia de cores. Também neste caso se recorre a uma imagem vege-tal, fresca e verdejante (cf. Sl 91, 13-16). Diferente do ímpio que é como a erva dos campos, viçosa mas passageira, o justo ergue-se para o céu, sólido e majestoso como a palmeira e o cedro do Líbano. Por outro lado, os justos "estão plantados na casa do Senhor" (v. 14) isto é, têm uma relação muito mais sólida e estável com o templo e, por isso, com o Senhor, que nele es-tabeleceu a sua morada.

A tradição cristã jogará também com o duplo significado da palavra grega phoinix, usada para traduzir o termo hebraico que indica a palmeira. Phoi-nix é o nome grego da palmeira, mas também o da ave que chamamos "fé-nix". Ora, é sabido que a fénix era símbolo da imortalidade, porque se ima-ginava que aquela ave renascia das próprias cinzas. O cristão faz uma expe-riência semelhante graças à sua participação na morte de Cristo, fonte de vi-da nova (cf. Rm 6, 3-4). "Deus... de mortos que estávamos pelos pecados, fez-nos reviver em Cristo" diz a Carta aos Efésios com ele também nos ressuscitou" (2, 5-6).

5. Uma outra imagem representa o justo e é de tipo animal, destinada a exal-tar a força que Deus concede, mesmo quando chega a velhice: "Tu me dás força como a de um búfalo, e me unges com óleo novo" (Sl, 91, 11). Por um lado, o dom da potência divina faz triunfar e dá segurança (cf. v. 12); por outro, a fronte gloriosa do justo é consagrada pelo óleo que dá uma energia e uma bênção protectora. O Salmo 91 é, pois, um hino de optimismo, forta-lecido pela música e pelo canto. Ele celebra a confiança em Deus que é fonte de serenidade e paz, mesmo quando se assiste ao sucesso aparente do ímpio. Uma paz que é completa mesmo na velhice (cf. v. 15), estação vivida ainda na fecundidade e na segurança.

Concluímos com as palavras de Orígenes, traduzidas por São Jerónimo, que tiram a sua razão da frase em que o salmista diz a Deus: "unges-me com óleo novo" (v. 11). Orígenes comenta: "A nossa velhice tem necessidade do óleo de Deus. Como quando os nossos corpos estão cansados não se fortale-cem senão ungindo-os com o óleo; como a chamazinha da lâmpada se extin-gue se não lhe acrescentamos óleo, assim também, a chamazinha da minha velhice tem necessidade, para crescer, do óleo da misericórdia de Deus. De resto, também os Apóstolos sobem ao monte das Oliveiras (cf. Act 1, 12), para receber luz do óleo do Senhor, pois estavam cansados e as suas lâmpa-das tinham necessidade do óleo do Senhor... Por isso, rezemos ao Senhor para que a nossa velhice, toda a nossa fadiga e todas as nossas trevas sejam iluminadas pelo óleo do Senhor" (74 Homilias sobre o Livro dos Salmos, Milão, 1993, pp. 280-282, passim).
(12 de junho de 2002)

Salmo 91
Louvor ao Senhor Criador

1. O cântico que acaba de nos ser proposto é o cântico de um homem fiel a Deus. Trata-se do Salmo 91 que, como sugere o título da composição, era u-sado pela tradição judaica "para o dia do sábado" (v. 1). O hino abre com um amplo apelo a celebrar e a louvar o Senhor com o canto e a música (cfr. vv. 2-4). É um movimento de oração que parece nunca ser interrompido, porque o amor divino deve ser exaltado de manhã, quando se começa o dia, mas deve ser também proclamado durante o dia e no decurso das horas noc-turnas (cfr. v. 3). Até a referência aos instrumentos musicais, que o salmista faz no convite da introdução, levou Santo Agostinho a esta meditação no in-terior da sua Exposição sobre o Salmo 91: "Que significa, irmãos, aclamar com o saltério? O saltério é um instrumento musical dotado de cordas. O nosso saltério é o nosso trabalho. Todo aquele que, com as mãos, realiza o-bras boas, aclama a Deus com o saltério. Todo aquele que proclama Deus com a boca, canta a Deus. Canta com a boca! Salmodia com as obras!... Mas, então, quem são aqueles que cantam? Aqueles que realizam o bem com alegria. O canto, de facto, é sinal de alegria. Que diz o Apóstolo? "Deus ama o que dá com alegria (2 Cor 9, 7). Qualquer coisa que tu faças, fá-la com alegria. Então, faz o bem e fá-lo bem. Se, ao contrário, trabalhas com tristeza, mesmo que por teu intermédio se faça o bem, não és tu a fazê-lo: diriges o saltério, não cantas". (Esposizioni sui Salmi, III, Roma,1976, pp. 192-195).

2. Através das palavras de Santo Agostinho podemos entrar no coração da nossa reflexão e enfrentar o tema fundamental do Salmo: o do bem e do mal. Um e outro são avaliados por Deus justo e santo, "o eternamente ex-celso"(v.9), Aquele que é eterno e infinito, a que não foge nenhuma das ac-ções do homem.

Confrontam-se, assim, de modo renovado, dois comportamentos opostos. A conduta do fiel é dedicada a celebrar as obras divinas, a penetrar na profun-didade dos pensamentos do Senhor e, por este caminho, a sua vida irradia luz e alegria (cfr. vv. 5-6). Pelo contrário, o homem perverso é descrito na sua insensatez, incapaz como é de compreender o secreto sentido das vicis-situdes humanas. A sorte momentânea torna-o arrogante, mas na realidade, ele é intimamente frágil e está votado, depois de um sucesso efémero, à queda e à ruína (cfr. vv. 7-8), O Salmista, seguindo um modelo interpretati-vo caro ao Antigo Testamento, o da retribuição, está convencido de que Deus recompensará os justos já neste mundo, dando-lhes uma velhice feliz (cfr. v. 15) e depressa castigará os maus.

Na realidade, como afirmará Job e Jesus ensinará, a história não é interpre-tável tão linearmente. A visão do salmista torna-se, por isso, uma súplica ao Deus justo e "excelso" (cfr. v. 9), para que entre na série dos acontecimen-tos humanos para os julgar, fazendo resplandecer o bem.

3. O contraste entre o justo e o ímpio é, depois, retomado pelo orante. Por um lado, eis os "inimigos" do Senhor, os "malfeitores", mais uma vez vota-dos à dispersão e à derrota. (cfr. v. 10). Por outro, os fiéis aparecem em todo o seu esplendor, incarnados pelo Salmista que se descreve a si mesmo com imagens pitorescas, extraídas da simbologia oriental.

O justo tem a força irresistível de um búfalo e está pronto para desafiar qualquer adversidade; a sua fronte gloriosa está consagrada com o óleo da protecção divina, que se torna semelhante a um escudo, que defende o eleito tornando-o seguro. (cfr. v. 11). Do alto do seu poder e da sua segurança, o orante vê os iníquos a precipitarem-se no abismo da sua ruína (cfr. v. 12).

O Salmo 91 inspira, pois, felicidade, confiança e optimismo: dons que de-vemos pedir a Deus também no nosso tempo, em que se insinua facilmente a tentação da desconfiança e até do desespero.

4. O nosso hino, na esteira da profunda serenidade que o invade, lança no fi-nal um olhar sobre os dias da velhice dos justos e prevê-os igualmente sere-nos. Mesmo quando estes dias chegarem, o espírito do orante estará ainda vivaz, alegre e operoso (cfr. v. 15). Ele sente-se semelhante às palmeiras e aos cedros, que estão plantados nos átrios do templo de Sião (cfr. vv. 13-14).

As raízes do justo fundamentam-se no próprio Deus de quem recebe a linfa da graça divina. A vida do Senhor alimenta-o e transforma-o, tornando-o florido e viçoso, isto é, em posição de dar aos outros e de testemunhar a própria fé. As últimas palavras do Salmista, nesta descrição de uma exis-tência justa e operosa e de uma velhice intensa e activa, estão, de facto, liga-das ao anúncio da perene fidelidade do Senhor (cfr. v. 16). Poderemos, por isso, concluir agora com a proclamação do canto que sobe ao Deus glorioso no último Livro da Bíblia, o Apocalipse: um livro de luta terrível entre o bem e o mal, mas também de esperança na vitória final de Cristo: "grandes e maravilhosas são as Tuas obras, Senhor Deus, Todo-Poderoso! Justos e verdadeiros são os Teus caminhos, ó Rei das nações... Porque só Tu és san-to e todas as nações virão prostrar-se diante de Ti, pois os Teus juízos foram manifestados. Justo és Tu, Ó Senhor, que és e que eras, e és Santo, por assim teres feito justiça. Sim, Senhor, Deus Todo-Poderoso, os Teus juízos são verdadeiros e justos" (15, 3-4; 16, 5. 7).
(3 de setembro de 2003)

Salmo 92
O poder de Deus Criador

1. O conteúdo do Salmo 92, sobre o qual hoje nos detemos, é sugestivamen-te expresso por alguns versículos do Hino que a Liturgia das Horas propõe para as vésperas da segunda-feira: "Ó imenso criador, / que ao ímpeto das correntes marcastes o percurso e o limite / na harmonia da criação / tu que à áspera solidão / da terra sequiosa /deste o refrigério / das correntes e dos mares".

Antes de entrar no coração do Salmo, dominado pela imagem das águas, de-sejamos captar a sua tonalidade de fundo, o género literário que o domina. De facto, este Salmo, como os Salmos 95-98, é definido pelos estudiosos da Bíblia como "o cântico do Senhor rei". Exalta aquele Reino de Deus, fonte de paz, de verdade e de amor, que nós invocamos no "Pai-Nosso" quando imploramos: "Venha a nós o Vosso Reino!".

Com efeito, o Salmo 92 começa precisamente com uma exclamação de júbi-lo que diz assim: "Reina o Senhor" (v. 1). O Salmista celebra a realeza de Deus, isto é, a sua acção eficaz e salvífica, criadora do mundo e redentora do homem. O Senhor não é um imperador impassível, confinado no seu céu distante, mas está presente no meio do seu povo como Salvador poderoso e grande no amor.
2. Na primeira parte do hino de louvor prevalece o Senhor rei. Como um soberano Ele senta-se num trono de glória, um trono inabalável e eterno (cf. v. 2). O seu manto é o esplendor da transcendência, o cinto das suas vestes é a omnipotência (cf. v. 1). Precisamente a soberania omnipotente de Deus revela-se no centro do Salmo, caracterizado por uma imagem impressionan-te, a das águas caudalosas.

O Salmista menciona de modo mais particular a "voz" dos rios, ou seja, o bramido das suas águas. Efectivamente, o fragor de grandes cataratas pro-duz, sobre aqueles que estão ensurdecidos e com todo o seu corpo tomado pelo estremecimento, uma sensação de grande força. O Salmo 41 recorda esta sensação quando diz: "O abismo chama outro abismo no fragor das vossas cataratas.Todas as vossas vagas e torrentes passaram sobre mim" (v. 8). Face a esta força da natureza o ser humano sente-se pequeno. Mas o Sal-mista usa-a como trampolim para exaltar o poder, muito maior, do Senhor. À tripla repetição da expressão "as correntes elevam" (cf. Sl 92, 3) a sua voz, corresponde a tripla afirmação do poder superior de Deus.

3. Os Padres da Igreja gostam de comentar este Salmo aplicando-o a Cristo "Senhor e Salvador". Orígenes, traduzido por São Jerónimo em latim, afir-ma: "O Senhor reinou, revestiu-se de beleza. Isto é: aquele que anteriormen-te tinha tremido na miséria da carne, resplandece agora na majestade da di-vindade". Para Orígenes, os rios e as águas que elevam as suas vozes repre-sentam as "figuras eminentes dos profetas e dos apóstolos", que "procla-mam o louvor e a glória do Senhor, anunciam os seus juízos para todo o mundo" (cf. 74 homilias sobre o livro dos Salmos, Milão 1993, pp. 666 e 669).

Santo Agostinho desenvolve de modo ainda mais amplo o símbolo das cor-rentes e dos mares. Como rios repletos de águas fluentes, isto é, cheios do Espírito Santo e fortificados, os Apóstolos já não têm receio e finalmente le-vantam a sua voz. Mas "quando Cristo começou a ser anunciado por tantas vozes, o mar começou a agitar-se". Na agitação do mar do mundo escreve Agostinho parece que a barca da Igreja flutua receosa, contrariada por a-meaças e perseguições, mas "no alto, o Senhor é admirável": ele "caminhou sobre as águas do mar e acalmou o seu fragor" (Exposições sobre os salmos, III, Roma 1976, pág. 231).

4. Mas o Deus soberano de todas as coisas, omnipotente e invencível, está sempre próximo do seu povo, ao qual dá os seus ensinamentos. Eis a ideia que o Salmo 92 oferece no seu último versículo: ao trono altíssimo do céu sucede o trono da arca do templo de Jerusalém, o poder da sua voz cósmica é substituído pela doçura da sua palavra santa e inefável: "São dignos de fé os Vossos testemunhos, da Vossa casa é própria a santidade, ó Senhor, por toda a extensão dos dias" (v. 5).

Encerra-se desta maneira um hino breve mas de grande intensidade. É uma oração que gera confiança e esperança nos fiéis que muitas vezes se sentem agitados, receosos de serem arrastados pela tempestade da história e atin-gidos por ameaçadoras forças obscuras.

Podemos reconhecer um eco deste Salmo no Apocalipse de João, quando o Autor inspirado, ao descrever a grande assembleia celeste celebra a derro-cada da Babilónia opressiva, e afirma:

"Ouvi, então, como que a voz de uma grande multidão, como o ruído de muitas águas e como o ribombar de grandes trovões que dizia: "Aleluia! Eis que o Senhor, nosso Deus, o Todo-Poderoso, tomou posse do Seu Reino"" (19, 6).

5. Concluimos a nossa reflexão sobre o Salmo 92 dando a palavra a São Gregório de Nazianzo, o "teólogo" por excelência entre os Padres. Fazemo-lo com um seu bonito cântico no qual o louvor a Deus, soberano e criador, assume um aspecto trinitário: "Tu [Pai], criaste o universo, a cada coisa atri-buíste o lugar que lhe compete e tudo mantiveste em virtude da tua provi-dência... é Deus-Filho o teu Verbo: de facto, é consubstancial ao Pai, e i-gual a Ele na honra. Ele conciliou harmoniosamente o universo, para reinar sobre tudo. E, abraçando tudo, o Espírito Santo, Deus, de tudo cuida e tudo defende. A Ti proclamarei, Trindade viva, como único e só monarca... força inabalável que rege os céus, cuja visão não é acessível aos olhos mas que contempla todo o universo e conhece qualquer profundidade secreta da terra até aos abismos. Ó Pai, sê benigno comigo: ... que eu possa encontrar mise-ricórdia e graça, porque a ti são dadas glória e graças até ao fim dos tempos" (Cântico 31, em Poesias/1, Roma 1994, pp. 65-66).
(3 de julho de 2002)

Salmo 95
Deus é rei e juiz do universo

1. "Proclamai ante os povos: "O Senhor é quem reina"". Esta exortação do Salmo 95 (v. 10), que agora proclamámos, oferece como que a tonalidade sobre a qual se modula todo o hino. De facto, ele insere-se entre os chama-dos "Salmos do Senhor rei", que incluem os Salmos 95-98, além do 46 e do 92.

Já tivemos no passado a ocasião de encontrar e comentar o Salmo 92, e sa-bemos como estes cânticos têm no centro a figura grandiosa de Deus, que ampara todo o universo e governa a história da humanidade.

Também o Salmo 95 exalta tanto o Criador dos seres, como o Salvador dos povos: Deus "fixou o orbe, não vacilará; governa os povos com equidade" (v. 10). Aliás, no original hebraico o verbo traduzido com "julgar" significa na realidade "governar": desta forma temos a certeza que nós não estamos abandonados às forças obscuras da confusão ou do acaso, mas estamos sem-pre nas mãos de um Soberano justo e misericordioso.

2. O Salmo começa com um convite festivo a louvar a Deus, um convite que abre imediatamente uma perspectiva universal: "Cantai ao Senhor terra inteira!" (v. 1). Os fiéis são convidados a "narrar a glória" de Deus "entre os povos", depois a dirigirem-se "a todas as nações" para proclamar "os seus prodígios" (v. 3). Aliás, o Salmista interpela directamente as "famílias dos povos" (v. 7) para convidar a glorificar o Senhor. Por fim, pede aos fiéis que digam "entre os povos: o Senhor reina" (v. 10), e esclarece que o Senhor "julga as nações" (v. 10), "todos os povos" (v. 13). Esta abertura universal por parte de um pequeno povo esmagado pelos grandes impérios é muito significativa. Este povo sabe que o seu Senhor é o Deus do universo e que "os deuses dos pagãos são nada" (v. 5).

O Salmo está substancialmente constituído por dois quadros. A primeira parte (cf. vv. 1-9) inclui uma solene epifania do Senhor "no seu santuário" (v. 6), isto é, no templo de Sião. Ela é precedida e seguida pelos cânticos e ritos sacrificais da assembleia dos fiéis. Desfila premente o fluxo do louvor face à majestade divina: "Cantai ao Senhor um cântico novo... cantai... can-tai... bendizei... anunciai a sua salvação... narrai a sua glória... proclamai os seus prodígios... rendei ao Senhor glória e poder... rendei ao Senhor glória... transportai ofertas... prostrai-vos" (vv. 1.3.7-9).

O gesto fundamental perante o Senhor rei, que manifesta a sua glória na his-tória da salvação é, por conseguinte, o cântico de adoração, de louvor e de bênção. Estas atitudes deveriam estar presentes também no âmbito da nossa liturgia quotidiana e da nossa oração pessoal.

3. No centro deste cântico encontramos uma declaração anti-idolátrica. A oração revela-se assim como que um caminho para alcançar a pureza da fé, segundo a nossa afirmação lex orandi, lex credendi: a norma da verdadeira oração é também norma de fé, é lição sobre a verdade divina. Com efeito, ela pode ser descoberta precisamente através da comunhão íntima com Deus realizada na oração.

O Salmista proclama: "é grande o Senhor e mui digno de louvor, mais terrí-vel que todos os deuses. Os deuses dos pagãos são nada, mas o Senhor criou os céus" (vv. 4-5). Através da liturgia e da oração purifica-se a fé de todas os degenerações, abandonam-se aqueles ídolos aos quais se sacrifica fácil-mente algo de nós durante a vida quotidiana, passa-se do medo face à justi-ça transcendente de Deus à experiência viva do seu amor.

4. Mas eis-nos no segundo quadro, o que se abre com a proclamação da rea-leza do Senhor (cf. vv. 10-13). Agora quem canta é o universo, também nos seus elementos mais misteriosos e obscuros, como o mar, segundo a antiga concepção bíblica: "Alegrem-se os céus, exulte a terra! Ressoe o mar e quanto nele existe! Sorriam os campos e todos os seus frutos, exultem tam-bém todas as árvores dos bosques, na presença do Senhor que se aproxima, porque Ele vem governar a terra" (vv. 11-13).

Como dirá São Paulo, também a natureza, juntamente com o homem, "a-guarda ansiosa... de ser também ela, libertada da servidão da corrupção para participar, livremente, da glória dos filhos de Deus" (Rm 8, 19.21).

E nesta altura, gostaríamos de deixar espaço à leitura cristã deste Salmo rea-lizada pelos Padres da Igreja, que viram neles uma prefiguração da Encar-nação e da Crucifixão, sinal da realeza paradoxal de Cristo.

5. Assim, no início do sermão pronunciado em Constantinopla no Natal de 379 ou de 380, São Gregório de Nazianzo retoma algumas expressões do Salmo 95: "Cristo nasce: glorificai-o! Cristo desce do céu: ide ao seu encon-tro! Cristo está na terra: levantai-vos! "Cantai ao Senhor, terra inteira" (v. 1), e, para reunir os dois conceitos, "rejubilem os céus e exulte a terra" (v. 11) devido àquele que é celeste mas que, depois, se tornou terreno" (Ho-milias sobre a natividade, Discurso 38, 1, Roma 1983, pág. 44).

Desta forma o mistério da realeza divina manifesta-se na Encarnação. Aliás, aquele que reina "tornando-se terreno", reina precisamente na humilhação sobre a Cruz. É significativo que muitos antigos lessem o v. 10 deste Salmo com uma sugestiva integração cristológica: "O Senhor reinou do madeiro".

Por isso já a Carta de Barnabé ensinava que "o reino de Jesus está no ma-deiro" (VIII, 5; Os Padres Apostólicos, Roma 1984, pág. 198) e o mártir São Justino, citando quase integralmente o Salmo na sua Primeira Apologia, concluia convidando todos os povos a rejubilar porque "o Senhor reinou do madeiro" da Cruz (Os apologistas gregos, Roma 1986, pág. 121).

Floresceu neste terreno o hino do poeta cristão Veneziano Fortunato, Vexil-la regis, no qual é exaltado Cristo que reina do alto da Cruz, trono de amor e não de domínio: Regnavit a ligno Deus. De facto, já durante a sua existên-cia terrestre, Jesus admoestava: "Quem quiser ser o primeiro entre vós, faça-se escravo de todos. Porque o Filho do Homem também não veio para ser servido, mas para servir e dar a vida em resgate por muitos" (Mc 10, 43-45).
(18 de setembro de 2002)

Salmo 97
A vitória do Senhor na sua vinda final

1. O Salmo 97, há pouco proclamado, pertence a um género de hinos que já encontramos durante o itinerário espiritual, que estamos a percorrer à luz do Saltério.

Trata-se de um hino ao Senhor, rei do universo e da história (cf. v. 6). Ele define-se como "cântico novo" (v. 1), que na linguagem bíblica significa um cântico perfeito, pleno, solene, acompanhado por um complexo musical de festa. De faco, além do cântico coral recordam-se "as canções alegres" da cítara (cf. v. 5), as trombetas e o chifre (cf. v. 6), mas também uma espécie de aplauso cósmico (cf. v. 8).
Ressoa depois, repetidamente, o nome do "Senhor" (seis vezes), indicado como "nosso Deus" (v. 3). Por conseguinte, Deus está no centro do cenário com toda a sua majestade, enquanto realiza a salvação na história e é aguar-dado para "julgar" o mundo e os povos (v. 9). O verbo hebraico que indica o "julgamento" significa também "governo": por isso espera-se a acção eficaz do Soberano de toda a terra, que trará paz e justiça.

2. O Salmo abre-se com a proclamação da intervenção divina no âmbito da história de Israel (cf. vv. 1-3). As imagens da "direita" e do "braço santo" recordam o êxodo, a libertação da escravidão do Egipto (cf. v. 1). A aliança com o povo da eleição é, ao contrário, recordada pelas duas grandes perfei-ções divinas: "amor" e "fidelidade" (cf. v. 3).

Estes sinais de salvação são testemunhados "aos olhos dos povos" e em "to-dos os confins da terra" (vv. 2.3), para que toda a humanidade seja atraída por Deus salvador e se abra à sua palavra e à sua obra salvífica.

3. O acolhimento reservado ao Senhor que intervém na história distingue-se por um louvor coral: além da orquestra e dos cânticos do templo de Sião (cf. vv. 5-6), participa nele também o universo, que constitui uma espécie de templo cósmico.

São quatro os cantores deste enorme coro de louvor. O primeiro é o mar com tudo o que encerra, que parece fazer como que de baixo contínuo a es-se grandioso cântico (cf. v. 7). Seguem-no a terra e todo o mundo (cf. vv. 4.7) com todos os seus habitantes, unidos numa harmonia solene. A terceira personificação é a dos rios que, sendo considerados como os braços do mar, parece que, com o seu fluxo rítmico, batem as mãos num aplauso (cf. v. 8). Por fim, eis as montanhas que parecem dançar de alegria diante do Senhor, apesar de serem as criaturas mais maciças e imponentes (cf. v. 8; Sl 28, 6; 113, 6).

Por conseguinte, um coro colossal que tem uma única finalidade: exaltar o Senhor, rei e juiz justo. O final do Salmo, como se dizia, apresenta de facto Deus "que vem julgar (e governar) a terra... com justiça e equidade" (cf. Sl 97, 9).

Eis a grande esperança e a nossa invocação: "Venha a nós o Vosso reino!", um reino de paz, de justiça e de serenidade, que reconcilie a harmonia origi-nária da criação.
4. Neste Salmo, o apóstolo Paulo reconheceu com profunda alegria uma profecia da obra de Deus no mistério de Cristo. Paulo serviu-se do v. 2 para exprimir o tema da sua grande carta aos Romanos: no Evangelho "foi reve-lada a justiça de Deus" (cf. Rm 1, 17), "foi manifestada" (cf. Rm 3, 21).

A interpretação feita por Paulo confere ao Salmo maior plenitude de senti-do. Lido na perspectiva do Antigo Testamento, o Salmo proclama que Deus salva o seu povo e que todas as nações, ao verem isto, ficam admiradas. Ao contrário, na perspectiva cristã, Deus realiza a salvação em Cristo, filho de Israel; todas as nações o vêem e são convidadas a aproveitar esta salvação, porque o Evangelho "é poder de Deus para a salvação de todos os que crê-em, primeiro do Judeu e, depois, do Grego", ou seja, do pagão (Rm 1, 16). Agora, "todos os confins da terra" não só "viram a salvação do nosso Deus" (Sl 97, 3), mas receberam-na.

5. Nesta perspectiva, Orígenes, escritor cristão do terceiro século, num texto retomado depois por São Jerônimo, interpreta o "cântico novo" do Salmo como uma celebração antecipada da novidade cristã do Redentor crucifica-do. Sigamos então o seu comentário que entrelaça o cântico do salmista com o anúncio evangélico.

"Cântico novo é o Filho de Deus que foi crucificado e isto jamais se tinha ouvido. Uma realidade nova deve ter um cântico novo. "Cantai ao Senhor um cântico novo". Aquele que sofreu a paixão, na realidade é um homem; mas vós cantai ao Senhor: suportou a paixão como homem, mas salvou co-mo Deus". Orígenes continua: Cristo "fez milagres entre os judeus: curou paralíticos, purificou leprosos, ressuscitou mortos. Mas também outros pro-fetas fizeram isto. Transformou poucos pães num grande número, e deu de comer a um povo sem número. Mas também Eliseu fez isto. Então, o que fez de novo para merecer um cântico novo? Quereis saber o que fez de no-vo? Deus morreu como homem, para que os homens tivessem a vida; o Fi-lho de Deus foi crucificado, para nos elevar até ao céu" (74 homilias sobre o livro dos Salmos, Milão 1993, pág. 309-310).
(6 de novembro de 2002)

Salmo 97
A glória do Senhor no juízo

1. A luz, a alegria e a paz, que no tempo pascal inundam a comunidade dos discípulos de Cristo e se difundem em toda a criação, invadem este nosso encontro, que tem lugar no clima intenso da Oitava de Páscoa. É o triunfo de Cristo sobre o mal e sobre a morte, que celebramos durante estes dias. Com a sua morte e a sua ressurreição, é estabelecido definitivamente o reino de justiça e de amor desejado por Deus.

É precisamente ao tema do reino de Deus que se refere a Catequese de hoje, dedicada à reflexão sobre o Salmo 97 [96]. Este Salmo começa com a sole-ne proclamação: "O Senhor é Rei! A terra exulta e as numerosas ilhas ale-gram-se", e distingue-se como uma celebração do Rei divino, Senhor do cósmos e da história. Portanto, poderíamos dizer que nos encontramos na presença de um Salmo "pascal".

Sabemos como o anúncio do reino de Deus era importante na pregação de Jesus. Deus não é apenas o reconhecimento da dependência do ser criado em relação ao Criador; é também a convicção de que no interior da história estão inseridos um projecto, um desígnio e uma trama de harmonias e de bens, desejados por Deus. Tudo isto se realizou plenamente na Páscoa da morte e da ressurreição de Jesus.

2. Agora, percorramos o texto do Salmo, que a liturgia nos propõe na cele-bração das Laudes. Imediatamente depois da aclamação do Senhor rei, que ressoa como um toque de trombeta, abre-se diante do orante uma grandiosa epifania divina. Referindo-se ao uso de citações ou alusões a outros trechos dos Salmos ou dos Profetas, sobretudo de Isaías, o Salmista delineia a irrup-ção no cenário do mundo do grande Rei, que aparece circundado por uma série de ministros ou forças cósmicas: as nuvens, as trevas, o fogo e os re-lâmpagos.

Ao lado deles, outra série de ministros personifica a sua acção histórica: a justiça, o direito e a glória. O seu ingresso no cenário faz a criação estreme-cer. A terra exulta em todos os lugares, também nas ilhas, consideradas co-mo a área mais remota (cf. v. 1). O mundo inteiro é iluminado por relâmpa-gos de luz e a terra estremece (cf. v. 4). Os montes que, segundo a cosmolo-gia bíblica, encarnam as realidades mais antigas e sólidas, derretem-se como se fossem de cera (cf. v. 5), como já cantava o profeta Miqueias: "Olhai, o Senhor sai do seu lugar e desce... desfazem-se as montanhas e os vales der-retem-se como cera junto do fogo" (1, 3-4). Nos céus ressoam hinos angéli-cos que exaltam a justiça, ou seja, a obra de salvação levada a cabo pelo Senhor para os justos. Enfim, toda a humanidade contempla a revelação da glória divina, ou seja, da misteriosa realidade de Deus (cf. Sl 97 [96], 6), en-quanto os "inimigos" isto é, os iníquos e os injustos, cedem perante a força irresistível do juízo do Senhor (cf. v. 3).

3. Depois da teofania do Senhor do universo, o Salmo descreve dois tipos de reacção diante do grande Rei e do seu ingresso na história. Por um lado, os idólatras e os ídolos caem por terra confusos e derrotados; por outro, os fiéis reunidos em Sião para a celebração litúrgica em honra do Senhor, ele-vam com alegria um hino de louvor. A cena dos "adoradores de estátuas" (cf. vv. 7-9) é essencial: os ídolos prostram-se diante do único Deus e os seus seguidores cobrem-se de vergonha. Os justos assistem exultantes ao juízo divino, que elimina a mentira e a falsa religiosidade, fontes de miséria moral e de escravidão. Eles entoam uma profissão de fé luminosa: "Porque Tu és, ó Senhor, o Altíssimo sobre a terra inteira, mais elevado do que todos os deuses" (v. 9).

4. Ao quadro que descreve a vitória sobre os ídolos e sobre os seus adora-dores opõe-se aquele que poderíamos definir como o maravilhoso dia dos fiéis (cf. vv. 10-12). Com efeito, fala-se de uma luz que se levanta para o justo (cf. v. 11): é como se despontasse uma aurora de alegria, de festa e de esperança, também porque como se sabe a luz é símbolo de Deus (cf. 1 Jo 1, 5).

O profeta Malaquias declarava: "Para vós que temeis o Senhor brilhará o sol da justiça" (3, 20). À luz, associa-se a felicidade: "Alegria para os corações rectos. Justos, alegrai-vos com o Senhor e celebrai a sua memória santa!" (Sl 97 [96], 11-12).

O reino de Deus é uma fonte de paz e de serenidade, pois aniquila o império das trevas. Uma comunidade judaica contemporânea de Jesus cantava: "A injustiça vacila diante da justiça, como as trevas se afastam da luz; a injus-tiça desaparecerá para sempre e a justiça, como o sol, mostrar-se-á como princípio de ordem do mundo" (Livro dos mistérios, do Qumran: 1 Q 27, I, 5-7).

5. Antes de deixar o Salmo 97 [96], é importante encontrar nele, para além da face do Senhor Rei, também o rosto do fiel. Ele é descrito com sete tra-ços, sinal de perfeição e de plenitude. Aqueles que esperam a vinda do gran-de Rei divino odeiam o mal e amam o Senhor, são os hasidim, ou seja, os fiéis (cf. v. 10), caminham pela senda da justiça e são rectos de coração (cf. v. 11), alegram-se diante das obras de Deus e dão graças ao santo nome do Senhor (cf. v. 12). Peçamos ao Senhor que estes traços espirituais brilhem inclusivamente nos nossos rostos.
(3 de abril de 2002)

Salmo 98
Santo é o Senhor nosso Deus

1. "O Senhor reina". Esta aclamação, que abre o Salmo 98 que acabamos de escutar, revela o seu tema fundamental e o seu género literário caracterís-tico. Trata-se de um cântico elevado pelo Povo de Deus ao Senhor, que go-verna o mundo e a história como soberano transcendente e supremo. Ele re-laciona-se com outros hinos análogos os Salmos 95-97, que já foram objec-to da nossa reflexão que a Liturgia das Laudes coloca como oração ideal da manhã.

Com efeito, o fiel, ao começar o seu dia sabe que não é abandonado a um poder cego e obscuro, nem deixado na incerteza da sua liberdade, nem confiado às decisões alheias, nem dominado pelas vicissitudes da história. Ele sabe que acima de qualquer realidade terrena se eleva o Criador e Salva-dor na sua grandeza, santidade e misericórdia.

2. São várias as hipóteses feitas pelos estudiosos sobre o uso deste Salmo na liturgia do templo de Sião. Contudo, ele tem um tom de louvor contempla-tivo que se eleva ao Senhor, sentado na glória celeste diante de todos os po-vos da terra (cf. v. 1). E contudo, Deus torna-se presente num espaço e no meio da comunidade, isto é em Jerusalém (cf. v. 2), mostrando que é "Deus-connosco".

São sete os títulos solenes atribuídos a Deus pelo Salmista logo nos primei-ros versículos: ele é rei, grande, excelso, terrível, santo, poderoso, justo (cf. vv. 1-4). Mais adiante, Deus é apresentado também com a qualificação de "paciente" (v. 8). A ênfase é posta sobretudo sobre a santidade de Deus: de facto, por três vezes é repetido quase em forma de antífona que "ele é santo" (vv. 3.5.9). A palavra indica, na linguagem bíblica, sobretudo a transcen-dência divina. Deus é superior a nós, e situa-se infinitamente acima de todas as suas criaturas. Mas esta transcendência não faz dele um soberano indife-rente e estranho: quando é invocado, responde (cf. v. 6). Deus é aquele que pode salvar, o único que pode libertar a humanidade do mal e da morte. De facto, ele "ama a justiça" e "exerce o direito e a justiça em Jacob" (v. 4).

3. Sobre o tema da santidade de Deus os Padres da Igreja fizeram nume-rosas reflexões, celebrando a inacessibilidade divina. Contudo, este Deus transcendente e santo fez-se próximo do homem. Aliás, como diz Santo Ire-neu, "habituou-se" ao homem já no Antigo Testamento, manifestando-se com aparições e falando por meio dos profetas, enquanto o homem "se ha-bituava" a Deus aprendendo a segui-lo e a obedecer-lhe. Também, Santo E-frém, num dos seus hinos, realça que através da encarnação "o Santo tomou a sua habitação no seio (de Maria) de forma corpórea, / agora ele toma a sua habitação na mente de maneira espiritual" (Hinos sobre a Natividade, 4, 130). Além disso, pelo dom da Eucaristia, em analogia com a encarnação, "o Remédio de Vida desceu do alto / para habitar naqueles que são dignos dele. / Depois de ele ter entrado, / assumiu a sua habitação connosco, / as-sim santificamo-nos a nós próprios dentro dele" (Hinos conservados em ar-ménio, 47, 27.30).

4. Este vínculo profundo entre "santidade" e proximidade de Deus é desen-volvido também no Salmo 98. De facto, depois de ter contemplado a per-feição absoluta do Senhor, o Salmista recorda que Deus estava em perene contacto com o seu povo através de Moisés e de Aarão, seus mediadores, como também através de Samuel, seu profeta. Ele falava e era escutado, castigava os delitos mas também perdoava.

Desta sua presença entre o povo era sinal "o escabelo dos seus pés", isto é, o trono da arca do templo de Sião (cf. vv. 5-8). Por conseguinte, o Deus santo e invisível tornava-se disponível para o seu povo através de Moisés, o legis-lador, Aarão, o sacerdote, Samuel, o profeta. Ele revelava-se em palavras e actos de salvação e de juízo, e estava presente em Sião através do culto ce-lebrado no templo.

5. Poderemos então dizer que o Salmo 98 se realiza hoje na Igreja, sede da presença de Deus santo e transcendente. O Senhor não se retirou no espaço inacessível do seu mistério, indiferente à nossa história e às nossas expecta-tivas. Ele "vem governar a terra. Governará o mundo com justiça e os povos com equidade" (Sl 97, 9).

Deus veio para o meio de nós sobretudo no seu Filho, que se fez um de nós para infundir em nós a sua vida e a sua santidade. Por isso nós agora a-proximamo-nos de Deus, não com terror, mas com confiança. De facto, te-mos em Cristo o sumo sacerdote santo, inocente, sem mancha. Ele "pode salvar perpetuamente os que por Ele se aproximam de Deus, vivendo sem-pre para interceder em seu favor" (Heb 7, 25). Então, o nosso cântico enche-se de serenidade e de alegria: exalta o Senhor rei, que habita entre nós, en-xugando todas as lágrimas dos nossos olhos (cf. Apoc 21, 3-4).
(27 de novembro de 2002)
Salmo 99
A alegria dos que entram no templo

1. A tradição de Israel impôs ao hino de louvor agora proclamado o título de "Salmo para a todáh", isto é, para a acção de graças no cântico litúrgico, e por isso adapta-se bem à entoação das Laudes matutinas. Nos poucos versí-culos deste alegre hino podem identificar-se três elementos significativos, de forma que tornam espiritualmente frutuoso o seu uso por parte da comu-nidade orante cristã.

2. Antes de tudo, encontra-se o apelo premente à oração, claramente descri-ta na sua dimensão litúrgica. É suficiente enumerar os verbos usados no im-perativo que marcam o Salmo e são acompanhados por indicações de ordem cultual: "Aclamai..., servi ao Senhor com alegria, vinde à sua presença com cânticos de júbilo! Sabei que o Senhor é Deus... Entrai nos seus pórticos com acção de graças, entrai nos seus átrios com louvores, glorificai e bendi-zei o seu nome" (vv. 2-4). Uma série de convites não só para entrar na área sagrada do templo através dos seus pórticos e átrios (cf. Sl 14, 1; 23, 3.7-10), mas também a cantar hinos jubilosos a Deus.

É uma espécie de fio constante de louvor que nunca se interrompe, expri-mindo-se numa contínua profissão de fé e de amor. Um louvor que se eleva da terra para Deus, e que ao mesmo tempo alimenta a alma do crente.

3. Desejaria reservar outra pequena observação ao início do cântico, onde o Salmista chama toda a terra a aclamar o Senhor (cf. v. 1). Sem dúvida, o Salmo dedicará depois toda a sua atenção ao povo eleito, mas o horizonte envolvido no louvor é universal, como acontece muitas vezes no Saltério, sobretudo nos chamados "hinos ao Senhor e Rei" (cf. Sl 95-98). O mundo e a história não estão nas mãos do destino, da confusão, de uma necessidade cega. Pelo contrário, são governados por um Deus que é ao mesmo tempo misterioso, mas que também deseja que a humanidade viva, de modo está-vel, relações justas e autênticas. Ele "fixou o orbe, não vacilará, governa os povos com equidade... governará a terra com justiça, e os povos na Sua fi-delidade" (Sl 95, 10.13).

4. Por conseguinte, estamos todos nas mãos de Deus, Senhor e Rei, e todos o celebramos, confiantes de que Ele não nos deixará cair das Sua mãos de Criador e de Pai. A esta luz, pode apreciar-se melhor o terceiro elemento significativo do Salmo. No centro do louvor que o Salmista coloca nos nos-sos lábios, encontra-se de facto uma espécie de profissão de fé, expressa mediante uma série de atributos que definem a realidade íntima de Deus. Este credo fundamental contém as seguintes afirmações: o Senhor é Deus, o Senhor é o nosso criador, nós somos o seu povo, o Senhor é bom, o seu a-mor é eterno, a sua fidelidade não tem fim (cf. vv. 3-5).

5. Tem-se, em primeiro lugar, uma renovada confissão de fé no único Deus, como nos é pedido pelo primeiro mandamento do Decálogo; "Eu sou o Se-nhor, teu Deus... não terás outro Deus além de Mim" (Êx 20, 2.3). E como se repete muitas vezes na Bíblia: "Reconhece, agora, e grava no teu cora-ção, que só o Senhor é Deus e que não há outro" (Dt 4, 39). Depois, é pro-clamada a fé em Deus criador, fonte do ser e da vida. Segue-se a afirmação, expressa através da chamada "fórmula da aliança", da certeza que Israel tem da eleição divina: "pertencemos-Lhe, somos o Seu povo e as ovelhas do Seu rebanho" (v. 3). É uma certeza que os fiéis do novo Povo de Deus fa-zem sua, na consciência de constituírem a grei que o Pastor supremo das al-mas conduz aos prados eternos do céu (cf. 1 Pd 2, 25).

6. Depois da proclamação do Deus uno, criador e fonte da aliança, o retrato do Senhor cantado pelo nosso Salmo continua com uma meditação de três qualidades divinas, muitas vezes exaltadas no Saltério: a bondade, o amor misericordioso (hésed), e a fidelidade. São as três virtudes que caracterizam a aliança de Deus com o seu povo; elas exprimem um vínculo que jamais será violado, dentro do fluxo das gerações e apesar do rio lamacento dos pe-cados, das rebeliões e das infidelidades humanas. Com confiança serena no amor divino que nunca virá a faltar, o povo de Deus encaminha-se na histó-ria com as suas tentações e debilidades quotidianas.

E esta confiança far-se-á cântico, ao qual por vezes as palavras já não bas-tam, como observa Santo Agostinho: "Quanto mais aumentar a caridade, tanto mais te darás conta do que dizias e não dizias. Com efeito, antes de sa-borear determinadas coisas, pensavas que podias utilizar palavras para indi-car Deus; ao contrário, quando começaste a saboreá-lo, apercebeste-te de que não és capaz de explicar adequadamente aquilo que sentes. Mas se te a-perceberes de que não sabes exprimir com as palavras o que sentes, deverás, por isso, permanecer calado e não louvar?... Não, certamente. Não serás tão ingrato. A Ele devemos a honra, o respeito, o maior louvor... Ouve o Salmo: "Terra inteira, louva o Senhor!". Compreenderás a alegria de toda a terra, se tu mesmo te alegras no Senhor" (Exposições sobre os Salmos III/1, Roma 1993, pág. 459).
(7 de novembro de 2001)

Salmo 99
A alegria dos que entram no templo

1. No clima de alegria e de festa que se prolonga nesta última semana do tempo de Natal, desejamos retomar a nossa meditação sobre a Liturgia das Laudes. Detemo-nos hoje no Salmo 99, que acabamos de proclamar, o qual constitui um jubiloso convite a louvar o Senhor, pastor do seu povo.

Toda a composição é marcada por sete imperativos que estimulam a comu-nidade fiel a celebrar, no culto, o Deus do amor e da aliança: aclamai, servi, apresentai-vos, reconhecei, ultrapassai as portas, louvai-o, bendizei. Pode-mos pensar numa procissão litúrgica, que está para entrar no templo de Sião e realizar um rito em honra do Senhor (cf. Sl 14; 23; 94).

Entrelaçam-se no Salmo algumas palavras características para exaltar o vín-culo de aliança que foi estabelecido entre Deus e Israel. Antes de mais, so-bressai a afirmação de uma pertença total a Deus: "Pertencemos-Lhe, somos o Seu povo" (Sl 99, 3), afirmação cheia de orgulho e, ao mesmo tempo, de humildade, dado que Israel se apresenta como "as ovelhas do Seu rebanho" (ibid).

Encontramos noutros textos a expressão da relação correspondente: "Porque Ele é o nosso Deus" (cf. Sl 94, 7). Depois, encontramos o léxico da relação de amor, a "misericórdia" e a "fidelidade", juntamente com a "bondade" (cf. Sl 99, 5), que no original hebraico são formuladas precisamente com pala-vras típicas do pacto que une Israel ao seu Deus.

2. É feita também a enumeração das coordenadas do espaço e do tempo. Com efeito, por um lado, apresenta-se diante de nós toda a terra com os seus habitantes envolvida no louvor a Deus (cf. v. 2); depois, o horizonte limita-se à área sagrada do templo de Jerusalém com os seus pátios e as suas por-tas (cf. v. 4), onde se encontra reunida a comunidade orante. Por outro lado, faz-se referência ao tempo nas suas três dimensões fundamentais: o passado da criação ("ele criou-nos", v. 3), o presente da aliança e do culto ("nós per-tencemos-Lhe, somos as ovelhas do Seu rebanho", ibid) e, por fim, o futuro em que a fidelidade misericordiosa do Senhor se expande "por todas as ge-rações", revelando-se "eterna" (v. 5).

3. Detenhamo-nos agora brevemente nos sete imperativos que constituem o longo convite a louvar a Deus e ocupam quase todo o Salmo (cf. vv. 2-4) antes de encontrar, no último versículo, a sua motivação na exaltação de Deus, contemplado na sua identidade íntima e profunda.

O primeiro apelo consiste na aclamação jubilosa que envolve toda a terra no cântico de louvor ao Criador. Quando rezamos, devemos sentir-nos em sin-tonia com todos aqueles que, em línguas e formas diversas rezam, exaltando o único Senhor. "Mas como diz o profeta Malaquias do nascente ao poente o Meu nome é grande entre as nações e em todos os lugares é oferecido ao Meu nome um sacrifício de incenso e uma oferenda pura. Porque é grande entre as Nações o Meu nome, diz o Senhor dos exércitos" (1, 11).

4. Seguem-se, depois, alguns apelos de tipo litúrgico e ritual: "servir", "a-presentar-se" e "passar as portas" do templo. São verbos que, fazendo tam-bém alusão às audiências reais, descrevem os vários gestos que os fiéis rea-lizam quando entram no santuário de Sião para participar na oração comuni-tária. Depois do cântico cósmico, celebra-se a liturgia por parte do povo de Deus, as "ovelhas do Seu rebanho", a sua "propriedade entre todos os po-vos" (Ex 19, 5).

O convite a "passar as portas com acções de graças" e "com cânticos de lou-vor" recorda-nos o trecho de Os mistérios de Santo Ambrósio, onde são des-critos os baptizados que se aproximam do altar: "O povo purificado aproxi-ma-se do altar de Deus dizendo: "entrarei no altar de Deus, o Deus da minha alegria jubilosa" (Sl 42, 4). De facto, abandonando os despojos do erro arreigado, o povo renovado na sua juventude como uma águia, apressa-se para participar neste convite celeste. Portanto ele vem e, ao ver o sacros-santo altar convenientemente preparado, exclama: "O Senhor é o meu pas-tor, nada me falta. Em verdes prados me faz descansar e conduz-me às á-guas refrescantes" (Sl 22, 1-2)" (Obras dogmáticas III, 17, págs. 158-159).

5. Os outros imperativos, que adornam o Salmo, propõem de novo atitudes religiosas fundamentais do orante: reconhecer, louvar, abençoar. O verbo reconhecer, exprime o conteúdo da profissão de fé no único Deus. Com efeito, devemos proclamar que só "o Senhor é Deus" (Sl 99, 3), combatendo qualquer forma de idolatria, de soberba e de poder humano que se Lhe opõe.

O fim dos outros verbos, isto é, louvar e abençoar, é de igual modo "o no-me" do Senhor" (cf. v. 4), ou seja, a sua pessoa, a sua presença eficaz e sal-vadora.

A esta luz o Salmo alcança, no final, uma solene exaltação de Deus, que é uma espécie de profissão de fé: o Senhor é bom e a sua fidelidade nunca nos abandona, porque Ele está sempre pronto a amparar-nos com o seu amor misericordioso. Com esta confiança o orante abandona-se ao abraço do seu Deus: "Saboreai e vede como é bom o Senhor diz noutra parte o Salmista feliz o homem que n'Ele se abriga" (Sl 33, 9; cf. 1 Pd 2, 3).
(8 de janeiro de 2003)

Salmo 100
Programa de um rei fiel a Deus

1. Depois das duas catequeses dedicadas ao significado das Celebrações pascais, retomamos a nossa reflexão sobre a Liturgia das Laudes. Ela pro-põe-nos o Salmo 100, que acabámos de ouvir, para a quarta-feira da 4ª se-mana.

Trata-se de uma meditação que traça o retrato do homem político ideal, cujo modelo de vida deveria ser o agir divino no governo do mundo: um agir re-gido por uma integridade moral perfeita e por um compromisso enérgico contra as injustiças. Este texto é proposto agora de novo como um programa de vida para o fiel que começa o seu dia de trabalho e de relações com o próximo. É um programa de "amor e de justiça" (cf. v. 1), que se desen-volve em duas grandes orientações morais.

2. A primeira é chamada "caminho da inocência" e está orientada para a e-xaltação das opções pessoais de vida, feitas "com um coração integral", isto é, com uma consciência perfeitamente recta (cf. v. 2).

Por um lado, fala-se de maneira positiva das grandes virtudes morais que tornam luminosa a "casa", ou seja, a família do justo (cf. v. 2): a sabedoria que ajuda a compreender bem e a julgar; a inocência que é pureza de cora-ção e de vida; e, por fim, a integridade da consciência que não tolera com-promissos com o mal.

Por outro lado, o Salmista introduz um compromisso negativo. Trata-se da luta contra qualquer forma de malvadez e de injustiça, de maneira que se possa afastar da própria casa e das opções pessoais qualquer forma de per-versão da ordem moral (cf. vv. 3-4).

Como escreve São Basílio, grande Padre da Igreja do Oriente, na sua obra O baptismo, "nem sequer o prazer momentâneo que possa contaminar o pensa-mento deve perturbar aquele que se configurou com Cristo numa morte se-melhante à sua" (Obras ascéticas, Turim 1980, pág. 548).

3. A segunda orientação é desenvolvida na parte final do Salmo (cf. vv. 5-8) e esclarece a importância dos dotes mais tipicamente públicos e sociais. Também neste caso se enumeram os pontos fundamentais de uma vida que deseja recusar o mal com rigor e decisão.

Antes de mais a luta contra a calúnia e a denúncia secreta, um compromisso básico numa sociedade com tradições orais, que atribuía particular relevo à função da palavra nas relações interpessoais. O rei, que exerce também a função de juiz, anuncia que nesta luta usará a mais rigorosa severidade: ex-terminará o caluniador (cf. v. 5). Depois, é recusada qualquer forma de arro-gância e soberba; é recusada a companhia e os conselhos de quem age sem-pre com o engano e com a mentira. Por fim, o rei declara de que forma es-colherá os seus "servos" (cf. v. 6), ou seja, os seus ministros. Terá a preocu-pação de os escolher entre "os fiéis do país". Deseja rodear-se de povo ínte-gro e recusar o contacto com "aquele que fala mentiras" (cf. v. 7).

4. O último versículo do Salmo é particularmente enérgico. Pode causar perplexidade no leitor cristão: "Em cada manhã julgarei severamente todos os ímpios da nação, para exterminar da cidade do Senhor todos quantos pra-ticam o mal" (v. 8). Mas é importante recordar-se de uma coisa: aquele que assim fala não é um indivíduo qualquer, mas o rei, responsável supremo da justiça no país. Com esta frase ele exprime de maneira hiperbólica o seu im-placável compromisso de luta contra a criminalidade, um compromisso o-brigatório, partilhado por todos os que têm responsabilidades na gestão pú-blica.

Evidentemente não compete a cada cidadão esta tarefa de justiceiro! Por isso, se cada um dos fiéis quer aplicar a si próprio a frase do Salmo, deve fa-zê-lo em sentido analógico, isto é, decidindo extirpar todas as manhãs do próprio coração e do seu comportamento a erva daninha da corrupção e da violência, da perversão e da malvadez, assim como qualquer forma de e-goísmo e de injustiça.

5. Concluimos a nossa meditação retomando o primeiro versículo do Sal-mo: "Celebrarei o amor e a justiça..." (v. 1). Um antigo escritor cristão, Eu-sébio de Cesareia, nos seus Comentários aos Salmos, realça a primazia do amor sobre a justiça extremamente necessária: "Celebrarei a tua misericór-dia e o teu juízo, mostrando a maneira que te é habitual: não, primeiro jul-gar e depois ter misericórdia, mas primeiro ter misericórdia e depois julgar, e com clemência e misericórdia pronunciar sentenças. Para isto, eu mesmo, ao exercer a misericórdia e o juízo em relação ao próximo, ouso aproxi-mar-me de ti para, contigo, cantar e honrar. Por conseguinte, consciente de que é preciso agir assim, conservo os meus caminhos imaculados e inocen-tes, persuadido de que desta forma os meus cânticos te serão agradáveis, por meio das boas obras" (PG 23, 1241).
(30 de abril de 2003)

Salmo 107
Louvor a Deus e pedido de auxílio

1. O Salmo 107 que agora nos foi proposto faz parte da sequência dos Sal-mos da Liturgia das Laudes, objecto das nossas catequeses. Ele apresenta u-ma característica, à primeira vista, surpreendente. A composição não é mais do que a fusão de dois fragmentos de salmos pré-existentes, um tirado do Salmo 56 (vv. 8-12) e outro do Salmo 59 (vv. 7-14). O primeiro fragmento tem uma tonalidade hínica, o segundo uma marca suplicante, mas com um oráculo divino que confere ao orante serenidade e confiança.

Esta fusão dá origem a uma nova oração e isto torna-se exemplar para nós. Na realidade, também a liturgia cristã muitas vezes funde trechos bíblicos diferentes de forma que os transforma num texto novo, destinado a iluminar situações inéditas. Contudo, permanece o vínculo com a base originária. Na prática, o Salmo 107 (mas não é o único; veja-se, só para mencionar outro testemunho, o Salmo 143) mostra como já Israel no Antigo Testamento uti-lizava de novo e actualizava a Palavra de Deus revelada.

2. O Salmo que deriva desta combinação é, portanto, algo mais do que a simples soma ou justaposição dos dois trechos pré-existentes. Em vez de co-meçar com uma humilde súplica como o Salmo 56, "Tende piedade de mim, ó Deus" (v. 2), o novo Salmo começa com um anúncio resoluto de louvor a Deus: "O meu coração, Senhor, está contente, quero cantar-Vos e Louvar-Vos" (Sl 107, 2). Este louvor ocupa o lugar da lamentação que formava o começo do outro Salmo (cf. Sl 59, 1-6), e torna-se assim a base do oráculo seguinte (Sl 59, 8-10 = Sl 107, 8-10) e da súplica que o rodeia (Sl 59, 7.11-14 = Sl 107, 7.11-14).

Esperança e pesadelo fundem-se e tornam-se substância da nova oração, completamente orientada para dar confiança também no tempo da prova vi-vida por toda a comunidade.

3. Por conseguinte, o Salmo começa com um hino jubiloso de louvor. É um cântico matutino acompanhado da harpa e da cítara (cf. Sl 107, 3). A men-sagem é límpida e tem no centro a "bondade" e a "verdade" divina (cf. v. 5): em hebraico, hésed e 'emèt, são as palavras típicas para definir a fidelidade amorosa do Senhor em relação à aliança com o seu povo. Com base nesta fidelidade, o povo tem a certeza de que nunca será abandonado por Deus no abismo do nada e do desespero.

A nova leitura cristã interpreta este Salmo de maneira particularmente su-gestiva. No v. 6 o Salmista celebra a glória transcendente de Deus: "Elevai-Vos (ou seja, "sê exaltado"), Senhor, sobre os céus!". Ao comentar este Sal-mo, Orígenes, remete para a frase de Jesus: "E eu, quando for levantado da terra, atrairei todos a mim" (Jo 12, 32) que se refere à crucifixão. Ela tem como resultado o que afirma o versículo seguinte: "Sejam livres os Vossos amigos" (Sl 107, 7). Então Orígenes conclui: Que significado maravilhoso! O motivo pelo qual o Senhor é crucificado e exaltado é que os seus amados sejam livres... Realizou-se tudo o que pedimos: ele foi exaltado e nós fomos libertados" (Orígenes-Jerónimo, 74 homilias sobre o livro dos Salmos, Mi-lão 1993, pág. 367).

4. Passamos agora à segunda parte do Salmo 107, citação parcial do Salmo 59, como foi dito. Na angústia de Israel, que sente Deus ausente e distante ("Vós, Deus, que nos repelistes": v. 12), ergue-se a voz do oráculo do Se-nhor que ressoa no templo (cf. vv. 8-10). Nesta revelação Deus apresenta-se como árbitro e senhor de toda a terra santa, da cidade de Siquém ao vale da Transjordânia, Sukkot, das regiões orientais de Galaad e Manassés às cen-tro-meridionais de Efraim e Judá, alcançando também os territórios vas-salos, mas estrangeiros, de Moab, Edom e Filisteia.

Com palavras vivas de inspiração militar ou com marcas jurídicas procla-ma-se o domínio divino sobre a terra prometida. Se o Senhor reina, não de-vemos temer: não somos atirados para aqui e para ali pelas forças obscuras do destino ou da confusão. Há sempre, também nos momentos tenebrosos, um projecto superior que rege a história.

5. Esta fé acende a chama da esperança. Contudo, Deus indicará uma solu-ção, ou seja, uma "cidade fortificada" colocada na região de Edom. Isto sig-nifica que, apesar da prova e do silêncio, Deus voltará a revelar-se, a apoiar e orientar o seu povo. Só d'Ele pode vir a ajuda decisiva e não das alianças militares externas, ou seja, da força das armas (cf. v. 13). E só com Ele se obterá a liberdade e se farão "obras grandiosas" (cf. v. 14).

Recordamos com São Jerónimo a última lição do Salmista, interpretada em chave cristã: "Ninguém se deve perder por este caminho. Tens Cristo e tens receio? Será Ele a nossa força, o nosso pão, o nosso guia" (Breviarium in Psalmos, Ps. CVII: PL 26, 1224).
(28 de maio de 2003)

Salmo 116
Convite a louvar a Deus pelo seu amor

1. Este é o Salmo mais curto, composto no original hebraico apenas por de-zassete palavras, das quais nove são particularmente relevantes. É uma pe-quena doxologia, isto é, um cântico essencial de louvor, que em pensamento poderia fazer as vezes de fecho a orações hínicas mais amplas. Assim se ve-rificou por vezes na liturgia, um pouco como acontece com o nosso Gloria Patri, com o qual concluímos a recitação de qualquer Salmo.

Na verdade, estas poucas palavras de oração revelam-se significativas e pro-fundas para exaltar a aliança entre o Senhor e o seu povo, no âmbito de uma perspectiva universal. Nesta luz, o primeiro versículo do Salmo é tomado pelo apóstolo Paulo para convidar todos os povos do mundo a glorificar Deus. De facto, ele escreve aos cristãos de Roma: "os gentios dão glória a Deus, pela sua misericórdia, como está escrito... Nações, louvai todas ao Se-nhor; e que todos os povos o celebrem" (Rm 15, 9.11).

2. Por conseguinte, o breve hino que estamos a meditar começa, como acon-tece muitas vezes a este género de Salmos, com um convite ao louvor, que não se destina só a Israel, mas a todos os povos da terra. Um alleluia deve brotar dos corações de todos os justos que procuram e amam Deus com o coração sincero. Mais uma vez o Saltério reflecte uma visão de amplo al-cance, provavelmente alimentada pela experiência vivida por Israel durante o exílio na Babilónia no sexto século a.C.: o povo hebraico encontrou então outras nações e culturas e sentiu a necessidade de anunciar a própria fé à-queles entre os quais ele vivia. Encontra-se no Saltério a consciência de que o bem floresce em tantos terrenos e pode ser como que canalizado e dirigido para o único Senhor e Criador.

Por isso, poderíamos falar de um "ecumenismo" da oração, que inclui num único abraço povos diferentes por origem, história e cultura. Encontramo-nos na linha da grande "visão" de Isaías que descreve "no final dos tempos" a afluência de todas as nações para "o monte do templo do Senhor". Então, cairão das mãos as espadas e as lanças, e serão transformadas em relhas de arados e foices, para que a humanidade viva em paz, cantando o seu lou-vor ao único Senhor de todos, ouvindo a sua palavra e observando os seus man-damentos (cf. Is 2, 1-5).

3. Israel, o povo da eleição, tem neste horizonte universal uma missão a cumprir. Deve proclamar duas grandes virtudes divinas, que conheceu ao viver a aliança com o Senhor (cf. v. 2). Estas duas virtudes, que são as duas feições fundamentais do rosto divino, o "bom binómio" de Deus, para dizer com São Gregório de Nissa (cf. Sobre os títulos dos Salmos, Roma 1994, p. 183), são expressas com igual número de palavras hebraicas que, nas tradu-ções, não conseguem brilhar em toda a sua riqueza de significado.

A primeira é hésed, uma palavra usada repetidas vezes pelo Saltério e sobre a qual já falei noutra ocasião. Ela indica a rede dos sentimentos profundos que existem entre duas pessoas, ligadas por um vínculo autêntico e cons-tante. Por isso, abraça valores como o amor, a fidelidade, a misericórdia, a bondade, a ternura. Por conseguinte, existe ente nós e Deus uma relação que não é fria, como a que pode existir entre um imperador e o seu súbdito, mas palpitante, como a que se desenvolve entre dois amigos, entre dois esposos, entre pais e filhos.

4. A segunda palavra é 'emét que é quase sinónimo da primeira. Também ela é querida ao Saltério, que a repete quase metade de todas as vezes em que ressoa no resto do Antigo Testamento.

Em si, a palavra exprime a "verdade", ou seja, a genuinidade de uma rela-ção, a sua autenticidade e lealdade, que se conserva apesar dos obstáculos e das provas; é a fidelidade pura e jubilosa que não conhece faltas. Não é sem motivo que o Salmista declara que ela "dura eternamente" (v. 2). O amor fiel de Deus nunca faltará e não nos abandonará a nós próprios ou à obscu-ridade do contra-senso, de um destino cego, do vazio e da morte.

Deus ama-nos com um amor incondicionado, que não se cansa, que nunca esmorece. Eis a mensagem do nosso Salmo, breve como uma ladainha, mas intenso como um cântico grande.

5. As palavras que ele nos sugere são como um eco do cântico que ressoa na Jerusalém celeste, onde uma grande multidão de todas as línguas, povos e nações, canta a glória divina diante do trono de Deus e do Anjo (cf. Ap 7, 9). A este cântico a Igreja peregrina une-se com infinitas expressões de lou-vor, muitas vezes moldadas pelo génio poético e pela arte musical. Pensa-mos dando um exemplo no Te Deum, do qual se serviram gerações de cris-tãos ao longo dos séculos, para louvar o Senhor e agradecer-Lhe: "Te Deum Laudamos, te Dominum confitemur, te aeternum Patrem omnis terra vene-ratur". Por seu lado, o pequeno Salmo que hoje estamos a meditar é uma síntese eficaz da perene liturgia de louvor com que a Igreja se faz voz no mundo, unindo-se ao louvor perfeito que o próprio Cristo dirige ao Pai.
Por conseguinte, louvamos o Senhor! Louvamos sem nos cansarmos. Mas o nosso louvor exprime-se com a vida, mais do que com as palavras. De facto, seríamos muito pouco credíveis, se com o nosso Salmo convidássemos os povos a glorificar o Senhor, e não levássemos a sério a admoestação de Jesus: "Brilhe a vossa luz diante dos homens de modo que, vendo as vossas boas obras, glorifiquem o vosso Pai, que está nos Céus" (Mt 5, 16). Ao can-tar o Salmo 116, como todos os Salmos dirigidos ao Senhor, a Igreja, Povo de Deus, esforça-se por se tornar, ela mesma, um cântico de louvor.
(28 de novembro de 2001)

Salmo 116
Convite a louvar a Deus pelo seu amor

1. Dando continuidade à nossa meditação sobre os textos da Liturgia das Laudes, voltamos a considerar um Salmo que já foi proposto, o mais breve de todas as composições do Saltério. É o Salmo 116, que acabámos de escu-tar, uma espécie de pequeno hino, análogo a uma jaculatória que se alarga num louvor universal ao Senhor. O que se proclama é expresso através de duas palavras fundamentais: amor e fidelidade (cf. v. 2).

Com estes termos, o Salmista explica sinteticamente a aliança entre Deus e Israel, realçando a profunda relação, leal e confiante, que existe entre o Se-nhor e o seu povo. Aqui ouvimos o eco das palavras que o próprio Deus ti-nha anunciado no Sinai, apresentando-se diante de Moisés: "Javé! Javé! Deus misericordioso e clemente, vagaroso em encolerizar-se, cheio de bon-dade e de fidelidade" (Êx 34, 6).

2. Apesar da sua brevidade e essencialidade, o Salmo 116 realça o núcleo da oração, que consiste no encontro e no diálogo vivo e pessoal com Deus. Neste acontecimento, o mistério da Divindade revela-se como fidelidade e amor.

O Salmista acrescenta um aspecto particular da oração: a experiência oran-te deve irradiar-se no mundo, transformando-se em testemunho junto de quem não compartilha a nossa fé. Com efeito, no início, o horizonte alarga-se a "todos os povos" e a "todas as nações" (cf. Sl 116, 1) para que, diante da beleza e da alegria da fé, também eles sejam conquistados pelo desejo de conhecer, encontrar e louvar a Deus.
3. Num mundo tecnológico, debilitado por um eclipse do sagrado, numa so-ciedade a que agrada uma certa auto-suficiência, o testemunho do orante é como um raio de luz na escuridão.

No início, ele pode somente despertar a curiosidade, mas depois pode levar a pessoa ponderada a interrogar-se sobre o sentido da oração e, por fim, po-de suscitar um crescente desejo de viver esta experiência. Por isso, a oração nunca é um acontecimento solitário, mas tende a dilatar-se, a ponto de en-volver o mundo inteiro.

4. Agora, nós acompanhamos o Salmo 116 com as palavras de um grande Padre da Igreja do Oriente, Santo Efrém, o Sírio, que viveu no século IV. No 14º dos seus Hinos sobre a Fé, ele exprime o desejo de nunca permitir que cesse o louvor a Deus, empenhando também "todos aqueles que com-preendem a verdade" divina. Eis o seu testemunho:

"Como poderá a minha harpa, Senhor, deixar de te louvar? / Como poderia eu ensinar a infidelidade à minha língua? / O teu amor deu confiança à mi-nha confusão, / mas a minha vontade ainda é ingrata" (estrofe 9).

"É justo que o homem reconheça a tua divindade, / é justo que os seres celestiais louvem a tua humanidade; / os seres celestiais surpreenderam-se ao verem como te aniquilaste a ti mesmo, / e os seres terrestres admiraram-se ao verem como te exaltaste a ti próprio" (estrofe 10: A Harpa do Espírito, Roma 1999, pp. 26-28).

5. Noutro dos seus hinos (Hinos de Nisibi, 50), Santo Efrém confirma este seu compromisso de louvor incessante, e exprime o seu motivo no amor e na compaixão divina por nós, precisamente como sugere o nosso Salmo.

"Em ti, Senhor, do silêncio possa a minha boca fazer brotar o louvor. / Que as nossas bocas não sejam pobres no louvor, / que os nossos lábios não sejam pobres ao confessarem; / possa o teu louvor vibrar em nós!" (estrofe 2).

"Porque é no nosso Senhor que a raiz da nossa fé está implantada; / embora distante, todavia Ele está próximo na fusão do amor. / Que as raízes do nos-so amor estejam ligadas a Ele, / que a medida completa da sua compaixão seja derramada sobre nós" (estrofe 6: ibid., pp. 77 e 80).
(5 de fevereiro de 2003)

Salmo 117
Cântico de alegria e de vitória

1. Quando o cristão, em sintonia com a voz orante de Israel, canta o Salmo 117 que acabamos de ouvir entoar, sente dentro de si um particular frémito. De facto, ele encontra neste hino que se caracteriza por uma grande marca litúrgica duas frases que se repetem no Novo Testamento com uma nova to-nalidade. A primeira é constituída pelo versículo 22: "A pedra que os cons-trutores rejeitaram, tornou-se pedra angular". Esta frase é citada por Jesus, que a aplica à sua missão de morte e de glória, depois de ter narrado a pa-rábola dos vinhateiros (cf. Mt 21, 42). A frase é citada também por Pedro nos Actos dos Apóstolos: "Ele é a pedra que vós, os construtores, despre-zastes e que se transformou em pedra angular. E não há salvação em ne-nhum outro, pois não há debaixo do céu qualquer outro nome dado aos homens que nos possa salvar" (Act 4, 11-12). Cirilo de Jerusalém comenta: "Um só é o Senhor Jesus Cristo, para que a filiação seja única; proclama-mos um só, para que não penses que haja outro... Com efeito, é chamado pedra, não inanimada nem cortada por mãos humanas, mas pedra angular, porque aquele que crê nela não ficará desiludido" (Catequeses, Roma 1993, pp. 312-313).

A segunda frase que o Novo Testamento extrai do Salmo 117 é proclamada pela multidão na solene entrada messiânica de Cristo em Jerusalém: "Ben-dito seja Aquele que vem em nome do Senhor!" (Mt 21, 9; cf. Sl 117, 26). A aclamação é envolvida por um "Hossana" que retoma a invocação he-braica hoshiana', "Ó Deus, salvai-nos!".

2. Este maravilhoso hino bíblico está situado no âmbito da pequena recolha de Salmos, do 112 ao 117, chamada o "Hallel pascal", ou seja, o louvor sal-módico usado pelo culto hebraico para a Páscoa e também para as principais solenidades do ano litúrgico. O fio condutor do Salmo 117 pode ser consi-derado o rito da procissão, talvez marcado por cânticos para o solista e para o coro, tendo como fundo a cidade santa e o seu templo. Uma bonita antí-fona abre e encerra o texto: "Louvai o Senhor porque Ele é bom, porque é eterno o Seu amor" (vv. 1. 29).
A palavra "misericórdia" traduz a palavra hebraica hesed, que designa a fidelidade generosa de Deus em relação ao seu povo aliado e amigo. São três as categorias de pessoas que cantam esta fidelidade: Israel inteiro, a "casa de Aarão", isto é, os sacerdotes, e "quem teme Deus", uma expressão que indica os fiéis e sucessivamente também os prosélitos, ou seja, os membros das outras nações desejosos de aderir à lei do Senhor (cf. vv. 2-4).

3. Parece que a procissão se desenrola pelas ruas de Jerusalém, porque se fala das "tendas dos justos" (cf. v. 15). Contudo, eleva-se um hino de agra-decimento (cf. vv. 5-18), cuja mensagem é fundamental: mesmo quando estamos angustiados é necessário manter alta a chama da confiança, porque a mão poderosa do Senhor conduz o seu fiel à vitória sobre o mal e à sal-vaçao.

O poeta sagrado usa imagens fortes e vivazes: os adversários cruéis são comparados com um enxame de abelhas ou a uma frente de chamas que progride reduzindo tudo a cinzas (cf. v. 12). Mas a reação do justo, apoiado pelo Senhor, é veemente; é repetida três vezes: "No nome do Senhor esma-gá-las-ei" e o verbo hebraico evidencia uma intervenção destruidora em re-lação ao mal (cf. vv. 10.11.12). De facto, na base encontra-se a direita pode-rosa de Deus, ou seja, a sua obra eficaz, e, indubitavelmente, nao a mão dé-bil e incerta do homem. E é por isto que a alegria pela vitória sobre o mal se abre a uma profissão de fé muito sugestiva: "O Senhor é a minha fortaleza e o meu cantar, é a minha salvaçao" (v. 14).

4. Parece que a procissão chegou ao templo, às "portas da justiça" (v. 19), à porta santa de Sião. Entoa-se aqui um segundo cântico de agradecimento, que é aberto por um diálogo entre a assembleia e os sacerdotes para serem admitidos ao culto. "Abri-me as portas da justiça, desejo entrar para dar gra-ças ao Senhor", diz o solista em nome da assembleia em procissao. "Esta é a porta do Senhor; por ela entram os justos" (vv. 19-20), respondem outros, provavelmente os sacerdotes.

Depois de terem entrado, podem dar voz ao hino de gratidão ao Senhor, que no templo se oferece como "pedra" estável e certa sobre a qual se edifica a casa da vida (cf. Mt 7, 24-25). Desce uma benção sacerdotal sobre os fiéis, que entraram no templo para exprimir a sua fé, elevar a sua oração e cele-brar o culto.

5. O último cenário que se apresenta aos nossos olhos é constituído por um rito jubiloso de danças sagradas, acompanhadas por um festivo agitar de ramos: "Ordenai o cortejo com ramos de palmeiras, até aos ângulos do al-tar" (v. 27). A liturgia é alegria, encontro de festa, expressão de toda a exis-tência que louva o Senhor. O rito dos ramos faz pensar na solenidade he-braica dos Tabernáculos, memória da peregrinação de Israel no deserto, so-lenidade na qual se realizava uma procissão com ramos de palmeiras, murta e salgueiro.

Este mesmo rito evocado pelo Salmo é reproposto ao cristão com a entrada de Jesus em Jerusalém, celebrado na liturgia do Domingo de Ramos. A Cristo são elevados "Hossanas" como "filho de David" (cf. Mt 21, 9) pela multidão que, "veio à Festa... tomou ramos de palmeira e saiu ao seu encon-tro, clamando: "Hossana! Bendito seja Aquele que vem em nome do Se-nhor, o Rei de Israel!"" (Jo 12, 12-13). Naquela celebração de festa que, contudo, anuncia o momento da paixão e morte de Jesus, realiza-se e com-preende-se em sentido pleno também o símbolo da pedra angular, proposta na abertura, adquirindo um valor glorioso e pascal.

O Salmo 117 encoraja os cristãos a reconhecer no acontecimento pascal de Jesus "o dia que o Senhor fez", em que "a pedra que os construtores rejei-taram, tornou-se pedra angular". Por conseguinte, eles podem cantar com o Salmo cheios de gratidão: "O Senhor é a minha fortaleza e o meu cantar, é a minha salvação" (v. 14); "O Senhor actuou neste dia, cantemos e alegremo-nos n'Ele" (v. 24).
(5 de dezembro de 2001)

Salmo 117
Cântico de alegria e de vitória

1. Em todas as festas mais significativas e alegres do antigo judaísmo sobre-tudo na celebração da Páscoa cantava-se a sequência dos Salmos que vai do 112 ao 117. Esta série de hinos de louvor e de agradecimento a Deus era chamada o "Hallel egípcio", porque num deles, o Salmo 113 A, era recorda-do de forma poética e quase visível o êxodo de Israel da terra da opressão, o Egipto faraónico, e o maravilhoso dom da aliança divina. Pois bem, o últi-mo Salmo que sela este "Hallel egípcio" é precisamente o Salmo 117, agora proclamado e por nós meditado num comentário precedente.
2. Este cântico revela claramente um uso litúrgico no inteiror do templo de Jerusalém. De facto, no seu enredo parece desencadear-se uma procissão, que começa nas "tendas dos justos" (v. 15), isto é, na casa dos fiéis. Eles exaltam a protecção da mão divina, capaz de proteger quem é recto e con-fiante também quando irrompem inimigos cruéis. A imagem usada pelo Sal-mista é expressiva: "Cercaram-me como um enxame de abelhas, consumi-ram-me como o fogo aos espinheiros, no nome do Senhor esmagá-las-ei" (v. 12).

Face a este perigo evitado, o povo de Deus irrompe com "vozes de alegria e de vitória" (v. 15) em honra da "direita do Senhor que opera maravilhas" (cf. v. 16). Por conseguinte, há a consciência de nunca estar sós, no poder da tempestade desenfreada pelos malvados. Na verdade, a última palavra é sempre a de Deus que, mesmo quando permite a prova do seu fiel, não o entrega à morte (cf. v. 18).

3. Nesta altura, parece que a procissão alcança a meta recordada pelo Salmista através da imagem das "portas da justiça" (v. 19), isto é, da porta santa do templo de Sião. A procissão acompanha o herói ao qual Deus con-cedeu a vitória. Ele pede que lhe sejam abertas as portas, para poder "dar graças ao Senhor" (v. 19). Com ele "entram os justos" (v. 20). Para exprimir a dura provação que superou e a glorificação que dela derivou, ele compara-se a si mesmo a uma "pedra rejeitada pelos construtores" que depois "se tornou pedra angular" (v. 22). Cristo assumirá precisamente esta imagem e este versículo, no final da parábola dos vinhateiros homicidas, para anunciar a sua Paixão e a sua glorificação (cf. Mt 21, 42).

4. Ao aplicar o Salmo a si prórpio, Cristo abre o caminho para a interpre-tação cristã deste hino de confiança e de gratidão ao Senhor pelo seu hesed, ou seja, pela sua fidelidade amorosa, que ressoa em todo o Salmo (cf. Sl 117, 1.2.3.4.29).

Os símbolos adoptados pelos Padres da Igreja são dois. Antes de mais, o de "porta da justiça", que São Clemente Romano na sua Carta aos Coríntios comentava da seguinte forma: "São muitas as portas abertas, mas a da jus-tiça está em Cristo. Bem-aventurados são todos os que por ela entram e orientam o seu caminho na santidade e na justiça, fazendo tudo tranqüila-mente" (48, 4: Os Padres Apostólicos, Roma 1976, pág. 81).

5. O outro símbolo, juntamente com o precedente, é precisamente o da pe-dra. Agora, deixar-nos-emos guiar, na nossa meditação, por Santo Ambró-sio na sua Exposição do Evangelho segundo Lucas. Ao comentar a pro-fissão de fé de Pedro em Cesareia de Filipe, ele recorda que "Cristo é a pe-dra" e que "também ao seu discípulo, Cristo não recusou este bonito nome, de forma que também ele seja Pedro, para que tenha a pedra firme da perse-verança, a firmeza da fé".

Ambrósio introduz, então, a exortação: "Esforça-te por ser, também tu, uma pedra. Mas para isso, não procures a pedra fora de ti, mas dentro de ti. A tua pedra são as tuas acções, a tua pedra é o teu pensamento. Sobre esta pedra é edificada a tua casa, para que não seja flagelada por tempestade alguma dos espíritos do mal. Se fores uma pedra, estarás dentro da Igreja, porque a Igre-ja está acima da pedra. Se estiveres dentro da Igreja, as portas do inferno não prevalecerão contra ti" (VI, 97-99: Obras exegéticas IX/II, Milão-Ro-ma 1978 =Saemo 12, pág. 85).
(12 de fevereiro de 2003)

Salmo 118
Promessa de observar a lei de Deus

1. O que a liturgia de Laudes nos propõe no sábado da primeira semana é uma única estrofe tirada do Salmo 118, uma monumental oração de vinte e duas estrofes, tantas quantas são as letras do alfabeto hebraico. Cada estrofe se caracteriza por uma letra do alfabeto, com que começa cada um dos ver-sículos; a ordem das estrofes segue a do alfabeto. A que proclamámos agora é a estrofe número dezanove, correspondente à letra qof.

Esta premissa, um pouco superficial, permite-nos compreender melhor o significado deste cântico em honra da Lei divina. Ele é semelhante a uma música oriental, cujas modulações sonoras parecem nunca mais ter fim e elevam-se ao céu numa repetição que envolve a mente e os sentidos, o espí-rito e o corpo daquele que reza.

2. Numa sequência que se desenvolve do 'alef ao tau, isto é, da primeira à última letra do alfabeto do A ao Z, diremos nós com o alfabeto italiano aquele que reza expande-se no louvor da Lei de Deus, que adopta como lâmpada para os seus passos no caminho, tantas vezes obscuro, da vida (cf. v 105).

Diz-se que o grande filósofo e cientista Blaise Pascal recitava diariamente este Salmo, que é o maior de todos, enquanto o teólogo Dietrich Bon-hoeffer, assassinado pelos nazistas em 1945, o transformava numa oração viva e actual, escrevendo: "Indubitavelmente, o Salmo 118 é pesado pela sua extensão e monotonia, mas nós devemos avançar palavra por palavra, frase por frase, muito lenta e pacientemente. Descobriremos então que as aparentes repetições são, na relidade, aspectos novos de uma só e mesma realidade: o amor pela palavra de Deus. Como este amor não pode ter fim, também não o terão as palavras que o confessam. Elas podem acompanhar-nos ao longo de toda a nossa vida, e na sua simplicidade tornam-se oração da criança, do adulto e do idoso" (Rezar os Salmos com Cristo, Brescia, 1978³, p. 48).

3. O facto de repetir, além de ajudar a memória no canto coral, é ainda um modo de estimular a adesão interior e o abandono confiante nos braços de Deus, invocado e amado. Entre as repetições do Salmo 118, queremos assi-nalar uma muito significativa. Cada um dos 176 versículos de que é com-posto este louvor à Torah, isto é, à Lei e à Palavra divina, contém, pelo me-nos, uma das oito palavras com que se define a própria Torah: lei, palavra, testemunho, juízo, prescrição, decreto, preceito, ordem. Celebra-se assim a Revelação divina, que é manifestação do mistério de Deus, mas também guia moral para a existência do fiel.

Deus e o homem estão, deste modo, unidos por um diálogo composto de palavras e de obras, de ensino e escuta, de verdade e de vida.

4. Voltemos, agora, à nossa estrofe (cf. vv. 145-152), que se adapta bem à atmosfera das Laudes matutinas. De facto, a cena, que é posta no centro deste conjunto de oito versículos, é nocturna, mas aberta ao novo dia. De-pois de uma longa noite de espera e de vigília de oração no templo, quando a aurora aparece no horizonte e se começa a liturgia, o fiel está certo de que o Senhor ouvirá aquele que passou a noite a rezar, esperar e a meditar a Palavra divina. Confortado por esta consciência, perante a jornada que se abre diante dele, não temerá mais os perigos. Sabe que não será arrastado pelos seus perseguidores que, traiçoeiramente, o atacam, (cf. v. 150), porque o Senhor está a seu lado.
5. A estrofe exprime uma intensa oração: "Invoco-Vos com todo o coração: ouvi-me, Senhor... Pela manhã apresso-me a invocar-Vos; nas Vossas pala-vras eu espero..." (vv 145.147). No Livro das Lamentações lê-se este convi-te: "Levanta-te, grita durante a noite ao começo das vigílias; derrama o teu coração como água ante a face do Senhor; ergue para Ele as mãos" (Lam 2, 19). Santo Ambrósio repetia: " Não sabes, ó homem, que em cada dia deves oferecer a Deus as primícias do teu coração e da tua voz? Apressa-te, ao al-vorecer, para levar à igreja as primícias da tua piedade" (Exp. in ps. CXVIII: PL 15, 1476A).

Ao mesmo tempo, a nossa estrofe é ainda, a exaltação de uma certeza: nós não estamos sós, porque Deus escuta e intervém. Di-lo aquele que reza: "Vós, Senhor, estais perto" (v. 151). Também o dizem outros Salmos: "Aproximai-Vos de mim e salvai-me, respondei aos meus inimigos, resga-tando-me" (Sl. 68, 19); "O Senhor está perto dos aflitos do coração e salva os de espírito torturado" (Ps 33, 19).
(14 de novembro de 2001)

Salmo 118
Promessa de observar a lei de Deus

1. No nosso já longo itinerário à luz dos Salmos que a Liturgia das Laudes propõe, chegamos a uma estrofe precisamente a décima nona da maior ora-ção do Saltério, o Salmo 118. Trata-se de uma parte do grande cântico alfa-bético: através de um jogo de estilo, o Salmista distribui a sua obra em vin-te e duas estrofes, que correspondem à sequência das vinte e duas letras do alfabeto hebraico. Cada estrofe tem oito versículos, sendo o seu início mar-cado por palavras hebraicas que começam todas com uma mesma letra do alfabeto.

A que nós escutámos agora é uma estrofe cadenciada pela letra hebraica qôf, e representa o orante que apresenta a Deus a sua intensa vida de fé e de oração (cf. vv. 145-152).

2. A invocação ao Senhor não conhece repouso porque é uma resposta contínua à proposta permanente da Palavra de Deus. Com efeito, por um la-do, multiplicam-se os verbos da oração: Invoco-Te, chamo-Te, imploro aju-da, ouve a minha voz. Por outro, é exaltada a palavra do Senhor que propõe os decretos, os ensinamentos, a palavra, as promessas, o juízo, a lei, os pre-ceitos e os testemunhos de Deus. Ao mesmo tempo formam uma constela-ção que é como a estrela polar da fé e da confiança do Salmista. Mas a ora-ção revela-se como um diálogo, que se abre quando já é noite e o alvorecer ainda não despontou (cf. v. 147) e continua todo o dia, sobretudo nas difi-culdades da vida. De facto, o horizonte é por vezes sombrio e atormentado: "Os meus perseguidores estão perto, eles afastam-se da Vossa lei" (v. 150). Mas o orante tem uma certeza inabalável, a proximidade de Deus com a sua palavra e com a sua graça: "Também Vós, Senhor, estais perto" (v. 151). Deus não abandona o justo nas mãos dos perseguidores.

3. A este ponto, tendo sido delineada a mensagem simples, mas incisiva, da estrofe do Salmo 118 uma mensagem adequada para o ínicio de um dia remetemo-nos, para a nossa meditação, a um grande Padre da Igreja, Santo Ambrósio, que no seu Comentário ao Salmo 118 dedica 44 parágrafos para explicar precisamente a estrofe que ouvimos.

Retomando o convite espiritual para cantar o louvor divino desde as primei-ras horas da manhã, ele detém-se sobretudo nos versículos 147-148: "Pela manhã apresso-me a invocar-Vos... Os meus olhos antecipam-se às vigílias da noite". Nesta declaração do Salmista, Ambrósio intui a ideia de uma ora-ção constante, que abrange todos os tempos: "Quem implora o Senhor, com-porte-se como se não conhecesse a existência de qualquer tempo particular a ser dedicado às súplicas do Senhor, mas mantenha sempre aquela atitude de súplica. Tanto quando comemos, como quando bebemos, anunciamos Cristo, rezamos a Cristo, pensamos em Cristo, falamos de Cristo! Cristo esteja sempre no nosso coração e nos nossos lábios!" (Comentário ao Salmo 118/2: Saemo 10, pág. 297).

Depois, ao narrar os versículos no momento específico da manhã e aludindo também à expressão do livro da Sabedoria que perscreve que "se antecipe o sol para dar graças" a Deus (16, 28), Ambrósio comenta: "De facto, seria grave se os raios do sol nascente te surpreendessem a preguiçar na cama em vistoso desaforo e se uma luz mais forte te ferisse os olhos ensonados, ainda imersos no entorpecimento. Para nós, é uma acusação um espaço tão pro-longado de tempo passado sem a mínima prática de piedade e sem a oferta de um sacrifício espiritual, numa noite ociosa" (Ibidem, ob. cit., pág. 303).

4. Depois, Santo Ambrósio, ao contemplar o sol que surge como fizera nou-tro seu célebre hino "ao cantar do galo", o Aeterne rerum conditor, que en-trou na Liturgia das Horas interpela-nos assim: "Porventura, tu, homem, não sabes que todos os dias tens uma dívida para com Deus, das primícias do teu coração e da tua voz? A messe amadura todos os dias; todos os dias amadurece o seu fruto. Portanto, corre ao encontro do sol que nasce... O sol da justiça quer ser antecipado e nada mais espera... Se antecipares o nascer do sol, receberás Cristo como luz. Será precisamente Ele a primeira luz que brilhará no segredo do teu coração. Será precisamente Ele que... fará res-plandecer para ti a luz da manhã nas horas da noite, se reflectires sobre as palavras de Deus.

Enquanto tu reflectes, alvorece... Apressa-te, de manhã cedo, vai à igreja e recebe como homenagem as primícias da tua devoção. E depois, se o com-promisso do mundo te chama, nada te impede de dizer: "Os meus olhos an-tecipam-se às vigílias da noite para meditar sobre as tuas promessas", e com a consciência tranquila cumprirás os teus afazeres. Como é bom começar pelos hinos e cânticos, pelas bem-aventuranças que lês no Evangelho! Co-mo é propício que desça sobre ti para abençoar as palavras do Senhor; que tu, ao repetires, cantando, as bênçãos do Senhor, sintas o compromisso de praticar algumas virtudes, se desejas entrever também dentro de ti algo que te faça sentir merecedor daquela bênção divina!" (Ibidem, ob. cit., págs. 303.309.311.313).

Aceitemos também nós o apelo de Santo Ambrósio e todas as manhãs abra-mos o olhar sobre a vida quotidiana, sobre as suas alegrias e pesadelos, in-vocando Deus para que esteja próximo de nós e nos oriente com a sua pala-vra, que infunde serenidade e graça.
(15 de janeiro de 2003)

Salmo 134
Louvai ao Senhor que faz maravilhas

1. A Liturgia das Laudes, que estamos a seguir no seu desenvolvimento a-través das nossas catequeses, propõe-nos a primeira parte do Salmo 134, que acabou de ressoar no cântico dos coristas. O texto revela uma série den-sa de alusões a outros trechos bíblicos e a atmosfera que o envolve parece ser pascal. Não é sem motivo que a tradição judaica uniu este Salmo com o seguinte, o 135, considerando o conjunto como o "grande Hallel", isto é, o louvor solene e jubiloso que se deve elevar ao Senhor por ocasião da Pás-coa.

De facto, o Salmo, coloca em grande relevo o Êxodo, com a menção das "chagas" do Egipto e com a evocação da entrada na terra prometida. Mas sigamos agora as etapas seguintes, que o Salmo 134 revela no desenvol-vimento dos primeiros 12 versículos: é uma reflexão que queremos transfor-mar em oração.

2. Na abertura, deparamos com o característico convite ao louvor, um ele-mento dos hinos dirigidos ao Senhor no Saltério. O apelo a cantar o aleluia é dirigido aos "servos do Senhor" (cf. v. 1), que no original hebraico são apresentados como "ritos" no espaço sagrado do templo (cf. v. 2), ou seja, na atitude ritual da oração (cf. Sl 133, 1-2).

Estão envolvidos no louvor, antes de mais, os ministros do culto, sacerdotes e levitas, que vivem e trabalham nos "átrios da casa do nosso Deus" (cf. Sl 134, 2). Contudo, a estes "servos do Senhor" são associados espiritualmente todos os fiéis. De facto, imediatamente a seguir é mencionada a eleição de todo o Israel para que seja aliado e testemunha do amor do Senhor: "Ele elegeu Jacob para si e Israel para seu domínio preferido" (v. 4). Nesta pers-pectiva, celebram-se duas qualidades fundamentais de Deus: ele é "bom", ele é "amável" (cf. v. 3). O vínculo que existe entre nós e o Senhor está marcado pelo amor, pela intimidade, pela adesão jubilosa.

3. Depois do convite ao louvor, o Salmista prossegue com uma solene pro-fissão de fé, que começa com a expressão típica "Eu sou", isto é, eu reco-nheço, eu creio (cf. v. 5). São dois os artigos de fé proclamados por um so-lista em nome de todo o povo, reunido em assembleia litúrgica. Antes de mais exalta-se a obra de Deus em todo o universo: Ele é por excelência o Senhor da criação: "O Senhor criou tudo quanto quis: nos céus e sobre a terra" (v. 6). Domina também os mares e todos os abismos que são o emble-ma da confusão, das energias negativas, das limitações e do nada.

É sempre o Senhor quem forma as nuvens, os relâmpagos, a chuva e os ven-tos, recorrendo aos seus "reservatórios" (cf. v. 7). Com efeito, o homem an-tigo do Próximo Oriente imaginava que os factores climáticos estivessem conservados em recipientes especiais, semelhantes a cofres celestes, onde Deus os ia buscar para os distribuir na terra.
4. Outro componente da profissão de fé refere-se à história da salvação. O Deus criador é reconhecido agora como o Senhor redentor, recordando os acontecimentos fundamentais da libertação de Israel da escravidão egípcia. O Salmista cita antes de mais o "flagelo" dos primogénitos (cf. Êx 12, 29-30), que resume todos os "sinais e prodígios" realizados pelo Deus liberta-dor durante a epopeia da Êxodo (cf. Sl 134, 8-9). Imediatamente a seguir desfilam na recordação as clamorosas vitórias que permitiram que Israel vencesse as dificuldades e os obstáculos encontrados no seu caminho (cf. vv. 10-11). Por fim, eis que se apresenta no horizonte a terra prometida, que Israel recebe "em herança" do Senhor (cf. v. 12).

Pois bem, todos estes sinais de aliança que serão mais amplamente profes-sados no Salmo seguinte, o 135, confirmam a verdade fundamental, procla-mada no primeiro mandamento do Decálogo. Deus é único e é pessoa que realiza e fala, ama e salva: "Reconheço que é grande o Senhor e o nosso Deus é maior que todos os deuses" (v. 5; cf. Êx 20, 2-3; Sl 94, 3).

5. Na esteira desta profissão de fé, também nós elevamos o nosso louvor a Deus. O Papa São Clemente I na sua Carta aos Coríntios faz-nos este convite: "Olhemos para o Pai e Criador de todo o universo. Afeiçoemo-nos aos dons e benefícios da paz, magníficos e sublimes.

Contemplemo-l'O com o pensamento e olhemos com os olhos da alma a sua grande bondade! Consideremos como é imparcial em relação a todas as criaturas. Os céus que se movem segundo a Sua ordem obedecem-lhe na harmonia. O dia e a noite realizam o curso por Ele estabelecido e não são impedimento um para o outro. O sol e a lua e os coros das estrelas segundo a Sua direcção movem-se harmoniosamente sem desvios nas órbitas que lhe foram destinadas. A terra, fecunda pela Sua vontade, produz alimento abun-dante para os homens, para as feras e para todos os animais que vivem nela, sem relutância e sem nada mudar dos Seus ordenamentos" (19, 2-20, 4: Os Padres Apostólicos, Roma 1984, págs. 62-63). Clemente I conclui obser-vando: "O Criador e Senhor do universo dispôs que todas estas coisas acon-tecessem em paz e na concórdia, bondoso para com tudo e, de modo parti-cular, para connosco que recorremos à sua piedade por intercessão de Nosso Senhor Jesus Cristo. A Ele seja dada honra e glória por todos os séculos. Amen" (20, 11-12): ibidem, pág. 63).
(9 de abril de 2003)

Salmo 135
A paz, "novidade" imersa na história da Páscoa de Cristo

1. Nestes dias da Oitava da Páscoa é grande a alegria da Igreja pela res-surreição de Cristo. Depois de ter sofrido a paixão e a morte na cruz, Ele es-tá agora vivo para sempre e a morte já não tem poder algum sobre Ele.

Da comunidade dos fiéis, em todas as partes do mundo, eleva-se ao céu um cântico de louvor e de agradecimento Àquele que libertou o homem da es-cravidão do mal e do pecado mediante a redenção realizada pelo Verbo en-carnado. É o que exprime o Salmo 135 há pouco proclamado. O amor mise-ricordioso de Deus revela-se plena e definitivamente no Mistério pascal.

2. Depois da ressurreição, o Senhor aparece várias vezes aos discípulos e encontra-se com eles em momentos diferentes. Os Evangelistas narram vá-rios episódios dos quais transparece a admiração e a alegria das testemunhas de acontecimentos tão prodigiosos. Em particular, João realça as primeiras palavras dirigidas pelo Mestre ressuscitado aos discípulos.

"A paz esteja convosco", diz Ele entrando no Cenáculo, e repete esta saúda-ção três vezes (cf. Jo 20, 19.21.26). Podemos dizer que esta expressão "a paz esteja convosco", em hebraico shalom, contém e sintetiza, de certa for-ma, toda a mensagem pascal. A paz é o dom oferecido aos homens pelo Se-nhor ressuscitado e é o fruto da vida nova inaugurada pela sua ressurreição.

Por conseguinte, a paz identifica-se como "novidade" imersa na história da Páscoa de Cristo. Ela nasce de uma profunda renovação do coração do ho-mem. Por conseguinte, ela não é o resultado de esforços humanos nem pode ser obtida apenas graças a acordos entre pessoas e instituições.

É, ao contrário, um dom que se deve aceitar com generosidade, guardar com cuidado, e fazer frutificar com maturidade e com responsabilidade. Por mais atormentadas que sejam as situações e grandes as tensões e os confli-tos, nada pode resistir à renovação eficaz que Cristo Ressuscitado nos trou-xe. Ele é a nossa paz. Como lemos na Carta de São Paulo aos Efésios, Ele com a sua Cruz derrotou a inimizade "para criar em si mesmo, com os dois, um único homem novo, fazendo a paz" (2, 15).
3. A Oitava da Páscoa, repleta de luz e de alegria, concluir-se-á no próximo domingo com o domingo in Albis, chamado também domingo da "Miseri-córdia Divina". A Páscoa é manifestação perfeita desta misericórdia de Deus, "que tem piedade dos Seus servos" (Sl 135, 14).

Com a morte na Cruz, Cristo reconciliou-nos com Deus e lançou no mundo as bases para uma convivência fraterna entre todos. Em Cristo o ser huma-no, frágil e que aspira pela felicidade, foi resgatado da escravidão do Ma-ligno e da morte, que gera tristeza e sofrimento. O sangue do Redentor la-vou os nossos pecados. Desta forma, experimentámos o poder renovador do seu perdão. A misericórdia divina abre o coração ao perdão dos irmãos, e é com o perdão oferecido e recebido que se constrói a paz nas famílias e em qualquer outro ambiente de vida.

Renovo de bom grado os meus votos pascais mais cordiais para todos vós, enquanto vos confio juntamente com as vossas famílias e as vossas comu-nidades à celeste protecção de Maria, Mãe da Misericórdia e Rainha da Paz.
(23 de abril de 2003)

Salmo 142
A oração na tribulação

1. Acaba de ser proclamado o Salmo 142, o último dos chamados "Salmos penitenciais", na série de sete súplicas distribuídas no Saltério (cf. 6, 31, 37, 50, 101, 129 e 142). A tradição cristã utilizou-os todos para invocar do Se-nhor o perdão dos pecados. O texto que hoje queremos aprofundar era parti-cularmente caro a São Paulo, que nele reconheceu uma pecaminosidade ra-dical em cada criatura humana: "Nenhum ser vivo é justo na vossa presença (ó Senhor)" (v. 2). Esta frase é vista pelo Apóstolo como a base do seu ensi-namento sobre o pecado e a graça (cf. Gl 2, 16; Rm 3, 20).

A Liturgia das Laudes propõe-nos esta súplica como um propósito de fide-lidade e pedido de socorro divino no despontar do dia. Com efeito, o Salmo faz-nos dizer a Deus: "Fazei-me sentir pela manhã a vossa bondade, porque em Vós confio" (v. 8).

2. O Salmo começa com uma intensa e insistente súplica dirigida a Deus, fiel às promessas de salvação oferecidas ao povo (cf. v. 1). O orante reco-nhece que não tem qualquer mérito para fazer valer e, portanto, pede humil-demente a Deus que não o julgue (cf. v. 2).

Em seguida, ele fala sobre a situação dramática, semelhante a um pesadelo mortal, em que se está a debater: o inimigo, que é a representação do mal da história e do mundo, levou-o até ao limiar da morte. Com efeito, eis que es-tá prostrado no pó da terra, que já é uma imagem do sepulcro; eis as trevas, que constituem uma negação da luz, sinal divino de vida; eis, por fim, "os mortos de há muito tempo", ou seja, os que já passaram (cf. v. 3), entre os quais ele parece ter sido relegado.

3. A própria existência do Salmista está ameaçada: já lhe falta a respiração e o seu coração parece um bloco de gelo, incapaz de continuar a bater (cf. v. 4). O fiel, prostrado por terra e espezinhado, só tem as mãos livres, que se elevam para o céu num gesto que é, ao mesmo tempo, de pedido de ajuda e de procura de socorro (cf. v. 6). Efectivamente, o seu pensamento corre ao passado, em que Deus realizou prodígios (cf. v. 5).

Esta centelha de esperança aquece o gelo do sofrimento e da provação, em que o orante se sente mergulhado, prestes a desfalecer (cf. v. 7). Em todo o caso, a tensão é sempre forte; mas um raio de luz parece vislumbrar-se no horizonte. Assim, passamos à outra parte do Salmo (cf. vv. 7-11).

4. Ela começa com uma nova e urgente súplica. Sentindo que a vida quase lhe escapa, o fiel lança o seu clamor a Deus: "Senhor, apressai-vos a res-ponder-me, [porque] estou a ponto de desfalecer" (v. 7). Aliás, ele teme que Deus tenha escondido o seu Rosto, afastando-se, abandonando-o e deixando sozinha a sua criatura.

O desaparecimento do Rosto divino faz com que o homem caia na deso-lação, aliás, na própria morte, porque o Senhor é a fonte da vida. É preci-samente neste tipo de fronteira extrema que floresce a confiança no Deus que não abandona. O orante multiplica as suas invocações, sustentando-as com declarações de confiança no Senhor: "Porque em Vós confio... porque é para Vós que elevo a minha alma... é em Vós que me refugio... porque Vós sois o meu Deus...". Ele pede para ser salvo dos seus inimigos (cf. vv. 8-10) e libertado da angústia (cf. v. 11), mas faz continuamente um pedido, que manifesta uma profunda aspiração espiritual: "Ensinai-me a cumprir a vossa vontade, porque Vós sois o meu Deus" (v. 10 a; cf. vv. 8 b e 10 b). Temos o dever de fazer nosso este pedido admirável. Devemos compre-ender que o nosso maior bem é a união da nossa vontade à vontade do nosso Pai celestial, porque é somente assim que podemos receber em nós todo o seu amor, que nos traz a salvação e a plenitude da vida. Se não for acom-panhada de um forte desejo de docilidade a Deus, a confiança nele não será autêntica.

O orante está consciente disto e, por conseguinte, exprime este desejo. En-tão, a sua é uma verdadeira e própria confissão de confiança em Deus sal-vador, que tira da angústia e volta a dar o gosto da vida, em nome da sua "justiça", ou seja, da sua fidelidade amorosa e salvífica (cf. v. 11). Partindo de uma situação mais angustiante do que nunca, a oração chegou à espe-rança, à alegria e à luz, graças a uma adesão sincera a Deus e à sua vontade, que é uma vontade de amor. Este é o poder da oração, geradora de vida e de salvação.

5. Fixando o olhar na luz matutina da bondade (cf. v. 8), no seu comentário aos sete Salmos penitenciais, São Gregório Magno descreve desta maneira aquele alvorecer de esperança e de júbilo: "É o dia iluminado por aquele sol verdadeiro, que não conhece ocaso, que as nuvens não tornam tenebroso e que a neblina não obscurece... Quando aparecer Cristo, nossa vida, e come-çarmos a ver Deus abertamente, então desaparecerá todo o vestígio das tre-vas, esvaecendo-se toda a nuvem da ignorância, dissipando-se toda a névoa da tentação... Esse será o dia luminoso e maravilhoso, preparado para todos os eleitos por Aquele que nos tirou do poder das trevas e nos transferiu para o reino do seu Filho predilecto".

"A manhã desse dia é a ressurreição futura... Naquela manhã resplandecerá a felicidade dos justos, aparecerá a glória, ver-se-á a alegria, quando Deus enxugar todas as lágrimas dos olhos dos santos, quando por fim for destruí-da a morte, quando os justos brilharem como o sol no reino do Pai".

"Naquela manhã, o Senhor fará experimentar a sua misericórdia... dizendo: "Vinde, benditos de meu Pai" (Mt 25, 34). Então, tornar-se-á manifesta a misericórdia de Deus que, na vida presente, a mente humana não consegue conceber. Com efeito, para aqueles que O amam, o Senhor preparou aquilo que os olhos não viram, nem o ouvido ouviu, nem entrou no coração do ho-mem" (PL 79, coll. 649-650).
(9 de julho de 2003)

Salmo 143
A oração do rei pela vitória e a paz

1. Ouvimos agora a primeira parte do Salmo 143. Ela tem as características de um hino real, enriquecido com outros textos bíblicos, de forma a dar vida a uma nova composição orante (cf. Sl 8, 5; 17, 8-15; 32, 2-3; 38, 6-7). Quem fala em primeira pessoa é o próprio rei David, que reconhece a origem divina dos seus sucessos.

O Senhor é representado com imagens marciais, segundo o antigo uso sim-bólico: de facto, é visto como um instrutor militar (cf. Sl 143, 1), uma forta-leza invencível, um escudo protector, um triunfador (cf. v. 2). Desta manei-ra, pretende-se exaltar a personalidade de Deus, que se compromete contra o mal da história: ele não é um poder obscuro ou uma espécie de destino, nem um soberano impassível e indiferente em relação às vicissitudes huma-nas. As citações e as tonalidades desta celebração divina sentem o efeito do hino de David conservado no Salmo 17 e no capítulo 22 do Segundo Livro de Samuel.

2. Face ao poder divino o rei hebraico reconhece a sua fragilidade e debi-lidade como todas as criaturas humanas. Para exprimir esta sensação, o orante real recorre a duas frases presentes nos Salmos 8 e 38, e relaciona-as conferindo-lhes uma nova e mais intensa eficiência: "Que é o homem, Se-nhor, para que te ocupes dele, e o Filho do homem para que penses nele? O homem é semelhante a um sopro, os seus dias são como a sombra que pas-sa" (vv. 3-4). É realçada aqui a firme convicção de que nós somos in-consistentes, semelhantes a um sopro de vento, se o Criador não nos con-serva vivos, Ele que como diz Job "tem nas suas mãos a alma de cada ser vivo e o sopro de cada vida humana" (12, 10).

Só com o apoio divino podemos superar os perigos e as dificuldades que nos acompanham todos os dias da nossa vida. Só contando com a ajuda do Céu poderemos comprometer-nos, como o antigo rei de Israel, em libertar-nos de qualquer forma de opressão e a caminhar para a liberdade.

3. A intervenção divina é apresentada com as tradicionais imagens cósmicas e históricas, com a finalidade de ilustrar o domínio divino sobre a criação e sobre as vicissituides humanas. Eis, então, montes que fumegam em erup-ções vulcânicas (cf. Sl 143, 5). Eis que os raios parecem lanças atiradas pelo Senhor destinadas a aniquilar o mal (cf. v. 6). Por fim, eis as "grandes águas" que, na linguagem bíblica, são símbolo da desordem, do mal e do nada, em síntese, das presenças negativas na história (cf. v. 7). A estas imagens cósmicas associam-se outras de índole histórica: são "os inimigos" (cf. v. 6), os "estrangeiros" (cf. v. 7), os mentirosos e quem jura falso, isto é, os idólatras (cf. v. 8).

Trata-se de uma forma muito concreta e oriental para representar a maldade, as perversões, a opressão e a injustiça: realidades tremendas das quais o Se-nhor nos liberta, enquanto nos encontramos no mundo.

4. O Salmo 143, que a Liturgia das Laudes nos propõe, termina com um breve hino de agradecimento (cf. vv. 9-10). Ele surge da certeza de que Deus não nos abandonará na luta contra o mal. Por isso o orante entoa uma melodia acompanhando-a com a sua arpa de doze cordas, com a certeza de que o Senhor "aos reis concede a vitória, e liberta David, seu servo" (cf. vv. 9-10).

A palavra "consagrado" em hebraico significa "Messias": por conseguinte, estamos na presença de um Salmo real que se transforma, já no uso litúrgico do antigo Israel, num cântico messiânico. Nós, cristãos repetimo-lo tendo o olhar fixo em Cristo, que nos liberta de qualquer forma de mal e nos ampara na batalha contra os perversos poderes escondidos. De facto, ela não tem de lutar "contra a carne e o sangue, mas contra os Principados, Potestades, con-tra os Dominadores deste mundo de trevas, contra os espíritos malignos es-palhados pelos ares" (Ef 6, 12).

5. Concluímos então com uma consideração que nos é sugerida por São João Cassiano, monge do IV-V século, que viveu na Gália. Na sua obra A Encarnação do Senhor, ele, inspirando-se no versículo 5 do nosso Salmo "Senhor, inclinai os vossos céus e descei" vê nestas palavras a expectativa da entrada de Cristo no mundo.

E continua assim: "O Salmista suplicava que... o Senhor se manifestasse na carne, aparecesse visivelmente no mundo, fosse assumido visivelmente na glória (cf. 1 Tim 3, 16) e que finalmente os santos pudessem ver, com os olhos do corpo, tudo o que eles espiritualmente tinham previsto" (A En-carnação do Senhor, V, 13, Roma 1991, pág. 208-209). É deste modo que todos os baptizados dão testemunho, na alegria da fé.
(21 de maio de 2003)

Salmo 145
Feliz quem espera no Senhor

1. O Salmo 145, que acabámos de escutar, é um "aleluia", o primeiro dos cinco, que encerram toda a colecção do Saltério. Já a tradição hebraica uti-lizava este hino como cântico de louvor para a manhã: ele tem o seu vértice na proclamação da soberania de Deus sobre a história humana. Com efeito, no final do Salmo declara-se, "que o Senhor reina para sempre" (v. 10).

Daqui segue uma verdade consoladora: não estamos abandonados a nós mesmos, as vicissitudes dos nossos dias não são dominadas pelo caos ou pe-lo acaso, os acontecimentos não representam uma mera sucessão de actos desprovidos de qualquer sentido e meta. É a partir desta convicção que se desenvolve uma verdadeira e própria profissão de fé em Deus, celebrado com uma espécie de ladainha, em que se proclamam os atributos de amor e de bondade que lhe são próprios (cf. vv. 6-9).

2. Deus é Criador do céu e da terra, é guarda fiel do pacto que o liga ao seu povo, é Aquele que age com justiça em relação aos oprimidos, dá o pão que sustém os famintos e liberta os prisioneiros. É Ele que abre os olhos aos ce-gos, ergue quem caiu, ama os justos, protege o estrangeiro e ajuda o órfão e a viúva. É Ele que transforma o caminho dos ímpios e reina soberano sobre todos os seres e em todas as épocas.

Trata-se de doze afirmações teológicas que, com o seu número perfeito, querem exprimir a plenitude e a perfeição da acção divina. O Senhor não é um soberano distante das suas criaturas, mas faz parte da sua história, como Aquele que fomenta a justiça, pondo-se da parte dos últimos, das vítimas, dos oprimidos e dos infelizes.

3. Então, o homem encontra-se diante de uma opção radical, entre duas pos-sibilidades opostas: por um lado, há a tentação de "confiar nos poderosos" (cf. v. 3), adoptando os seus critérios inspirados no mal, no egoísmo e no orgulho. Na realidade, este é um caminho ameaçador e traiçoeiro, é "uma senda tortuosa e uma via oblíqua" (cf. Pr 2, 15), que tem como meta o desespero.

Com efeito, o Salmista recorda-nos que o homem é um ser frágil e mortal, como diz o próprio vocábulo 'adam que, em hebraico, remete para a terra, a matéria e o pó. O homem repete com frequência a Bíblia é semelhante a um edifício que se desfaz (cf. Co 12, 1-7), a uma teia de aranha que o vento pode despedaçar (cf. Job 8, 14), a um fio de relva, verdejante na aurora e se-co no crepúsculo (cf. Sl 89, 5-6; 102, 15-16). Quando a morte se lhe apre-senta, todos os seus projectos se dissipam e ele volta a ser pó: "Exalam o es-pírito e voltam ao pó, e no mesmo dia perecem os seus planos" (Sl 145, 4).

4. Porém, há também outra possibilidade diante do homem, exaltada pelo Salmista com uma bem-aventurança: "Feliz aquele que recebe a ajuda do Deus de Jacob, feliz aquele que espera no Senhor seu Deus" (v. 5). Este é o caminho da confiança no Deus eterno e fiel. O amen, que é a palavra hebrai-ca da fé, significa precisamente um fundamentar-se na solidez inabalável do Senhor, na sua eternidade e no seu poder infinito. Mas significa, sobretudo, compartilhar as suas opções, realçadas pela profissão de fé e de louvor, co-mo antes descrevemos. É necessário viver na adesão à vontade divina, ofe-recer o pão aos famintos, visitar os prisioneiros, ajudar e confortar os doen-tes, defender e acolher os estrangeiros, dedicar-se aos pobres e aos miserá-veis. A nível concreto, é o próprio espírito das bem-aventuranças; é aderir à proposta de amor que nos salva já nesta vida e, além disso, será o objecto do nosso exame no juízo final, que selará a história. Então, seremos julgados a partir da opção de servir Cristo no faminto, no sedento, no forasteiro, na pessoa nua, no enfermo e no prisioneiro. "Todas as vezes que fizestes isto a um dos menores dos meus irmãos, foi a mim que o fizestes" (Mt 25, 40): então, é isto que o Senhor dirá.

5. Concluímos a nossa meditação do Salmo 145, com um ponto de reflexão, que nos é oferecido pela tradição cristã seguinte.

Quando Orígenes, o grande escritor do século III, chegou ao v. 7 deste Sal-mo, que diz: "O Senhor dá o pão aos famintos e liberta os prisioneiros", viu nisto uma referência implícita à Eucaristia: "Temos fome de Cristo, e é Ele mesmo que nos dará o pão do céu: "O pão nosso de cada dia nos dai hoje". Aqueles que falam assim, são os famintos; quem sente necessidade do pão, é o faminto". E esta fome é plenamente saciada pelo Sacramento eucarís-tico, em que o homem se nutre do Corpo e do Sangue de Cristo (cf. Orí-genes Jerónimo, 74 omelie sul libro dei Salmi, Milão 1993, pp. 526-527).
(2 de julho de 2003)

Salmo 146
O poder e a bondade do Senhor

1. O Salmo que acabamos de cantar é a primeira parte de uma composição que inclui também o Salmo seguinte, 147, e que o original hebraico conser-vou na sua unidade. Foram as antigas versões grega e latina que dividiram o cântico em dois Salmos diferentes.

O Salmo começa com um convite a louvar a Deus e depois enumera uma longa série de motivos de louvor, todos expressos no presente. Trata-se de actividades de Deus, consideradas características e sempre actuais; mas são de géneros muito diferentes: algumas referem-se às intervenções de Deus na existência humana (cf. Sl 146, 3.6.11) e sobretudo em favor de Jerusalém e de Israel (cf. v. 2); outras referem-se ao universo criado (cf. v. 4) e mais es-pecialmente à terra com a sua vegetação e com os animais (cf. vv. 8-9).

Por fim, dizendo de quem o Senhor se apraz, o Salmo convida-nos a ter uma dúplice atitude: de temor religioso e de confiança (cf. v. 11). Nós não esta-mos abandonados a nós mesmos ou às energias cósmicas, mas estamos sem-pre nas mãos do Senhor, devido ao seu projecto de salvação.

2. Depois do convite festivo ao louvor (cf. v. 1), o Salmo desenvolve-se em dois movimentos poéticos e espirituais. No primeiro (cf. vv. 2-6) introduz-se antes de mais a acção histórica de Deus, sob a imagem de um construtor que está a edificar novamente Jerusalém, que recuperou a vida depois do exílio na Babilónia (cf. v. 2). Mas este grande artífice, que é o Senhor, re-vela-se também como um pai que se inclina sobre as feridas interiores e físi-cas, presentes no seu povo humilhado e oprimido (cf. v. 3).

Demos espaço a Santo Agostinho que, na Exortação do Salmo 146, feita em Cartagena em 412, comentava do seguinte modo a frase: "O Senhor cura to-dos os que têm o coração atribulado": "Quem não tem o coração atribulado não é curado... Quem são aqueles de coração atribulado? Os humildes. E os que não atribulam o coração? Os soberbos. Contudo, o coração atribulado é curado, o coração repleto de orgulho é derrubado. Aliás, provavelmente, se é derrubado é precisamente para que, depois da atribulação, possa ser resta-belecido, curado... "Ele cura os que têm o coração atribulado, e cura as suas rupturas"... Por outras palavras, cura os humildes de coração, os que confes-sam, que se punem, que julgam com severidade para poder experimentar a sua misericórdia. Eis quem cura. Mas a saúde perfeita será alcançada no fim do presente estado mortal, quando o nosso ser corruptível for revestido de incorruptibilidade e o nosso ser mortal estiver revestido de imortalidade" (5-8: Exposições sobre os Salmos, IV, Roma 1977, pp. 772-779).

3. Mas a obra de Deus não se manifesta apenas através da cura dos sofri-mentos do seu povo. Ele, que circunda os pobres de ternura e cuidados, ele-va-se como juiz severo em relação aos soberbos (cf. v. 6). O Senhor da his-tória não permanece indiferente perante a fúria dos prepotentes, que se jul-gam os únicos árbitros das vicissitudes humanas: Deus reduz ao pó da terra todos aqueles que desafiam o céu com a sua soberba (cf. 1 Sm 2, 7-8; Lc 1, 51-53).

Mas a acção de Deus não se esgota no seu senhorio sobre a história; ele é também o rei da criação, todo o universo responde à sua chamada de Cria-dor. Ele não só pode contar a grande quantidade das estrelas, mas é capaz também de chamar cada uma pelo nome, definindo, por conseguinte, a sua natureza e as suas características (cf. Sl 146, 4).

Já o profeta Isaías cantava: "Levantai os olhos ao céu e olhai: quem criou todos estes astros? Aquele que os conta e os faz marchar como um exército, e a todos chama pelos seus nomes" (40, 26). Por conseguinte, os "exércitos" do Senhor são as estrelas. O profeta Baruc continuava assim: "As estrelas brilham nos seus postos e alegram-se. Ele chama-as e elas respondem: "A-qui estamos". E, jubilosas, dão luz ao seu Senhor" (3, 34-35).

4. Depois de um novo convite jubiloso ao louvor (cf. Sl 146, 7), eis que se abre o segundo movimento do Salmo 146 (cf. vv. 7-11). Continua em pri-meiro plano ainda a acção criadora de Deus na criação. Numa paisagem muitas vezes árida, como a oriental, o primeiro sinal do amor divino é a chuva que fecunda a terra (cf. v. 8). Neste seguimento, o Criador prepara uma mesa para os animais. Aliás, ele preocupa-se em dar alimento também aos seres vivos mais pequeninos, como os filhinhos dos corvos que bradam devido à fome (cf. v. 9). Jesus convida-nos a olhar "para as aves do céu: não semeiam, nem ceifam, nem recolhem em celeiros; e o vosso Pai celeste alimenta-as" (Mt 6, 26; cf. também Lc 12, 24 com a referência explícita aos "corvos").

Mas, uma vez mais, a atenção vai da criação para a existência humana. E assim o Salmo conclui-se mostrando o Senhor que se inclina sobre quem é justo e humilde (cf Sl 146, 10-11), como já se tinha declarado na primeira parte do hino (cf. v. 6). Através de dois símbolos de poder, o cavalo e as pernas do homem quando corre, delineia-se a atitude divina que não se dei-xa conquistar ou atemorizar pela força. Mais uma vez, a lógica do Senhor ignora o orgulho e a arrogância do poder, mas defende quem é fiel e "espera na sua graça" (v. 11), ou seja, deixa-se orientar por Deus no seu agir e no seu pensar, nos seus projectos e na própria vivência quotidiana.

É entre eles que se deve colocar também quem reza, baseando a sua espe-rança na graça do Senhor, com a certeza de ser envolvido pelo manto do amor divino: "O Senhor é quem vigia sobre os Seus fiéis, sobre aqueles que esperam na sua bondade, libertando-os da morte e fazendo-os viver no tem-po da fome... n'Ele se alegra o nosso coração e em Seu santo nome confia-mos" (Sl 32, 18-19.21).
(23 de julho de 2003)

Salmo 147
A Jerusalém reconstruída

1. O Lauda Jerusalem, que acabamos de proclamar, é muito apreciado pela liturgia cristã. Ela entoou com frequência o Salmo 147 relacionando-o com a Palavra de Deus, que "corre veloz" sobre a face da terra, mas também com a Eucaristia, verdadeira "flor de trigo" concedida por Deus para "saciar" a fome do homem (cf. Sl 147, 14-15).

Orígenes, numa das suas homilias, traduzidas e difundidas no Ocidente por São Jerónimo, ao comentar o nosso Salmo, relacionava precisamente a Pala-vra de Deus com a Eucaristia: "Nós lemos as Sagradas Escrituras. Eu penso que o Evangelho é o Corpo de Cristo; penso que as Sagradas Escrituras são o seu ensinamento. E quando ele diz: Se não comerdes a carne do Filho do Homem e não beberdes o Seu sangue (cf. Jo 6, 53), mesmo se estas pala-vras se podem compreender também do Mistério [eucarístico], contudo o corpo de Cristo e o seu sangue são verdadeiramente a palavra das Escri-turas, são o ensinamento de Deus. Quando assistimos ao Mistério [euca-rístico], se dele se desperdiça uma pequena porção, sentimo-nos perdidos. E quando estamos a ouvir a Palavra de Deus, e nos chega aos ouvidos a Palavra de Deus, a carne de Cristo e o seu sangue, e nós pensamos noutras coisas, em que grande perigo nós caímos!" (74 Homilias sobre o Livro dos Salmos, Milão 1993, pp. 543-544).

Os estudiosos fazem notar que este Salmo deve ser relacionado com o pre-cedente, para constituir uma única composição, como acontece precisa-mente no original hebraico. De facto, tem-se um cântico único e coerente em honra da criação e da redenção realizadas pelo Senhor. Ele começa com um jubiloso apelo ao louvor: "Louvai o Senhor porque é bom cantar. Louvai o nosso Deus porque o louvor é agradável" (Sl 146, 1).

2. Se detivermos a nossa atenção no trecho que agora acabamos de ouvir, podemos apercebernos de três momentos de louvor, introduzidos por um convite dirigido à cidade santa, Jerusalém, para que glorifique e louve o seu Senhor (cf. Sl 147, 12).

No primeiro momento (cf. vv. 13-14) entra em cena a acção histórica de Deus. Ela é descrita através de uma série de símbolos que representam a obra de protecção e de apoio realizada pelo Senhor em relação à cidade de Sião e dos seus filhos. Antes de mais faz-se referência às "grades" que forti-ficam e fazem com que as portas de Jerusalém sejam invioláveis. Talvez o Salmista se refira a Neemias que fortificou a cidade santa, reconstruída depois da experiência amarga do exílio em Babilónia (cf. 3, 3.6.13-15; 1-9; 6, 15-16; 12, 27-43). A porta, entre outras coisas, é um sinal para indicar to-da a cidade na sua densidade e tranquilidade. No seu interior, representado como um seio seguro, os filhos de Sião, isto é, os cidadãos, gozam da paz e da serenidade, envolvidos no manto protector da bênção divina.

A imagem da cidade jubilosa e tranquila é exaltada pelo dom altíssimo e precioso da paz que faz com que as fronteiras sejam seguras. Mas precisa-mente porque para a Bíblia a paz-shalôm não é um conceito negativo, que recorda a ausência de guerra, mas um facto positivo de bem-estar e prospe-ridade, eis que o Salmista introduz a saciedade com a "flor de trigo", isto é, com o grão excelente, com as espigas cheias de grãos. Por conseguinte, o Senhor fortaleceu as defesas de Jerusalém (cf. Sl 87, 2), fez descer sobre ela a sua bênção (cf. Sl 128, 5; 134, 3), fazendo-a chegar a todo o país, conce-deu a paz (cf. Sl 122, 6-8) e saciou os seus filhos (cf. Sl 132, 15).

3. Na segunda parte do Salmo (cf. Sl 147, 15-18), Deus apresenta-se so-bretudo como criador. De facto, relaciona-se duas vezes a obra criadora com a palavra que fez desabrochar o aparecimento do ser: "Deus disse: "Fa-ça-se a luz". E a luz foi feita... Envia as suas ordens à terra... Envia a Sua palavra..." (cf. Gn 1, 3; Sl 147, 15.18).

De acordo com a Palavra divina, eis que surgem e se estabelecem as duas estações fundamentais: por um lado, a ordem do Senhor faz descer sobre a terra o inverno, representado de modo significativo pela neve suave como a lã, pelo orvalho semelhante à poeira, pelo granizo comparável às migalhas de pão e pelo gelo que tudo paraliza (cf. vv. 16-17). Por outro lado, outra ordem divina manda soprar o vento quente que traz o Verão e faz derreter a neve: as águas da chuva e dos rios podem correr livremente para regar a terra e a fecundar.

Por conseguinte, a Palavra de Deus está na base do frio e do calor, do ciclo das estações e da afluência da vida na natureza. A humanidade é convidada a reconhecer e a dar graças ao Criador pelo dom fundamental do universo, que a rodeia, faz com que ela respire, a alimenta e ampara.

4. Passa-se então ao terceiro e último momento do nosso hino de louvor (cf. vv. 19-20). Volta-se ao Senhor da história do qual se partiu. A Palavra divi-na leva a Israel um dom ainda mais nobre e precioso, o da lei, da Revelação. Um dom específico: "Não trata assim os outros povos, todos esses ignoram os seus mandamentos" (v. 20).

Portanto, a Bíblia é o tesourto do povo eleito à qual devemos aderir com a-mor e fidelidade. É o que diz Moisés aos Hebreus no Deuteronómio: "Qual é o grande povo, que possua mandamentos e preceitos tão justos como esta Lei que hoje vos apresento?" (Dt 4, 8).

5. Assim como existem duas acções gloriosas de Deus na criação e na his-tória, assim também existem duas revelações: uma inscrita na própria natu-reza e que está aberta a todos, a outra oferecida ao povo eleito, que a deverá testemunhar e comunicar a toda a humanidade e que está contida na Sagrada Escritura. Duas revelações distintas, mas Deus permanece único assim co-mo a sua Palavra. Tudo foi feito por meio da Palavra dirá o Prólogo do Evangelho de João e sem ela nada de tudo o que existe foi feito. Mas a Pala-vra também se fez "homem", isto é, entrou na história, e levantou a sua ten-da entre nós (cf. Jo 1, 3.14).
(5 de junho de 2002)

Salmo 147
A Jerusalém reconstruída

1. O Salmo que agora foi proposto à nossa meditação constitui a segunda parte do precedente Salmo 146. As antigas traduções grega e latina, segui-das pela Liturgia, consideraram-no, ao contrário, como um cântico separa-do, porque o seu começo se distingue totalmente da parte anterior. Este co-meço tornou-se célebre também porque com frequência é usado na música latina: Lauda, Jerusalem, Dominum. Estas palavras iniciais constituem o ti-pico convite dos hinos sálmicos para celebrar e louvar o Senhor: agora Jerusalém, personificação do povo, é interpelada para que exalte e glorifi-que o seu Deus (cf. 147, 12).

Imediatamente se menciona o motivo pelo qual a comunidade orante deve elevar ao Senhor o seu louvor. Este é de índole histórica: foi Ele, o Líber-tador de Israel do exílio na Babilónia, que deu segurança ao seu povo, forti-ficando "os ferrolhos das portas" da cidade (cf. v. 13).

Quando Jerusalém tinha sucumbido sob o assalto do exército do rei Nabu-codonosor, em 586 a.C., o livro das Lamentações apresentou o próprio Senhor como juiz do pecado de Israel, enquanto demolia "os muros da filha de Sião... Jazem sob os escombros as suas portas; quebrou-as, partindo as trancas" (Lm 2, 8.9). Agora, ao contrário, o Senhor volta a ser o construtor da cidade santa; no templo reconstruído Ele abençoa de novo os seus filhos. Desta forma, é mencionada a obra realizada por Neemias (cf. Ne 3, 1-38), que tinha restabelecido os muros de Jerusalém, para que voltasse a ser um oásis de serenidade e de paz.

2. A paz, salum, de facto é imediatamente evocada, também porque está contida de modo simbólico no próprio nome Jerusalém. Já o profeta Isaias prometia à cidade: "porei por teu governador a paz, por teu magistrado a justiça" (60, 17).

Mas, além de fazer reconstruir os muros da cidade, de a abençoar e de a pa-cificar na segurança, Deus oferece a Israel outros dons fundamentais: é o que se descreve no fim do Salmo. De facto, ali sao recordados os dons da Revelaçao, da Lei e das prescrições divinas: "Ele revela os Seus planos a Jacob, os Seus preceitos e leis a Israel" (Sl 147, 19).

Celebra-se, assim, a eleiçao de Israel e a sua missao ùnica entre os povos: proclamar ao mundo a Palavra de Deus. É uma missao profética e sacerdo-tal, porque "qual é o grande povo, que possui mandamentos e preceitos tao justos como esta Lei que hoje vos apresento?" (Dt 4, 8). Através de Israel e, por conseguinte, também através da comunidade crista, ou seja, da Igreja, a Palavra de Deus pode ressoar no mundo e tornar-se norma e luz de vida pa-ra todos os povos (cf. Sl 147, 20).

3. Até agora descrevemos a primeira razao do louvor que devemos elevar ao Senhor: é uma motivaçao histórica, isto é, relacionada à acçao libertadora e reveladora a respeito do seu povo.

Mas existe outra fonte de exultaçao e de louvor: ela é de indole cósmica, ou seja, relacionada à acçao criadora de Deus. A Palavra divina irrompe para dar vida ao ser. Semelhante a um mensageiro, ela corre pelos espaços imen-sos da terra (cf. Sl 147, 15). E imediatamente se dá um florescimento de maravilhas.

Eis que chega o Inverno que é descrito nos seus fenómenos atmosféricos com uma tonalidade poética: a neve é semelhante à la devido ao seu candor, a geada com os seus pingos subtis é como a poeira do deserto (cf. v. 16), o granizo assemelha-se às migalhas de pao que caem no chao, o gelo coalha a terra e impede a vegetaçao (cf. v. 17). É um quadro invernal que convida a descobrir as maravilhas da criaçao e que será retomado numa página muito pitoresca também por um livro biblico, o de Sirácide (cf. 43, 18-20).

4. Mas eis que, sempre pela acçao da Palavra divina, volta a Primavera: o gelo derrete-se, o vento quente sopra e faz fluir a água (cf. Sl 147, 18), re-petindo assim o ciclo perene e, por conseguinte, a própria possibilidade de vida para homens e mulheres.

Naturalmente nao faltaram leituras metafóricas destes dons divinos. O "grao de mostarda" fez pensar no grande dom do pao eucaristico. Aliás, o impor-tante escritor cristao do terceiro século, Origenes, identificou aquela mos-tarda como o sinal do próprio Cristo e, em particular, da Sagrada Escritura.

Eis o seu comentário: "Nosso Senhor é o grao de mostarda que cai na terra, e que se multiplica para nós. Mas este grao de mostarda é superlativamente abundante... A palavra de Deus é superlativamente abundante, contém em si todas as delicias. Tudo o que desejas, provém da Palavra de Deus, da mes-ma forma que os Judeus narram: quando comiam o maná, ele, na sua boca, adquiria o gosto daquilo que cada um desejava... Assim, também na carne de Cristo, que é a palavra do ensinamento, ou seja, a compreensao das Sa-gradas Escrituras, quanto maior for o desejo que dela tivermos, tanto maior será o alimento que dela receberemos. Se és santo, encontras refrigério; se és pecador, encontras o tormento" (Origenes Jerónimo, 74 homilias sobre o livro dos Salmos, Milao 1993, págs. 543-544).

5. Por conseguinte, o Senhor age com a sua Palavra nao só na criaçao, mas também na história. Ele revela-se com uma linguagem muda (cf. Sl 18, 2-7), mas exprime-se de modo explicito através da Biblia e da sua comunicaçao pessoal nos profetas e em plenitude no Filho (cf. Hb 1, 1-2). Sao dois dons diferentes, mas convergentes, do seu amor.

Por isso, o nosso louvor deve elevar-se ao céu todos os dias. É a nossa ac-çao de graças, que floresce no alvorecer na oraçao das Laudes para bendizer o Senhor da vida e da liberdade, da existencia e da fé, da criaçao e da re-dençao.
(20 de agosto de 2003)


Salmo 148
Glorificação de Deus Senhor e Criador

1. O Salmo 148 que agora elevámos a Deus constitui um verdadeiro "cân-tico das criaturas", uma espécie de Te Deum do Antigo Testamento, um aleluia cósmico que envolve tudo e todos no louvor divino.

Assim comenta um exegeta contemporâneo: "O salmista, chamando-os pelo nome, ordena os seres: em cima o céu, dois astros segundo os tempos, e, se-paradas, as estrelas; de um lado as árvores de fruto, do outro os cedros; num plano os répteis, e noutro as aves; aqui os príncipes e além os povos; em duas filas, talvez dando as mãos, jovens e moças... Deus estabeleceu-os atribuindo-lhes um lugar e uma função; o homem acolhe-os, dando-lhes lu-gar na linguagem, e assim dispostos os conduz à celebração litúrgica. O homem é "pastor do ser" ou liturgo da criação" (L. Alonso Schökel, Trinta Salmos: poesia e oração, Bolonha 1982, pág. 499).

Sigamos também nós este coro universal, que ressoa no firmamento do céu e que tem como templo todo o cosmos. Deixemo-nos conquistar pelo alcan-ce do louvor que todas as criaturas elevam ao seu Criador.

2. No céu encontramos os cantores do universo estrelar: os astros mais dis-tantes, as esteiras dos anjos, o sol e a lua, as estrelas reluzentes, os "céus dos céus" (cf. v. 4), isto é, o espaço estrelar, as águas superiores que o homem da Bíblia pensa que estão conservadas em depósitos antes de caírem como chuva sobre a terra.

O aleluia, ou seja, o convite a "louvar o Senhor", ressoa pelo menos oito ve-zes e tem como meta final a ordem e a harmonia dos seres celestes: "esta-beleceu-lhes leis a que não faltam" (v. 6).

O olhar dirige-se depois para o horizonte terrestre onde se segue uma pro-cissão de cantores, pelo menos vinte e dois, isto é, uma espécie de alfabeto de louvor, espalhado no nosso planeta. Eis os monstros marinhos e os abis-mos, símbolos do caos aquático sobre o qual a terra está fundada (cf. Sl 23, 2), segundo a concepção cosmológica dos antigos semitas.

O Padre da Igreja, São Basílio, observa: "Nem sequer o abismo foi consi-derado desprezível pelo salmista, que o acolheu no coro geral da criação, aliás, com uma linguagem própria, também ele completa harmoniosamente o hino ao Criador" (Homiliae in hexaemeron, III, 9: PG 29, 75).

3. A procissão continua com as criaturas da atmosfera: o fogo dos relam-pagos, o granizo, a neve, o nevoeiro e o vento da tempestade, considerado um veloz mensageiro de Deus (cf. Sl 148, 8).

Entram depois em cena os montes e as colinas, consideradas popularmente as criaturas mais antigas da terra (cf. v. 9a). O reino vegetal está repre-sentado pelas árvores de fruto e pelos cedros (cf. v. 9b). Ao contrário, o mundo animal está presente através das feras, dos animais, dos répteis e das aves (cf. v. 10).
E por fim, eis o homem que preside à liturgia da criação. Ele é definido de acordo com todas as idades e distinções: crianças, jovens e idosos, prínci-pes, reis e nações (cf. vv. 11-12).

4. Confiemos agora a São João Crisóstomo a tarefa de lançar um olhar de conjunto sobre este imenso coro. Ele faz isto com palavras que reenviam também para o cântico dos três jovens na fornalha ardente, por nós medi-tado na última catequese.

O grande Padre da Igreja e patriarca de Constantinopla afirma: "Devido à sua grande rectidão de alma os santos, quando se preparam para dar graças a Deus, costumam chamar muitos para participar no seu louvor, exortando-os a empreender juntamente com eles esta bonita liturgia. Também os três jovens na fornalha ardente fizeram isto, quando chamaram toda a criação para louvar o benefício recebido e para cantar hinos a Deus (Dn 3).

Também este Salmo faz o mesmo, chamando as duas partes do mundo, a que está no alto e a que está em baixo, a sensível e a inteligente. Assim fez também o profeta Isaías, quando disse: "Cantai, ó Céus, exulta de alegria ó terra... porque o Senhor consola o seu povo" (Is 49, 13). E o Saltério expri-me-se de novo assim: "Quando Israel saiu do Egipto, a casa de Jacob dum povo estranho, os montes saltaram como carneiros, as colinas como cordei-ros" (Sl 113, 1.4). E em Isaías: "As nuvens façam chover a justiça" (Is 45, 8). De facto, os santos, considerando-se eles próprios insuficientes para lou-var o Senhor, dirigem-se a todas as partes envolvendo todos na hinologia comum" (Expositio in psalmum CXLVIII: PG 55, 484-485).

5. Também nós somos convidados a associar-nos a este coro imenso, tor-nando-nos voz explícita de cada criatura e louvando a Deus nas duas di-mensões fundamentais do seu mistério. Por um lado, devemos adorar a sua grandeza transcendente, "porque só o Seu nome é excelso, a sua majestade está acima do céu e da terra", como diz o nosso Salmo (v. 13). Por outro la-do, reconhecemos a sua bondade condescendente, porque Deus está próxi-mo das suas criaturas e vem, sobretudo, em ajuda do seu povo: "Ele enalte-ceu o poder do seu povo... povo da sua amizade" (v. 14), como ainda afirma o Salmista.

Face ao Criador omnipotente e misericordioso aceitemos, então, o convite de Santo Agostinho para o louvar, exaltar e celebrar através das suas obras: "Quando observas estas criaturas e por isso te regozijas e te elevas até ao Artífice de tudo e, através do intelecto, contemplas os atributos invisíveis das coisas criadas, então eleva-se a sua confissão sobre a terra e no céu... Se as criaturas são belas, quanto mais não o será o Criador?" (Exposições sobre os Salmos, IV, Roma 1977, págs. 887-889).
(17 de julho de 2002)

Salmo 149
Festa dos amigos de Deus

1. "Regozijem-se os justos na glória e cantem jubilosos em seus leitos". Este apelo do Salmo 149 (v. 5), que acaba de ser proclamado, remete para uma aurora que está prestes a despontar e vê os fiéis prontos a entoar os seus lou-vores matutinos. Com uma expressão significativa, este louvor é definido como "um cântico novo" (v. 1), ou seja, um hino solene e perfeito, propício para os últimos dias, quando o Senhor reunir os justos num mundo renova-do. Todo o Salmo está impregnado de uma atmosfera festiva, inaugurada já pelo aleluia inicial e depois cadenciada com cânticos, louvores, alegria, dan-ças e sons de tímpanos e de cítaras. A oração que este Salmo inspira é a acção de graças de um coração repleto de exultação religiosa.

2. Os protagonistas deste Salmo são chamados, no original hebraico do hi-no, com dois termos característicos da espiritualidade do Antigo Testa-mento. Por três vezes são definidos como "hasidim" (vv. 1.5 e 9), ou seja, "os piedosos, os fiéis", aqueles que respondem com fidelidade e amor (he-sed) ao amor paternal do Senhor.

A segunda parte deste Salmo surpreende, porque está repleta de expressões bélicas. Parece-nos estranho que no mesmo versículo o Salmo fale dos "lou-vores de Deus a plena voz" e da "espada de dois gumes nas suas mãos" (v. 6). Reflectindo, podemos compreender o motivo: o Salmo foi composto pa-ra os "fiéis" que estavam empenhados numa luta de libertação; combatiam para libertar o seu povo oprimido e para lhe dar a possibilidade de servir a Deus. Durante a época dos Macabeus, no século II a.C., os combatentes pela liberdade e pela fé, submetidos a uma dura repressão por parte do po-der helenista, chamavam-se precisamente hasidim, "os fiéis" à Palavra de Deus e às tradições dos Padres.

3. Na perspectiva actual da nossa oração, esta simbologia bélica torna-se uma imagem do nosso compromisso de crentes e, depois de termos cantado a Deus os louvores matutinos, podemos partir pelas estradas do mundo, no meio do mal e da injustiça. Infelizmente, as forças que se opõem ao Reino de Deus são imponentes: o Salmista fala "de povos, de nações, de chefes e de nobres". Todavia, está confiante porque sabe que ao seu lado se encontra o Senhor, que é o verdadeiro Rei da história (cf. v. 2). Por conseguinte, a sua vitória sobre o mal é certa e será o triunfo do amor. É neste combate que participam todos os hasidim, todos os fiéis e os justos que, com o poder do Espírito, completam a obra admirável que tem o nome do Reino de Deus.

4. Partindo das referências do Salmo ao "coro" e aos "tímpanos e cítaras", Santo Agostinho comenta: "O que é que representa um coro? [...] O coro é um grupo de cantores que cantam em conjunto. Se cantarmos num coro, de-vemos cantar em harmonia. Quando se canta em coro, uma única voz desa-finada fere o ouvinte e semeia confusão no próprio coro" (Enarr. in Ps., 149: CCL 40, 7, 1-4).

Depois, referindo-se aos instrumentos utilizados pelo Salmista, pergunta-se: "Por que motivo o Salmista pega no tímpano e no saltério?". Em seguida, responde: "A fim de que não só a voz louve ao Senhor, mas também as suas obras. Quando se tocam o tímpano e o saltério, as mãos harmonizam-se com a voz. Assim deve ser também para ti. Quando cantares o aleluia, deves oferecer o pão ao faminto, vestir aquele que está nu e hospedar o peregrino. Se fizeres isto, não só a voz cantará, mas com voz se hão-de harmonizar as mãos, enquanto com as palavras concordarão as obras" (Ibid., 8, 1-4).

5. Há outro vocábulo, com que os orantes deste Salmo são definidos: trata-se dos "anawim", isto é, "os pobres, os humildes" (v. 4) Esta expressão é muito frequente no Saltério e indica não só os oprimidos, os miseráveis e os que são perseguidos por causa da justiça, mas inclusivamente aqueles que, sendo fiéis aos compromissos morais da Aliança com Deus, são margina-lizados por quantos escolhem a violência, a riqueza e a prepotência. É nesta luz que se compreende que a classe dos "pobres" não é apenas uma cate-goria social, mas uma opção espiritual. Este é o sentido da primeira, célebre, Bem-Aventurança: "Bem-aventurados os pobres em espírito, porque deles é o reino dos céus" (Mt 5, 3). Já o profeta Sofonias se dirigia com a seguinte expressão aos anawim: "Procurai o Senhor, vós todos, os humildes da terra, que cumpris a sua lei. Procurai a justiça, buscai a humildade: talvez assim acheis abrigo no dia da cólera do Senhor" (2, 3).
6. Pois bem, o "dia da cólera do Senhor" é precisamente aquele que se des-creve na segunda parte do Salmo, quando os "pobres" se põem ao lado de Deus a fim de lutar contra o mal. Sozinhos, eles não têm a força suficiente, nem os instrumentos, nem as estratégias necessárias para se opor à irrupção do mal. Contudo, a frase do Salmista não admite hesitações: "O Senhor, de verdade, ama o seu povo e adorna os humildes (anawim) com a vitória" (v. 4). Representa-se espiritualmente aquilo que o Apóstolo Paulo declara aos Coríntios: "O que é vil e desprezível no mundo é que Deus escolheu, como também aquelas coisas que nada são, para destruir as que são" (1 Cor 1, 28).
É com esta confiança que "os filhos de Sião" (v. 2), os hasidim e os ana-wim, ou seja os fiéis e os pobres, se preparam para viver o seu testemunho no mundo e na história. O cântico de Maria, contido no Evangelho de Lucas o canto do Magnificat constitui o eco dos melhores sentimentos presentes nos "filhos de Sião": o louvor de exultação a Deus Salvador, a acção de gra-ças pelas grandes coisas que lhe fez o Omnipotente, o combate contra as forças do mal, a solidariedade para com os pobres e a fidelidade ao Deus da Aliança (cf. Lc 1, 46-55).
(23 de maio de 2001)

Salmo 150
Todo o ser vivo louve o Senhor

1. O hino que agora acompanhou a nossa oração é o último cântico do Sal-tério, o Salmo 150. A derradeira palavra que ressoa no livro da prece de Israel é o aleluia, ou seja, o puro louvor a Deus e, por isso, o Salmo é pro-posto duas vezes na Liturgia das Laudes, no segundo e no quarto domingo.

O breve texto é cadenciado por uma série de dez imperativos que repetem a palavra "hallelû", "louvai"! Como música e canto perene, parece que nunca terminam, como acontece também no célebre aleluia do Messias de Haen-del. O louvor a Deus torna-se uma espécie de respiro da alma, que não co-nhece trégua. Como se descreveu, "esta é uma das recompensas do facto de ser homem: a exaltação silenciosa, a capacidade de celebrar. É bem expres-sa numa frase que o rabino Akiba ofereceu aos seus discípulos: cada dia um cântico / um cântico para cada dia" (A. J. Heschel, Chi è l'uomo?, Milão 1971, pág. 198).

2. O Salmo 150 parece desenvolver-se num tríplice momento. Na abertura, nos primeiros dois versículos, o olhar fixa-se no "Senhor", no "seu santuá-rio", no "seu poder", nas "suas obras poderosas" e na "sua grandeza". De-pois semelhante a um verdadeiro e próprio movimento musical no louvor insere-se a orquestra do templo de Sião (cf. vv. 3-5 b), que acompanha o cântico e a dança sagrada. Em seguida, no último versículo do Salmo (cf. v. 6) aparece o universo, representado por "todos os seres vivos" ou, se quiser-mos corroborar ainda mais o original hebraico, por "tudo o que respira". É a própria vida que se faz louvor, um louvor que sobe das criaturas até ao Cria-dor.

3. Agora nós, neste nosso primeiro encontro com o Salmo 150, contentar-nos-emos com uma análise do primeiro e do último momento deste hino. Eles servem, por assim dizer, de moldura para o segundo momento, que ocupa a parte central da composição e que examinaremos no futuro, quando o Salmo for novamente proposto pela Liturgia das Laudes.

A primeira figura em que se desenvolve o fio musical e orante é a do "san-tuário" (cf. n. 1). O original hebraico fala da área "sagrada", pura e trás-cendente, a morada de Deus. Depois, há uma referência ao horizonte celeste e paradisíaco onde, como especificará o Livro do Apocalipse, se celebra a eterna e perfeita liturgia do Anjo (cf., por exemplo, Ap 5, 6-14). O mistério de Deus, onde os santos são recebidos na plena comunhão, constitui um âm-bito de luz e de alegria, de revelação e de amor. Não é sem motivo que, mesmo com uma certa liberdade, a antiga tradução grega dos Setenta e a própria tradução latina da Vulgata propuseram, em vez de "santuário", a pa-lavra "santos": "Louvai o Senhor no meio dos seus santos".

4. Do céu, o pensamento passa implicitamente para a terra, sublinhando as "suas obras poderosas" realizados por Deus, que manifestam "todas as suas grandezas" (v. 2). Estas obras poderosas são descritas no Salmo 104, que convida os Israelitas a "considerar o Seu poder" (cf. 105 [104], 4), a "lem-brar-se das maravilhas que fez, dos Seus prodígios e das sentenças da Sua boca" (Ibid., v. 5); então, o salmista recorda "a aliança que estabeleceu com Abraão" (Ibid., vv. 8-9), a história extraordinária de José, os milagres da li-bertação do Egipto e da travessia do deserto e, enfim, a dádiva da terra. Ou-tro Salmo fala de situações angustiantes, das quais o Senhor liberta aqueles que lhe "clamam"; as pessoas libertadas são incessantemente convidadas a dar graças pelos prodígios realizados por Deus: "Dêem graças ao Senhor pelos seus favores e pelas suas maravilhas a favor dos homens" (Sl 107 [106], 8.15.21 e 31).

Assim, no nosso Salmo é possível compreender a referência às "obras pode-rosas", como afirma o original hebraico, isto é, os "prodígios potentes" (cf. v. 2), que Deus semeia ao longo da história da salvação. O louvor torna-se uma profissão de fé em Deus Criador e Redentor, uma celebração festiva do amor divino, que se desenvolve criando, salvando, dando a vida e a liberta-ção.

5. Assim, chegamos ao último versículo do Salmo 150 (cf. v. 6). O vo-cábulo hebraico utilizado para indicar os "seres vivos" que louvam a Deus remete para o respiro, como se dizia, mas também para algo de íntimo e profundo, inerente ao homem.

Se é possível pensar que toda a vida das criaturas consiste num hino de lou-vor ao Criador, é contudo mais exacto considerar que neste coro se reserva uma posição de primazia à criatura humana. Através do ser humano, porta-voz da criação inteira, todos os seres vivos louvam o Senhor. O nosso respi-ro de vida, que significa também autoconsciência, compreensão e liberdade (cf. Pr 20, 27), torna-se cântico e oração de toda a vida que pulsa no uni-verso.

Por isso, todos nós recitamos "salmos, hinos e cânticos espirituais, cantando e louvando ao Senhor" nos nossos corações (Ef 5, 19).

6. Transcrevendo os versículos do Salmo 150, os manuscritos hebraicos re-produzem com frequência a Menorah, o famoso candelabro com sete bra-ços, colocado no Santo dos Santos do templo de Jerusalém. Assim, sugerem uma bonita interpretação deste Salmo, um verdadeiro e próprio Amen na oração de sempre, dos nossos "irmãos maiores": cada homem, com todos os instrumentos e as formas musicais que o seu próprio génio inventou "trom-beta, harpa, cítara, tambores, danças, instrumentos de corda, flautas, cimba-los sonoros e címbalos retumbantes", como afirma o Salmo mas também "tudo o que respira" é convidado a arder como a Menorah, diante do Santo dos Santos, em constante oração de louvor e de acção de graças.

Unidos ao Filho, voz perfeita do mundo inteiro, por Ele criado, tornemo-nos nós também uma prece incessante perante o trono de Deus.
(9 de janeiro de 2002)

Salmo 150
Todos os seres vivos louvem ao Senhor

1. Ressoa pela segunda vez na Liturgia das Laudes o Salmo 150, que aca-bamos de proclamar: um hino de festa, um aleluia ritmado pela música. Ele é o selo ideal dentro do Saltério, o livro do louvor, do cântico, da liturgia de Israel.

O texto é de uma admirável simplicidade e transparência. Devemos apenas deixar-nos atrair pelo insistente apelo a louvar o Senhor: "Louvai ao Se-nhor... louvai-O... louvai-O!". Na abertura, Deus é apresentado sob dois as-pectos fundamentais do seu mistério. Ele é, sem dúvida transcendente, mis-terioso, distinto do nosso horizonte: a sua habitação real é o "santuário" ce-leste, o "firmamento do seu poder", semelhante a uma fortaleza inacessível ao homem. Contudo, Ele está próximo de nós: está presente no "santuário" de Sião e age na história através dos seus "prodígios" que revelam e tornam experimentável "a sua imensa grandeza" (cf. vv. 1-2).

2. Por conseguinte, entre a terra e o céu estabelece-se como que um canal de comunicação em que se encontram a acção do Senhor e o cântico de louvor dos fiéis. A Liturgia une os dois santuários, o templo terrestre e o céu infi-nito, Deus e o homem, o tempo e a eternidade.

Durante a oração nós realizamos uma espécie de subida para a luz divina e, ao mesmo tempo, experimentamos uma descida de Deus que se adapta ao nosso limite para nos ouvir e nos falar, para se encontrar connosco e nos salvar. O Salmista estimula-nos imediatamente a um subsídio, a que deve-mos recorrer durante este encontro de oração: o recurso aos instrumentos musicais da orquestra do templo de Jerusalém, como a trombeta, a harpa, a cítara, o tambor, as flautas e os címbalos. Também o movimento do cortejo fazia parte do ritual hierosolimitano (cf. Sl 117, 27). O mesmo apelo ressoa no Salmo 46, 8: "Cantai hinos com toda a arte!".

3. Portanto, é necessário descobrir e viver constantemente a beleza da ora-ção e da liturgia. É preciso pedir a Deus não só com fórmulas teológica-mente exactas, mas também de maneira bonita e digna.
A este propósito, a comunidade cristã deve fazer um exame de consciência para que obter cada vez mais, na liturgia, a beleza da música e do cântico. É necessário purificar o culto de dispersões de estilo, de formas descuidadas de expressão, de músicas e textos desleixados e pouco conformes com a grandeza do acto que se celebra.

A este propósito, é significativo o convite da Carta aos Efésios, a evitar in-temperanças e grosseirismos para deixar espaço à pureza do hino litúrgico: "Não vos embriagueis com vinho, que leva à luxúria, mas enchei-vos do Es-pírito. Recitai entre vós salmos, hinos e cânticos espirituais, cantando e lou-vando ao Senhor em vossos corações, dando sempre graças, por tudo, a Deus Pai, em nome de nosso Senhor Jesus Cristo" (5, 18-20).

4. O Salmista conclui, convidando "todos os seres vivos" ao louvor (cf. Sl 150, 5), literalmente "cada sopro", "cada respiro", expressão que em he-braico designa "cada ser que respira", sobretudo "cada homem vivo" (cf. Dt 20, 16; Gs 10, 40; 11, 11.14). Portanto, está envolvida no louvor divino, an-tes de mais, a criatura humana com a sua voz e o seu coração. Com ela, são idealmente interpelados todos os seres vivos, todas as criaturas que respiram (cf. Gn 7, 22), para que elevem o seu hino de gratidão ao Criador pelo dom da existência.

São Francisco coloca-se na continuidade deste convite universal com o seu sugestivo "Cântico do Irmão Sol", com o qual convida a louvar e bendizer o Senhor por todas as criaturas, reflexo da sua beleza e da sua bondade (cf. Fontes Franciscanas, 263).

5. Neste cântico devem participar de modo especial todos os fiéis, como su-gere a Carta aos Colossenses: "A palavra de Cristo permaneça em vós abun-dantemente em toda a sabedoria, ensinando-vos e admoestando-vos uns aos outros, com salmos, hinos e cânticos espirituais; cantando sob a acção da graça, louvores a Deus" (3, 16).

A este propósito, nas suas Exposições sobre os Salmos Santo Agostinho vê simbolizados nos instrumentos musicais os Santos que louvam a Deus: "Vós, Santos, sois a trombeta, o saltério, a cítara, o tambor, o coro, as cor-das, o órgão e os címbalos do júbilo que produzem lindos sons, isto é, que tocam harmoniosamente. Vós sois todas estas coisas. Não pensemos, ao ou-vir o Salmo, em coisas de pouco valor, em coisas transitórias, nem em ins-trumentos teatrais". Na realidade, é voz de louvor a Deus "qualquer espírito que louva o Senhor" (Exposições sobre os Salmos, IV, Roma 1977, pp. 934-935).

Por conseguinte, a música mais nobre é a que se eleva dos nossos corações. É precisamente esta harmonia que Deus espera ouvir nas nossas liturgias.
(26 de fevereiro de 2003)


Cânticos

Cântico do Êxodo (15,1-18)
Hino de vitória pela travessia do Mar Vermelho

1. Este hino de vitória (cf. Êx 15, 1-18), proposto para as Laudes do sábado da primeira semana, conduz-nos a um momento-chave da história da salva-ção: ao acontecimento do Êxodo, quando Israel foi salvo por Deus numa si-tuação humanamente desesperada. Os factos são conhecidos: depois de uma longa escravidão no Egipto, já a caminho para a terra prometida, os Hebreus tinham sido alcançados pelo exército do faraó, e nada os subtrairia à des-truíção, se o Senhor não tivesse intervindo com a sua mão poderosa. O hino tarda a descrever a arrogância dos desígnios do inimigo armado: "Corra-mos, alcancemo-los! Repartamos os despojos!..." (Êx 15, 9).

Mas que poder tem o maior dos exércitos, diante da omnipotência divina? Deus ordena que o mar abra um carreiro para deixar passar o povo atacado e que o feche quando passam os agressores: "Mandaste o teu sopro. O oceano engoliu-os: afundaram-se como o chumbo nas águas majestosas" (Ibid. 15, 10).

São imagens fortes, que querem mostrar a medida da grandeza de Deus, enquanto exprimem a admiração de um povo que quase não acredita no que vê, e se abandona em uníssono num cântico comovido: "O Senhor é a mi-nha força e a minha glória, foi Ele que me salvou. Ele é o meu Deus, glorifi-cá-Lo-ei; é o Deus de meu pai, louvá-Lo-ei" (Ibid., 15, 2).

2. O cântico não fala apenas da libertação obtida; indica também a sua fina-lidade positiva, ou seja, a entrada na casa de Deus para viver em comunhão com Ele: "Tu guias, pela Tua misericórdia, este povo que libertaste; e com o Teu poder o diriges para a Tua santa morada" (Ibid., 15, 13).

Compreendido desta forma, este acontecimento não esteve só na base da aliança entre Deus e o seu povo, mas tornou-se o "símbolo" de toda a his-tória da salvação. Em muitas outras ocasiões Israel conhecerá situações aná-logas, e o Êxodo actualizar-se-á pontualmente. De maneira especial, aquele acontecimentio prefigura a grande libertação que Cristo realizará com a sua morte e ressurreição.

Por isso o nosso hino é cantado de modo especial na liturgia da Vigília pas-cal, para ilustrar com a intensidade das suas imagens o que se realizou em Cristo. N'Ele fomos salvos não só de um opressor humano, mas daquela es-cravidão de satanás e do pecado, que desde as origens pesa sobre o destino da humanidade. Com Ele a humanidade põe-se de novo a caminho, pelas es-tradas que conduzem à casa do Pai.

3. Esta libertação, já realizada no mistério e presente no Baptismo como uma semente de vida destinada a crescer, alcançará a sua plenitude no fim dos tempos, quando Cristo voltar glorioso e entregar "o Reino a Deus Pai" (1 Cor. 15, 24). A Liturgia das Horas convida-nos a olhar precisamente para este horizonte final, escatológico, introduzindo o nosso Cântico com uma citação do Apocalipse: "os que venceram a Besta...cantavam o cântico de Moisés, servo de Deus" (Ap 15, 2.3).

No final dos tempos, realizar-se-á plenamente para todos os que foram sal-vos aquilo que o acontecimento do Êxodo prefigurava e a Páscoa de Cristo realizou de maneira definitiva, mas aberto ao futuro. De facto, a nossa sal-vação é real e profunda, mas situa-se entre o "já" e o "ainda não" da condi-ção terrena, como nos recorda o apóstolo Paulo: "Porque na esperança é que fomos salvos" (Rm 8, 24).

4. "Cantemos ao Senhor, que é solenemente grande" (Êx 15, 1). Pondo nos nossos lábios estas palavras do antigo hino, a Liturgia das Laudes convida-nos a orientar o nosso dia para o horizonte da história da salvação. Esta é a forma cristã de compreender o passar do tempo. Nos dias que se acumulam não há uma fatalidade que nos oprime, mas um desígnio que se desvenda lentamente, e que os nossos olhos devem aprender a ler como em filigrana.

Os Padres da Igreja eram particularmente sensíveis a esta perspectiva his-tórico-salvífica, e gostavam de ler os factos relevantes do Antigo Testa-mento do dilúvio do tempo de Noé à chamada de Abraão, da libertação do Êxodo ao regresso dos Hebreus depois do exílio em Babilónia como "prefi-gurações" de acontecimentos futuros, reconhecendo naqueles factos um va-lor "arquétipo": neles eram prenunciadas as características fundamentais que se iriam repetir, de certa forma, durante toda a história humana.
5. Contudo, já os profetas tinham lido os acontecimentos da história da sal-vação, mostrando o seu sentido sempre actual e indicando a sua realização plena no futuro. Desta forma, ao meditar sobre o mistério da aliança esta-belecida por Deus com Israel, eles falam de uma "nova aliança" (Jr 31, 31; cf. êx 36, 26-27), na qual a lei de Deus teria sido escrita no próprio coração do homem. Não é difícil ver nesta profecia a nova aliança estabelecida no sangue de Cristo e realizada através do dom do Espírito. Ao recitar este hino de vitória do antigo Êxodo à luz do Êxodo pascal, os fiéis podem viver a alegria de se sentirem Igreja peregrina no tempo, rumo à Jerusalém celeste.

6. Por conseguinte, trata-se de contemplar com admiração sempre renovada tudo o que Deus dispôs para o seu Povo: "Tu o introduziste e o estabele-ceste no monte da Tua herança, no lugar que reservaste para Tua morada, Senhor! Santuário preparado pelas Tuas mãos, ó meu Deus!" (Êx 15, 17). O hino de vitória não exprime o triunfo do homem, mas o triunfo de Deus. Não é um cântico de guerra, é um cântico de amor.

Deixando que os nossos dias sejam invadidos por este estremecimento de louvor dos antigos Hebreus, nós caminhamos pelas estradas do mundo, cheias de insídias, de perigos e de sofrimentos, com a certeza de estarmos envolvidos pelo olhar misericordioso de Deus: nada pode resistir ao poder do seu amor.
(21 de novembro de 2001)

Cântico do Deuteronômio (31,30-32,12)
Os benefícios de Deus a favor do povo

1. "E Moisés fez ouvir a toda a assembleia de Israel as palavras deste cânti-co, até ao fim" (Dt 31, 30). Lê-se assim na abertura do cântico que acaba-mos de proclamar, tirado das últimas páginas do livro do Deuteronómio, precisamente do capítulo 32. Dele, a Liturgia das Laudes escolheu os pri-meiros doze versículos, reconhecendo neles um jubiloso hino ao Senhor que protege e cura com amor o seu povo no meio dos perigos e das dificuldades do dia. A análise do cântico revelou que se trata de um texto antigo mas posterior a Moisés, sobre cujos lábios foi posto, para lhe conferir um carác-ter de solenidade. Este cântico litúrgico situa-se na própria origem da histó-ria do povo de Israel. Não faltam nessa página orante notas ou ligações com alguns Salmos e com a mensagem dos profetas: desta forma, ela tornou-se uma sugestiva e intensa expressão da fé de Israel.

2. O cântico de Moisés é mais amplo do que o trecho proposto pela Liturgia das Laudes, que constitui apenas o seu prelúdio. Alguns estudiosos pensa-ram detectar na composição um género literário que tecnicamente é definido com a palavra hebraica rîb, isto é "controvérsia", "litígio processual". A imagem de Deus presente na Bíblia não se mostra absolutamente como a do ser obscuro, uma energia anónima e feia, um acontecimento incompreen-sível. Ao contrário, é uma pessoa que tem sentimentos, age e reage, ama e condena, participa na vida das suas criaturas e não é indiferente às suas obras. Assim, no nosso caso, o Senhor convoca uma espécie de assembleia judicial, na presença de testemunhas, denuncia os delitos do povo acusado, exige uma pena, mas deixa impregnar a sua sentença por uma misericórdia infinita. Seguimos agora os vestígios desta vicissitude, embora nos detenha-mos apenas nos versículos que a Liturgia nos propõe.

3. Vem imediatamente a menção dos espectadores-testemunhas cósmicos: "Escutai, ó céus... ouça, toda a terra" (Dt 32, 1). Neste processo simbólico Moisés serve de autoridade pública. A sua palavra é eficaz e fecunda como a profética, expressão da divina. Observe-se o fluxo significativo das ima-gens para a definir: trata-se de sinais deduzidos da natureza como a chuva, o orvalho, o aguaceiro, a chuvada e as gotas de água que fazem com que a terra seja verdejante e coberta de caules de trigo (cf. v. 2).

A voz de Moisés, profeta e intérprete da palavra divina, anuncia a iminente entrada em cena do grande juiz, o Senhor, do qual ele pronuncia o nome santíssimo, exaltando uma das suas numerosas características. De facto, o Senhor é chamado a Rocha (cf. v. 4), um título que aparece em todo o nosso cântico (cf. vv. 15.18.30.31.37), uma imagem que exalta a fidelidade estável e indiscutível de Deus, que é muito diferente da instabilidade e da infide-lidade do povo. O tema é desenvolvido com uma série de afirmações sobre a justiça divina: "A Sua obra é perfeita; todos os Seus caminhos são a pró-pria justiça; Deus de verdade, jamais iníquo, constantemente equitativo e recto" (v. 4).

4. Depois da solene apresentação do Juiz supremo, que também é a parte lesada, o objectivo do cantor desloca-se para o acusado. Para o definir, ele recorre a uma eficaz representação de Deus como pai (cf. v. 6). As suas criaturas, tão amadas, são chamadas seus filhos, mas infelizmente são "raça perversa" (cf. v. 5). Com efeito, sabemos que já no Antigo Testamento se tem uma concepção de Deus como pai solícito em relação aos seus filhos que com muita frequência desiludem (Êx 4, 22; Dt 8, 5; Sl 102, 13; Sir 51, 10; Is 1, 2; 63, 16; Os 11, 1-4). Por isso, a denúncia não é fria mas apai-xonada: "É assim que recompensas o Senhor, povo louco e insensato? Não é Ele o teu Pai, o teu Criador? Não foi Ele que te formou e te consolidou?" (Dt 32, 6). De facto, é muito diferente insurgir-se contra um soberano im-placável ou revoltar-se contra um pai amoroso.

Para tornar concreta a acusação e fazer com que a conversão provenha da sinceridade do coração, Moisés faz apelo à memória: "Recorda-te dos dias antigos, medita os anos de cada século" (v. 7). Com efeito, a fé bíblica é um "memorial", isto é, uma redescoberta da acção eterna de Deus que se espa-lha com o passar do tempo; é tornar presente e eficaz aquela salvação que o Senhor proporcionou e continua a oferecer ao homem. O grande pecado de infidelidade coincide, então, com o "esquecimento", que apaga a recordação da presença divina em nós e na história.

5. O acontecimento fundamental que não se deve esquecer é o da travessia do deserto depois da saída do Egipto, o tema fundamental do Deuteronómio e de todo o Pentateuco. Desta forma, recorda-se a viagem terrível e drama-tica no deserto do Sinai, "nas solidões ululantes e selvagens" (v. 10), como se diz com uma imagem de grande impacto emotivo. Mas ali Deus inclina-se sobre o seu povo com uma ternura e doçura surpreendentes. Com o sím-bolo paterno entrelaça-se alusivamente também o materno da águia: "Pro-tegeu-o e velou por ele. Guardou-o como a menina dos Seus olhos. Como a águia vela pelo seu ninho. E paira sobre as suas aguiazinhas; estende as asas para as recolher, e leva-as sobre as suas penas robustas" (v. 10.11). O cami-nho no deserto transforma-se então num percurso tranquilo e sereno, porque há o manto protector do amor divino.

O cântico remete também para o Sinai, onde Israel se tornou aliado do Se-nhor, a sua "porção" e "herança", isto é, a realidade mais preciosa (cf. v. 9; Êx 19, 5). O cântico de Moisés torna-se desta forma um exame de cons-ciência de todos para que, finalmente, os benefícios divinos sejam corres-pondidos com a fidelidade, e não com o pecado.
(19 de junho de 2002)

Cântico de Ana (I Sam 2,1-5)
A alegria e a esperança dos humildes encontra-se em Deus

1. Uma voz feminina orienta-nos hoje na oração de louvor ao Senhor da vida. De facto, na narração do Primeiro Livro de Samuel, é Ana quem entoa o hino que acabamos de proclamar, depois de ter oferecido ao Senhor o seu menino, o pequeno Samuel. Ele será profeta em Israel e assinalará com a sua acção a passagem do povo hebraico para uma nova forma de governo, a monárquica, que terá como protagonistas o desventurado rei Saul e o glorio-so rei David. Ana deixará atrás de si uma história de sofrimentos porque, como diz a narração, o Senhor "tinha-a feito estéril" (1 Sm 1, 5).

No antigo Israel a mulher estéril era considerada como um ramo seco, uma presença morta, também porque impedia que o marido tivesse uma conti-nuidade na recordação das gerações seguintes, um facto importante numa visão ainda incerta e obscura do além.

2. Mas Ana tinha posto a sua confiança no Deus da vida e rezara da seguinte forma: "Senhor dos exércitos, se Vos dignardes olhar para a aflição da Vos-sa serva e Vos lembrardes de mim; se não Vos esquecerdes da Vossa escra-va e lhe derdes um filho varão, eu o consagrarei ao Senhor durante todos os dias da minha vida" (v. 11). E Deus ouviu o brado desta mulher humilhada, dando-lhe precisamente Samuel: o ramo seco produziu um rebento vivo (cf. Is 11, 1); o que era impossível aos olhos humanos tornou-se uma realidade palpitante naquela criança que iria ser consagrada ao Senhor.

O cântico de agradecimento, que veio aos lábios desta mãe, será retomado e reelaborado por outra mãe, Maria, que, permanecendo virgem, irá gerar por obra do Espírito de Deus. Com efeito, o Magnificat da mãe de Jesus deixa entrever em filigrana o cântico de Ana que, precisamente por isso, é chama-do "o Magnificat do Antigo Testamento".

3. Na realidade, os estudiosos fazem notar que o autor sagrado pôs nos lá-bios de Ana uma espécie de salmo real, cheio de citações ou alusões a ou-tros Salmos.

Sobressai em primeiro plano a imagem do rei hebraico, invadido por adver-sários mais poderosos, mas que no final é salvo e triunfa porque, ao seu la-do, o Senhor quebra o arco dos fortes (cf. 1 Sam 2, 4). É significativo o final do cântico quando, numa solene epifania, entra em cena o Senhor: "Tre-merão diante do Senhor os seus inimigos! Trovejará do céu sobre eles. O Senhor julga os últimos confins da terra! Ele dará o império ao Seu Rei, e exaltará o poder do Seu ungido" (v. 10). Em hebraico, a última palavra é precisamente "Messias", isto é "ungido", que permite transformar esta ora-ção real em cântico de esperança messiânica.

4. Desejaríamos realçar dois temas neste hino de agradecimento que expri-me os sentimentos de Ana. O primeiro dominará também o Magnificat de Maria e é a transformação do destino realizada por Deus. Os fortes são hu-milhados, os fracos "revestidos de vigor"; os saciados vão desesperadamen-te à procura de alimento e os famintos sentam-se para um banquete sump-tuoso; o pobre é arrancado da poeira e recebe "um trono de glória" (cf. vv. 4.8).

É fácil sentir nesta antiga oração a orientação das sete acções que Maria vê realizar na história por Deus Salvador: "Exerceu a força com o Seu braço e aniquilou os que se elevavam no seu próprio conceito. Derrubou os podero-sos dos seus tronos e exaltou os humildes. Encheu de bens os famintos e aos ricos despediu-os com as mãos vazias. Tomou a Seu cuidado Israel, Seu ser-vo" (Lc 1, 51-54).

É uma profissão de fé pronunciada pelas duas mães em relação ao Senhor da história, que se manifesta em defesa dos últimos, dos pobres e infelizes, dos ofendidos e dos humilhados.

5. Outro tema que desejamos esclarecer relaciona-se ainda mais com a figu-ra de Ana: "A estéril foi mãe de sete filhos e a mulher que tinha muitos fi-lhos deixou de conceber" (1 Sm 2, 5). O Senhor que inverte os destinos é também aquele que está na origem da vida e da morte. O seio estéril de Ana era semelhante a um túmulo; e não obstante Deus fez germinar nele a vida, porque ele "tem nas Suas mãos a alma de todo o ser vivente, e o sopro de vida de todos os homens" (Job 12, 10). Em continuidade, canta-se logo a se-guir: "O Senhor é que dá a morte e a vida, leva à habitação dos mortos e tira dela" (1 Sm 2, 6).

A esperança já não diz respeito apenas à vida do menino que nasce, mas também à que Deus pode fazer desabrochar depois da morte. Desta forma, abre-se um horizonte quase "pascal" de ressurreição. Isaías cantará: "Os vossos mortos reviverão, os seus cadáveres ressuscitarão, despertarão jubi-losos os que jazem no sepulcro! Porque o vosso orvalho é um orvalho de luz, e a terra das sombras dará à luz" (Is 26, 19).
(20 de março de 2002)

Cântico I Crónicas (29,10-13)
"Só a Deus a honra e a glória"

1. "Sede bendito... para todo o sempre, Senhor, Deus do nosso pai Israel!" (1 Cr 29, 10). Este intenso cântico de louvor, que o primeiro livro das Cró-nicas põe nos lábios de David, faz-nos reviver a explosão de alegria com que a comunidade da antiga aliança saudou os grandes preparativos realiza-dos com vista à construção do templo, fruto de um compromisso conjunto do rei e de muitos que tinham trabalhado com ele. Como que competiam em generosidade, porque isto exigia uma morada que não "se destina a um ho-mem, mas ao Senhor Deus" (Ibid., v. 1).

Ao reler aquele acontecimento, séculos depois, o Cronista intui os sentimen-tos de David e de todo o povo, a sua alegria e admiração por quantos tinham oferecido a sua contribuição: "O povo alegrava-se com as suas oferendas voluntárias, pois era de coração generoso que as faziam ao Senhor. O pró-prio rei David sentiu alegria" (Ibid., v. 9).

2. Este é o contexto em que nasce o Cântico. Mas ele só considera breve-mente a satisfação humana, para pôr a glória de Deus imediatamente no centro da atenção: "A Vós, Senhor, a grandeza... a Vós, Senhor, a reale-za...". A grande tentação que está sempre à espreita, quando se realizam obras pelo Senhor, é a de nos colocarmos a nós mesmos no centro, como se nos sentíssemos credores de Deus. David, pelo contrário, atribui tudo ao Se-nhor. Não é o homem, com a sua inteligência e a sua força, o primeiro ar-tífice de quanto se realizou, mas sim o próprio Deus.

David expressa desta forma a profunda verdade de que tudo é graça. Num certo sentido, aquilo que foi colocado à disposição para o templo, não é se-não a restituição, além disso extremamente exígua, de quanto Israel recebeu no inestimável dom da aliança que Deus estipulou com os antepassados. Na mesma linha, David dá mérito ao Senhor por tudo o que constituiu a sua sorte, tanto em campo militar como nos sectores político e económico. Tudo vem d'Ele!

3. Daqui, o impulso contemplativo destes versículos. Parece que ao autor do Cântico não bastam as palavras, para professar a grandeza e o poder de Deus. Ele considera-O sobretudo na especial paternidade demonstrada a Is-rael, "nosso pai". Este é o primeiro título que exige o louvor "agora e sem-pre".

Na recitação cristã destas palavras, não podemos deixar de recordar que esta paternidade se revelou de modo completo na encarnação do Filho de Deus. Ele, só Ele, é que pode falar a Deus chamando-lhe, em sentido próprio e afectuosamente, "Abba" (Mc 14, 36). Ao mesmo tempo, através do dom do Espírito, é-nos comunicada a sua filiação que nos torna "filhos no Filho". A bênção do antigo Israel por parte de Deus Pai adquire para nós a intensidade que Jesus nos manifestou, ensinando-nos a chamar a Deus "Pai nosso".

4. Depois, o olhar do autor bíblico alarga-se da história da salvação para to-do o cosmos, a fim de contemplar a grandeza de Deus Criador: "Tudo, nos céus e na terra, é vosso!". E ainda, "Vós sois soberano sobre todas as coi-sas". Como no Salmo 8, o orante do nosso Cântico ergue a cabeça para a o firmamento infinito, dirigindo em seguida o olhar admirado para a imensi-dão da terra e tudo vê submetido ao domínio do Criador. Como expressar a glória de Deus? As palavras sobrepõem-se, numa espécie de sucessão mis-tica: grandeza, poder, glória, majestade e esplendor; e depois, ainda força e potência. Tudo o que o homem experimenta de belo e de grande deve refe-rir-se Àquele que está na origem de todas as coisas e que tudo governa. O homem sabe que tudo quanto possui é dádiva de Deus, como salienta David, dando continuidade ao Cântico:

"Quem sou eu e quem é o meu povo, para que possamos fazer-vos volun-tariamente estas oferendas?" (1 Cr 29, 14).

5. Este pano de fundo da realidade, como dom de Deus, ajuda-nos a conju-gar os sentimentos de louvor e de reconhecimento do Cântico com a autên-tica espiritualidade do "ofertório", que na liturgia cristã nos faz viver sobre-tudo na celebração eucarística. É o que emerge da dupla oração com que o sacerdote oferece o pão e o vinho, destinados a tornar-se Corpo e Sangue de Cristo: "Da vossa bondade recebemos este pão, fruto da terra e do trabalho do homem, e apresentamo-lo a Vós para que se torne para nós alimento de vida eterna". Esta oração é repetida sobre o vinho. Sentimentos análogos são sugeridos tanto pela divina Liturgia bizantina, como pelo antigo Cânone Romano, quando na anamnese eucarística exprimem a consciência de ofere-cer como dom a Deus, as coisas d'Ele recebidas.

6. A última aplicação desta visão de Deus é realizada pelo Cântico, tendo em vista a experiência humana da riqueza e do poder. Estas duas dimensões apareceram enquanto David predispunha o necessário para construir o tem-plo. Também para ele mesmo podia ser uma tentação, aquela que é uma ten-tação universal: agirmos como se fôssemos árbitros absolutos daquilo que possuímos, fazendo disto um motivo de orgulho e de injustiça em relação ao próximo. A oração cadenciada neste Cântico leva o homem à sua dimensão de "pobre", que tudo recebe.

Então, os reis desta terra são unicamente uma imagem do Reino divino: "a Vós, Senhor, a realeza!". Os abastados não podem esquecer-se da origem dos seus próprios bens: "É de Vós que vêm a riqueza e a glória". Os podero-sos devem saber reconhecer-se em Deus, como fonte "de toda a grandeza e de todo o poder". O cristão é chamado a interpretar estas expressões, con-templando com exultação Cristo ressuscitado, glorificado por Deus "acima de todo o Principado, Potestade, Virtude e Dominação" (Ef 1, 21).

Cristo é o verdadeiro Rei do universo!
(6 de junho de 2001)

Cântico de Tobias (13)
Deus castiga e salva

1. "De toda a minha alma louvarei o meu Deus, Rei do céu" (Tb 13, 9). Quem pronuncia estas palavras, no cântico agora proclamado, é o velho To-bi, do qual o Antigo Testamento traça uma breve história edificante, no li-vro que toma o nome do filho, Tobias.

Para compreender plenamente o sentido deste hino, é preciso considerar as páginas narrativas que o precedem. A história passa-se entre os israelitas exilados em Nínive. O autor sagrado olha para eles, escrevendo muitos sé-culos depois, para os apontar aos irmãos e irmãs de fé, dispersos no meio de um povo estrangeiro e tentados a abandonar as tradições de seus pais. O retrato de Tobi e da sua família é oferecido como um programa de vida. Ele é o homem que, apesar de tudo, permanece fiel à lei e, em particular, à prá-tica da esmola. Sobre ele se abate a infelicidade com a chegada inesperada da pobreza e da cegueira, mas não lhe falta a fé. E a resposta de Deus não tarda a chegar, através do anjo Rafael, que guia o jovem Tobias numa via-gem perigosa, preparando-o para um matrimónio feliz e, enfim, curando o pai Tobi da cegueira.

A mensagem é clara: quem faz o bem, sobretudo abrindo o coração à neces-sidade do próximo, agradará ao Senhor e, ainda que seja posto à prova, ex-perimentará, por fim, a Sua benevolência.

2. É sobre este fundo que tomam todo o seu realce as palavras do nosso hino. Ele convida a olhar para o alto, para "Deus que vive eternamente", para o seu reino que "dura por todos os séculos". A partir deste olhar volta-do para Deus se desenvolve um breve esboço de teologia da história, em que o Autor sagrado procura responder à interrogação que o Povo de Deus, disperso e provado, apresenta a si mesmo: porque é que Deus nos trata assim? A resposta faz um apelo conjunto à justiça e à misericórdia divina: "castiga-vos por causa das vossas iniquidades, mas a seguir, compadece-se de vós" (cf v. 5). O castigo aparece assim como uma espécie de pedagogia divina, onde, todavia, a última palavra é sempre reservada à misericórdia: "Ele castiga e compadece-se, conduz ao sepulcro e dele faz sair; nada existe que escape à sua mão" (v. 2 ).

Podemos, pois, confiar de modo absoluto em Deus, que nunca abandona a sua criatura. Aliás, as palavras do hino conduzem-nos a uma perspectiva, que atribui um significado salvífico à própria situação de sofrimento, fazen-do do exílio uma ocasião para testemunhar as obras de Deus: "louvai-O, fi-lhos de Israel, diante dos gentios, porque Ele dispersou-vos no meio deles, para proclamar a sua grandeza" (vv. 3-4).

3. Deste convite a ler o exílio como chave providencial, a nossa meditação pode alargar-se na consideração do sentido misteriosamente positivo que as-sume a condição de sofrimento, quando é vivida no abandono à vontade de Deus. Algumas passagens no Antigo Testamento, esboçam já este tema. Basta pensar na história narrada pelo livro do Génesis, sobre José vendido pelos irmãos (cf. Gn 37, 2-36) e destinado a ser, no futuro, o seu salvador. E como esquecer o livro de Job? Aqui, é verdadeiramente o homem inocente que sofre e não encontra explicação para o seu drama, senão confiando na grandeza e sabedoria de Deus (cf. Job 42, 1-6).

Para nós, que lemos cristãmente estas passagens do Antigo Testamento, o ponto de referência não pode deixar de ser a Cruz de Cristo, na qual se en-contra uma resposta profunda para o mistério da dor no mundo.

4. Aos pecadores que são julgados pelas suas injustiças (cf. v. 5), o hino de Tobi dirige um apelo à conversão e abre a perspectiva maravilhosa de uma "recíproca" conversão de Deus e do homem: "Convertei-vos a Ele, com to-do o vosso coração e com toda a vossa alma, para praticar a verdade na sua presença. Ele voltar-Se-á para vós e não vos ocultará a Sua face" (v. 6). É muito eloquente este uso da mesma palavra "conversão" para a criatura e para Deus, embora com significado diverso.

Se o autor do Cântico pensa, porventura, nos benefícios que acompanham o "regresso" de Deus, ou seja, o seu renovado favor para com o povo, nós de-vemos pensar sobretudo, à luz do mistério de Cristo, no dom que consiste no próprio Deus. O homem tem necessidade dele, mesmo mais do que dos seus dons. O pecado é uma tragédia não tanto porque nos atrai os castigos de Deus, mas porque O repele do nosso coração.

5. Por isso, é para o rosto de Deus considerado como Pai que o Cântico diri-ge o nosso olhar, convidando-nos à bênção e ao louvor: "Ele é o nosso Se-nhor e o nosso Deus, é o nosso Pai" (v. 4). Descobre-se que o sentido desta especial "filiação" que Israel experimenta como dom de aliança e que prepa-ra o mistério da encarnação do Filho de Deus. Então, em Jesus, resplan-decerá o rosto do Pai e será revelada a sua misericórdia sem limites.

Bastaria pensar na parábola do Pai misericordioso narrada pelo evangelista Lucas. À conversão do filho pródigo não corresponde só o perdão do Pai, mas um abraço de infinita ternura, acompanhado da alegria e da festa: "Ain-da estava longe quando o pai o viu e, enchendo-se de compaixão, correu a lançar-se-lhe ao pescoço, cobrindo-o de beijos" (Lc 15, 20). As expressões do nosso Cântico estão na linha desta comovente imagem evangélica. E dela nasce a necessidade de louvar e agradecer a Deus: "Contemplai, agora, o que fez por nós, rendei-lhe graças com a vossa boca: bendizei o Senhor da justiça e exaltai o Rei dos séculos" (v. 7).
(25 de julho de 2001)

Cântico de Tobias (13)
Acção de graças pela libertação do povo

1. A Liturgia das Laudes inclui entre os seus Cânticos o fragmento de um hino, colocado como selo da história narrada pelo Livro bíblico de Tobias: escutámo-lo há pouco. O hino, bastante amplo e solene, é uma expressão ti-pica da oração e da espiritualidade judaica, que se inspira noutros textos já presentes na Bíblia.

O Cântico desenvolve-se através de uma dupla invocação. Sobressai em pri-meiro lugar um convite reiterado a louvar Deus (cf. vv. 3.4.7) pela purifi-cação que ele está a realizar com o exílio. Os "filhos de Israel são exortados a aceitar esta purificação com uma conversão sincera (cf. vv. 6.8). Se a con-versão florescer nos corações, o Senhor fará surgir no horizonte o alvorecer da libertação. É precisamente neste clima espiritual que se situa o início do Cântico que a Liturgia tirou do hino mais amplo do capítulo 13 de Tobias.

2. A segunda parte do texto, entoada pelo idoso Tobite, protagonista de todo o Livro com o filho Tobias, é uma verdadeira e própria celebração de Sião. Ela reflecte a nostalgia apaixonada e o amor ardente que o hebreu da Dias-pora sente em relação à cidade santa (cf. vv. 9-18). Este aspecto brilha no âmbito do trecho que foi escolhido como oração matutina da Liturgia das Laudes. Detenhamo-nos nestes temas, ou seja, na purificação do pecado através da prova e da expectativa do encontro com o Senhor, à luz de Sião e do seu templo santo.

3. Tobite dirige um apelo caloroso aos pecadores para que se convertam e pratiquem a justiça: este é o caminho que se deve empreender para reen-contrar o amor divino que dá serenidade e esperança (cf. v. 8).

A própria história de Jerusalém é uma parábola que ensina a todos que op-ção fazer. Deus castigou a cidade porque não podia permanecer indiferente perante o mal perpetrado pelos seus filhos. Mas agora, vendo que muitos se converteram e se transformaram em filhos justos e fiéis, ele manifestará de novo o seu amor misericordioso (cf. v. 10).

Ao longo de todo o Cântico do capítulo 13 de Tobias repete-se com fre-quência esta convicção: o Senhor "castiga e compadece-Se... castiga por causa das nossas iniquidades mas, a seguir, compadece-Se de nós... Ele cas-tigou-te por causa das tuas obras... os filhos dos justos serão congregados e louvarão o Senhor" (vv. 2.5.11.15). Deus recorre ao castigo e outras admo-estações como meio para congregar na recta via os pecadores surdos. A úl-tima palavra do Deus justo é, contudo, a do amor e do perdão; o seu desejo profundo é poder abraçar de novo os filhos rebeldes que voltam para Ele com o coração arrependido.

4. Em relação ao povo eleito, a misericórdia divina manifestar-se-á com a reconstrução do Templo de Jerusalém, realizada pelo próprio Deus: "Porque o teu tabernáculo será reconstruído com júbilo" (v. 11). Desta forma, come-ça o segundo tema, o de Sião, como lugar espiritual para o qual deve con-vergir não só a volta dos hebreus mas também a peregrinação dos povos que procuram Deus. Desta forma, abre-se um horizonte universalista: recons-truído, o templo de Jerusalém, sinal da palavra e da presença divina, res-plandecerá com uma luz planetária que abrirá as trevas, para que possam pôr-se a caminho "numerosos povos, até às extremidades da terra" (cf. v. 13), trazendo oferendas e cantando a sua alegria por participar na salvação que o Senhor concede a Israel.

Por conseguinte, os Israelenses e todos os povos estão a caminho juntos, ru-mo a uma única meta de fé e de verdade. O cantor deste hino faz descer so-bre eles uma bem-aventurança repetida, dizendo a Jerusalém: "Ditosos aqueles que te amam, e ditosos os que se alegram pela tua prosperidade!" (v. 16). A felicidade é autêntica quando se encontra a luz que resplandece no céu de todos os que procuram o Senhor com o coração purificado e com o anseio da verdade.

5. É a esta Jerusalém, livre e gloriosa, sinal da Igreja na meta derradeira da sua esperança, prefigurada pela Páscoa de Cristo, que Santo Agostinho se dirige com fervor no Livro das Confissões.

Referindo-se à oração que ele deseja realizar no seu "quarto secreto", des-creve-nos aquelas "canções de amor entre os gemidos, os inarráveis gemi-dos que durante a minha peregrinação suscita a recordação no coração o-rientado para o alto em direcção a ela, Jerusalém a minha pátria, Jerusalém a minha mãe, e para Ti, o seu soberano, o seu iluminador, o seu pai, tutor e esposo, as suas castas e grandes delícias, a sua sólida alegria e todos os seus bens inefáveis". E conclui com uma promessa: "Não me afastarei de ti, en-quanto na paz daquela mãe caríssima, onde se encontram as primícias do meu espírito, de onde me vêm estas certezas, Tu não tiveres reunido tudo o que eu sou a partir desta dispersão desvirtuada, para o conformar defini-tivamente na eternidade, ó meu Deus, minha misericórdia" (Confissões, 12, 16, 23, Roma 1965, págs. 424-425).
(13 de agosto de 2003)

Cântico de Judite (16,1-17)
O Senhor é criador do mundo e protege o seu povo

1. O Cântico de louvor que acabamos de proclamar (cf. Jdt 16, 1-17) é atri-buído a Judite, uma heroína que se tornou o orgulho de todas as mulheres de Israel, porque a ela coube exprimir o poder libertador de Deus num mo-mento dramático da vida do seu povo. Deste seu cântico, a liturgia das Lau-des faz-nos recitar apenas alguns versículos. Eles convidam a fazer festa, cantando em sintonia de vozes, tocando timbales e címbalos, para louvar o Senhor que "põe fim às guerras" (v. 2).

Esta última expressão, que define o verdadeiro rosto de Deus que ama a paz, introduz-nos no contexto em que nasceu o hino. Trata-se de uma vitória alcançada pelos Israelitas de maneira totalmente surpreendente, por obra de Deus que intervém para os subtrair à perspectiva de uma derrota iminente e total.

2. O Autor sagrado reconstrói este acontecimento alguns séculos mais tarde, a fim de oferecer aos irmãos e irmãs na fé, tentados pelo desencorajamento numa situação difícil, um exemplo que os possa animar. Desta forma, re-corre ao que acontecera em Israel quando Nabucodonosor, irritado com a indisponibilidade deste povo perante os seus projectos de expansão e as suas pretensões idolátricas, enviara o general Holofernes com a tarefa bem definida de o dominar e aniquilar. Ninguém devia resistir a ele, que reivin-dicava as honras de um deus. E o seu general, compartilhando a sua pre-sunção, desprezara a admoestação, que também ele recebera, de não atacar Israel, porque seria como ofender o próprio Deus.

Em última análise, o Autor sagrado deseja recordar precisamente este prin-cípio, para confirmar os crentes do seu tempo na fidelidade ao Deus da A-liança: é preciso ter confiança em Deus. O verdadeiro inimigo que Israel de-ve temer não são os poderosos desta terra, mas a infidelidade ao Senhor. Ela priva-o da protecção de Deus e torna-o vulnerável. Ao contrário, quando é fiel o povo pode contar com a própria força de Deus, "magnífico no seu po-der e invencível" (cf. v. 13).

3. Este princípio é maravilhosamente ilustrado por toda a história de Judite. O cenário é o da terra de Israel já invadida pelos inimigos. Do cântico emer-ge a dramaticidade deste momento: "O assírio veio das montanhas do norte com a multidão dos seus guerreiros. A sua multidão secava as torrentes, e a sua cavalaria cobria os vales" (v. 5). A arrogância efémera do inimigo é realçada com sarcasmo: "Ele jurara incendiar o meu país, e passar ao fio de espada a minha juventude, e roubar os meus filhos, e levar as minhas filhas para o cativeiro" (v. 6).

A situação descrita pelas palavras de Judite é parecida com outras vividas por Israel, nas quais a salvação chegara quando parecia que já não havia ca-minhos de salvação. Não acontecera assim também a salvação do Êxodo, na passagem prodigiosa através do Mar Vermelho? Também agora o assédio por parte de um exército numeroso e poderoso tira qualquer esperança. Mas tudo isto só evidencia o poder de Deus, que se manifesta como um protector invencível do seu povo.

4. A obra de Deus é muito mais luminosa, porque Ele não recorre a um guerreiro ou a um exército. Como outrora, no tempo de Débora, eliminara o general cananeu Sísera por meio de Jael, uma mulher (cf. Jz 4, 17-21), ago-ra serve-se de novo de uma mulher inerme para ajudar o povo que se en-contra em dificuldade. Firme na sua fé, Judite aventura-se até ao acam-pamento inimigo, seduz com a sua beleza o comandante e executa-o de ma-neira humilhante. O Cântico põe em grande evidência este facto: "O Senhor Todo Poderoso feriu-o, e entregou-o nas mãos de uma mulher que lhe cor-tou a cabeça. O seu chefe não caiu diante de jovens, nem foram heróis nem gigantes corpulentos que se lhe opuseram, mas foi Judite, filha de Merari, que o perdeu com a formosura do seu rosto" (Jdt 16, 5-6).

A figura de Judite tornar-se-á depois o arquétipo que permitirá não só à tra-dição hebraica, mas também à cristã, realçar a predilecção de Deus por tudo o que é considerado frágil e débil, mas que precisamente por isso é esco-lhido para manifestar o poder divino. Ela é uma figura exemplar também para exprimir a vocação e a missão da mulher, chamada à igualdade com o homem, de acordo com as suas características específicas, a desempenhar um papel significativo no desígnio de Deus. Algumas expressões do livro de Judite serão adoptadas, de modo mais ou menos integral, pela tradição cristã, que verá na heroína hebraica uma das prefigurações de Maria. Não se sente talvez um eco dos tons de Judite quando, no Magnificat, Maria canta: "Derrubou os poderosos dos seus tronos e exaltou os humildes" (Lc 1, 52)? Por conseguinte, compreende-se como a tradição litúrgica, familiar aos cris-tãos quer do Oriente quer do Ocidente, gosta de atribuir à Mãe de Jesus ex-pressões que se referem a Judite, como as seguintes: "Tu és a glória de Je-rusalém, tu és a alegria de Israel, tu és a honra do nosso povo" (Jdt 15, 9).

5. Partindo da experiência da vitória, o cântico de Judite concluiu-se com um convite a elevar a Deus um cântico novo, reconhecendo-o "grande e glo-rioso". Ao mesmo tempo, admoestam-se todas as criaturas a permanecerem submetidas Àquele que com a sua palavra fez todas as coisas e as plasmou com o seu espírito. Quem pode resistir à voz de Deus? Judite recorda-o com grande ênfase: perante o Criador e Senhor da história, os fundamentos dos montes serão abalados e as rochas derreter-se-ão como a cera (cf. Jdt 16, 15). São metáforas eficazes para recordar que todas as coisas são "nada", face ao poder de Deus. E contudo este cântico de vitória não quer amedron-tar, mas confortar. De facto, Deus oferece o seu poder invencível em apoio de quantos lhe são fiéis: "Aqueles que Vos temem serão verdadeiramente grandes aos vossos olhos" (ibid.).
(29 de agosto de 2001)

Cântico da Sabedoria (9,4-10)
Dai-me, Senhor, a sabedoria

1. O Cântico agora proposto apresenta-nos a maior parte de uma ampla ora-ção colocada nos lábios de Salomão, que na tradição bíblica é considerado o rei justo e o sábio por excelência. Ela é-nos oferecida no capítulo nono do Livro da Sabedoria, um escrito do Antigo Testamento composto em grego, talvez em Alexandria do Egipto, no limiar da era cristã. Nele se entrevê uma expressão do judaísmo vivaz e aberto da Diáspora hebraica no mundo helé-nico.

São três substancialmente os percursos de pensamento teológico que este li-vro nos propõe: a imortalidade feliz como meta final da existência do justo (cf. cc. 1-5); a sabedoria como dom divino e orientação da vida e das esco-lhas do fiel (cf. cc. 6-9); a história da salvação, sobretudo o acontecimento fundamental do êxodo da opressão egípcia, como sinal daquela luta entre bem e mal, que termina numa plena salvação e redenção (cf. cc. 10-19).

2. Salomão viveu uma dezena de séculos antes do autor inspirado pelo Li-vro da Sabedoria, mas foi considerado como o arquétipo e o artífice ideal de toda a reflexão sapiencial posterior. A oração em forma de hino colocada nos seus lábios é uma invocação solene dirigida ao "Deus dos pais e Senhor de misericórdia" (9, 1), para que conceda o dom preciosíssimo da sabedoria.
É evidente no nosso texto a alusão à cena narrada no Primeiro Livro dos Reis, quando Salomão, nos princípios do seu reino, sobe ao lugar alto de Gabaon, onde se levantava um santuário, e, depois de ter celebrado um grandioso sacrifício, tem durante a noite um sonho-revelação. Ao próprio pedido de Deus, que o convida a pedir-lhe um dom, ele responde: "Dai, pois, ao vosso servo um coração sábio, capaz de julgar o vosso povo e dis-cernir entre o bem e o mal" (1 Rs 3, 9).

3. A inspiração oferecida por esta invocação de Salomão é desenvolvida no nosso Cântico numa série de apelos dirigidos ao Senhor, para que conceda o tesouro insubstituível que é a sabedoria.

No trecho extraído da Liturgia das Laudes encontramos estes dois pedidos: "dai-me a sabedoria... Enviai-a, pois, dos Vossos santos céus, enviai-a do trono da vossa glória" (Sab 9, 4.10). Sem este dom tem-se a consciência de estar sem orientação, quase privados de uma estrela polar que oriente nas escolhas morais da existência: "Eu sou... homem fraco e de poucos anos, incapaz de compreender o Vosso juízo e as Vossas leis... sem a sabedoria, que procede de vós, (o homem) não será nada" (vv. 5-6).

É fácil descobrir que esta "sabedoria" não é a simples inteligência ou habi-lidade prática, mas antes a participação na própria mente de Deus que "com a sua sabedoria formou o homem" (cf. v. 2). Por conseguinte, é a capa-cidade de penetrar no sentido profundo do ser, da vida e da história, indo além da superfície das coisas e dos acontecimentos para descobrir o seu sig-nificado último, querido pelo Senhor.

4. A sabedoria é como uma lâmpada que ilumina as nossas opções morais de cada dia e nos conduz pelo recto caminho, para "conhecer o que é agra-dável aos olhos do Senhor e o que é conforme com os seus decretos" (cf. v. 9). Por isso, a Liturgia nos faz rezar com as palavras do Livro da Sabedoria no início de um dia, precisamente para que Deus, com a sua sabedoria, este-ja ao nosso lado e "nos assista nos nossos trabalhos" quotidianos (cf. v. 10), revelando-nos o bem e o mal, o que é justo e o que é injusto.

Guiados pela Sabedoria divina nós entramos confiantes no mundo. Apega-mo-nos a ela, amando-a com o amor esponsal a exemplo de Salomão que, sempre segundo o Livro da Sabedoria, confessava: "Eu a amei (a sabedoria) e busquei desde a minha juventude, procurei tomá-la como esposa e enamo-rei-me dos seus encantos" (8, 2).

5. Os Padres da Igreja identificaram em Cristo a Sabedoria de Deus, se-guindo o exemplo de São Paulo, que definia Cristo "o poder e a sabedoria de Deus" (1 Cor 1, 24).

Concluamos agora com uma oração de Santo Ambrósio, que se dirigia assim a Cristo: "Ensina-me as palavras ricas de sabedoria, porque tu és a Sabedoria! Abre o meu coração, tu que abriste o Livro! Abre aquela porta que está no céu, porque tu és a Porta! Se entrarmos através de Ti, não nos enganaremos, porque, quem entra na habitação da Verdade, não se pode enganar" (Comentário ao Salmo 118/1: SAEMO 9, pág. 377).
(29 de janeiro de 2003)

Cântico do Eclesiástico (36)
Oração pelo povo santo de Deus

1. No interior do Antigo Testamento não existe só o livro oficial da oração do Povo de Deus, isto é, o Saltério. Muitas páginas bíblicas estão cheios de cânticos, hinos, salmos, súplicas, orações, invocações que se elevam para o Senhor, como resposta à sua palavra. A Bíblia revela-se, assim, um diálogo entre Deus e a humanidade, um encontro que é colocado sob o selo da pala-vra divina, da graça e do amor.

É o caso da súplica que agora dirigimos ao "Senhor Deus do Universo" (v.1). Está contida no livro de Sirácide, um sábio que recolhe as suas refle-xões, os seus conselhos, os seus cantos provavelmente à volta de 190-180 a. C., nos limiares da epopeia de libertação vivida por Israel sob a orientação dos irmãos Macabeus. Um neto deste sábio, em 138 a. C. traduziu para gre-go, como se narra no prólogo acrescentado ao volume, a obra do avô como que a oferecer estes ensinamentos para uma procura mais ampla dos leitores e discípulos.

O livro de Sirácide é chamado "Eclesiástico" pela tradição cristã. Não tendo sido acolhido no cânone hebraico, este livro acaba por caracterizar, junta-mente com outros, a chamada "veritas christiana" [verdade cristã]. Os valo-res propostos por esta obra sapiencial entraram de tal modo na educação cristã da era patrística, sobretudo no âmbito monástico, que se tornaram co-mo um manual do comportamento dos discípulos de Cristo.

2. A invocação do capítulo 36 de Sirácide, assumida como oração das Lau-des pela Liturgia das Horas de uma forma simplificada, move-se ao longo de algumas linhas deste tema.

Encontramos, antes de mais, o pedido de que Deus intervenha em favor de Israel e contra as nações estrangeiras que o oprimem. No passado, Deus mostrou a sua santidade quando castigou as culpas do seu povo, entregando-o nas mãos dos seus inimigos. Agora, o orante pede a Deus que mostre a sua grandeza, reprimindo a prepotência dos opressores e instaurando uma nova era a partir dos matizes messiânicos.

Certamente, a súplica reflecte a tradição orante de Israel e, na realidade, está repleta de reminiscências bíblicas. Por estes versos, ela pode considerar-se como um modelo de oração para usar durante o tempo da perseguição e da opressão, como era aquele em que vivia o autor, sob o domínio mais áspero e severo dos soberanos estrangeiros sírio-helenísticos.

3. A primeira parte desta oração é aberta por um apelo ardente dirigido ao Senhor para que tenha piedade e guarde (cf.v 1). Mas a atenção depressa é dirigida para a acção divina, que é exaltada através de uma série de verbos muito sugestiva: "tem piedade... guarda... infunde o temor... levanta a mão... mostra-te grande... renova os sinais... realiza prodígios... glorifica a tua mão e o teu braço direito..."

O Deus da Bíblia não é indiferente nos confrontos com o mal. E mesmo se os seus caminhos não são os nosos caminhos, os seus tempos e projectos são diversos dos nossos (cf. Is. 55, 8-9), todavia Ele alinha do lado das vi-timas e apresenta-se como juiz severo dos violentos, dos opressores, dos triunfadores que não têm piedade.
Mas esta sua intervenção não se estende à destruição. Mostrando o seu po-der e a sua fidelidade no amor, Ele pode gerar ainda na consciência do mal-vado um estremecimento que o leve à conversão. "Para que reconheçam, como também nós reconhecemos que fora de Vós, Senhor, não há outro Deus" (v. 4).

4. A segunda parte do hino abre uma perspectiva mais positiva. De facto, enquanto a primeira parte pede uma intervenção de Deus contra os inimi-gos, a segunda não fala mais de inimigos, mas pede os favores de Deus para Israel, implora a sua piedade em favor do povo eleito e da sua cidade santa, Jerusalém.

O sonho do regresso de todos os exilados, compreendendo os do reino do Norte, torna-se objecto da oração: "reuni todas as tribos de Jacob, tomai-as como vossa herança, como o foram desde o princípio" (v. 10). É pedida co-mo que uma espécie de renascimento de todo o Israel, como nos tempos felizes da ocupação de toda a Terra Prometida.

Para tornar a oração mais premente, o orante insiste sobre a relação que une Deus a Israel e Jerusalém. Israel aparece designado como "o povo que foi chamado pelo vosso nome", aquele "que tratastes como filho primogénito"; Jerusalém é a "vossa cidade santa", a "vossa morada". O desejo expresso, depois, é que a relação se torne ainda mais estreita e, por isso, mais glorio-sa.: "enchei Sião com as vossas palavras inefáveis e o vosso povo com a vossa glória" (v. 13). Pelo encher com a sua majestade o Templo de Jeru-salém, que atrairá a si todas as nações (cf. Is 2, 2-4; Miq 4, 1-3), o Senhor encherá o seu povo com a sua glória.

5. Na Bíblia, o lamento dos que sofrem nunca leva ao desespero, antes é sempre aberto à esperança. Na base, está a certeza de que o Senhor não a-bandona os seus filhos, não deixa cair das suas mãos aqueles que ele for-mou.

A selecção feita pela Liturgia omitiu uma expressão feliz na nossa oração. Ela pede a Deus que dê "testemunho em favor daqueles que, desde o prin-cípio, são vossas criaturas" (v. 14). Desde a eternidade, Deus tem um pro-jecto de amor e de salvação destinado a todas as criaturas, chamadas a tor-nar-se seu povo. É um desígnio que São Paulo reconhecerá "revelado, pelo Espírito, aos Seus santos Apóstolos e Profetas... conforme o desígnio eter-no que Deus realizou em Cristo Jesus, Nosso Senhor" (Ef 3, 5. 11).
(23 de janeiro de 2002)

Cântico de Isaías (2)
A nova cidade de Deus, centro de toda a humanidade

1. A Liturgia quotidiana das Laudes, além dos Salmos, propõe sempre um Cântico tirado do Antigo Testamento. De facto, sabemos que, paralelamente ao Saltério, verdadeiro e próprio livro da oração de Israel e depois da Igreja, existe uma espécie de outro "Saltério" distribuído pelas várias páginas histó-ricas, proféticas e sapienciais da Bíblia. Também ele é constituído por hi-nos, súplicas, louvores e invocações, muitas vezes de grande beleza e inten-sidade espiritual.

Na nossa peregrinação espiritual pelas orações da Liturgia das Laudes, já encontramos muitos destes cânticos que constelam as páginas bíblicas. To-mamos agora em consideração um, deveras admirável, obra de um dos má-ximos profetas de Israel, Isaías, que viveu no oitavo século a.C. Ele é teste-munha de momentos difíceis vividos pelo reino de Judá, mas também cantor da esperança messiânica numa linguagem poética altíssima.

2. É o caso do Cântico que acabámos de escutar e que está colocado quase na abertura do seu livro, nos primeiros versículos do capítulo 2, precedidos por uma nota redaccional posterior que diz assim: "Visão profética de Isaías, filho de Amós, sobre Judá e Jerusalém" (Is 2, 1). Por conseguinte, o hino é concebido como uma visão profética, que descreve uma meta para a qual tende, na esperança, a história de Israel. Não é por acaso que as pri-meiras palavras são: "No fim dos tempos" (v. 2), isto é, na plenitude dos tempos. Por isso, é um convite a não nos fixarmos no presente tão pobre, mas a sabermos intuir, sob a superfície dos acontecimentos quotidianos, a presença misteriosa da acção divina, que conduz a história para um hori-zonte muito diferente de luz e de paz.

Esta "visão", com sabor messiânico, será retomada ulteriormente no capí-tulo 60 do mesmo livro num cenário mais amplo, sinal de uma nova medi-tação das palavras fundamentais e incisivas do profeta, precisamente as do Cântico que agora proclamámos. O profeta Miqueias (cf. 4, 1-3) retomará o mesmo hino, ainda que termine (cf. 4, 4-5) de maneira diferente do oráculo de Isaías (cf. Is 2, 5).
3. No centro da "visão" de Isaías ergue-se o monte Sião, que virá idealmente diante de todos os outros montes, sendo habitado por Deus e, por conse-guinte, é lugar de contacto com o céu (cf. 1 Rs 8, 22-53). Dele, segundo o oráculo de Isaías 60, 1-6, difundir-se-á uma luz que rasgará e afastará as trevas e para ele se dirigirão procissões de povos de todas as partes da terra.

Este poder de atracção que Sião possui, está fundado sobre duas realidades que promanam do monte de Jerusalém: a Lei e a Palavra do Senhor. Elas constituem, na verdade, uma única realidade, que é fonte de vida, de luz e de paz, expressão do mistério do Senhor e da sua vontade.

Quando as nações alcançam o cume de Sião, onde se ergue o templo de Deus, eis que se realiza aquele milagre que desde sempre a humanidade es-pera e pelo qual suspira. Os povos deixam cair das mãos as armas, que de-pois são recolhidas para serem forjadas em instrumentos pacíficos de tra-balho: as espadas são transformadas em relhas de arados, as lanças em foi-ces. Desta forma, delineia-se um horizonte de paz, de shalôm (cf. Is 60, 17), como se diz em hebraico, palavra querida sobretudo à teologia messiânica. Finalmente desaparecem de uma vez por todas a guerra e o ódio.

4. O oráculo de Isaías conclui-se com um apelo, que está em sintonia com a espiritualidade dos cânticos de peregrinação a Jerusalém: "Casa de Jacob, vinde, caminhemos à luz do Senhor" (Is 2, 5). Israel não deve permanecer espectador desta transformação histórica radical; não se pode dissociar do convite que ressoou na abertura nos lábios dos povos: "Vinde, subamos à Montanha do Senhor" (v. 3). Também nós, cristãos, somos interpelados por este Cântico de Isaías. Ao comentá-lo, os Padres da Igreja do quarto e quin-to séculos (Basílio Magno, João Crisóstomo, Teodoro de Ciro, Cirilo de A-lexandria) vêem-no realizado com a vinda de Cristo. Por conseguinte, iden-tificavam na Igreja o "monte do templo do Senhor... erigido no cimo dos montes", do qual saía a Palavra do Senhor e para o qual acorriam os povos pagãos, na nova era de paz inaugurada pelo Evangelho.

5. Já o mártir São Justino na sua Primeira Apologia, escrita por volta de 153, proclamava a realização do versículo do Cântico que diz: "sairá de Je-rusalém a palavra do Senhor" (cf. v. 3). Ele escrevia: "De Jerusalém sairão homens para o mundo, num número de doze; e estes eram incultos; não sa-biam falar, mas graças ao poder de Deus revelaram a todo o género humano que tinham sido enviados por Cristo para ensinar a todos a Palavra de Deus. E nós, que antes nos matávamos uns aos outros, não só já não combatemos os inimigos, mas para não mentir e não enganar quantos nos interrogam, morremos de bom grado confessando Cristo" (Primeira Apologia, 39, 3; Os apologistas gregos, Roma 1986, pág. 118).

Por isso, de modo particular nós, cristãos, aceitamos o apelo do profeta e procuramos lançar as bases daquela civilização do amor e da paz na qual não haja mais guerra, "nem morte, nem pranto, nem gritos, nem dor, porque as primeiras coisas passaram" (Ap 21, 4).
(4 de setembro de 2002)

Cântico de Isaías (12,1-6)
Exultação do povo redimido

1. O hino que acabamos de proclamar faz parte, como cântico de alegria, da Liturgia das Laudes. Ele constitui uma espécie de selo de algumas páginas do Livro de Isaías que se tornaram célebres devido à sua leitura messiânica. Trata-se dos capítulos 6-12, normalmente chamados "o livro do Emanuel". De facto, no centro daqueles oráculos proféticos domina a figura de um so-berano que, apesar de pertencer à histórica dinastia davídica, revela contor-nos transfigurados e recebe títulos gloriosos: "Conselheiro-Admirável, Deus-Poderoso, Pai-Eterno, Príncipe-da-Paz" (Is 9, 5).

A figura concreta do rei de Judá que Isaías promete como filho e sucessor de Acaz, o soberano daquela época muito afastado dos ideais davídicos, é o sinal de uma promessa mais nobre: a do rei-Messias que realizará em ple-nitude o nome de "Emanuel", isto é, "Deus-connosco", tornando-se a pre-sença divina perfeita na história humana. Compreende-se facilmente, então, como o Novo Testamento e o cristianismo tenham intuído naquele perfil real a fisionomia de Jesus Cristo, Filho de Deus que se fez homem solidário connosco.

2. O hino a que agora fazemos referência (cf. Is 12, 1-6) é considerado pelos estudiosos, tanto pela qualidade literária como pelo seu tom geral, uma composição posterior em relação ao profeta Isaías, que viveu no século oita-vo antes de Cristo. É quase uma citação, um texto à maneira de salmo, tal-vez de uso litúrgico, que é inserido neste ponto para servir de conclusão ao "livro do Emanuel". Com efeito, recorda alguns dos seus temas: a salvação, a confiança, a alegria, a acção divina, a presença entre o povo do "Santo de Israel", expressão que indica tanto a transcendente "santidade" de Deus, como a sua proximidade amorosa e activa, com a qual o povo de Israel pode contar.

Quem canta é uma pessoa que fez uma triste experiência, sentida como um acto do juízo divino.

Mas agora a provação terminou; a cólera do Senhor é substituída pelo sorriso, com a disponibilidade para salvar e confortar.

3. As duas estrofes do hino marcam quase dois momentos. No primeiro (cf. vv. 1-3), aberto pelo convite para rezar: "Dirás naquele dia", domina a pala-vra "salvação", repetida três vezes e aplicada ao Senhor: "Este é o Deus da minha salvação... Ele foi a minha salvação... as fontes da salvação".

Recordamos, entre outras coisas, que o nome de Isaías como o de Jesus con-tém a raíz do verbo hebraico ylsa", que faz alusão à "salvação". Por conse-guinte, o nosso orante tem a certeza indiscutível de que na origem da líber-tação e da esperança se encontra a graça divina. É significativo observar que ele faz referência implícita ao grande acontecimento salvífico do êxodo da escravidão do Egipto, porque menciona as palavras do cântico de libertação entoado por Moisés: "O Senhor é a minha força e a minha glória" (Ex 15, 2).

4. A salvação dada por Deus, capaz de suscitar a alegria e a confiança tam-bém no dia obscuro da provação, é representada pela imagem, clássica na Biblia, da água: "Tirareis com alegria água das fontes da salvação" (Is 12, 3). O pensamento vai espiritualmente para a cena da mulher samaritana, quando Jesus lhe oferece a possibilidade de ter em si mesma uma "nascente de água a jorrar para a vida eterna" (Jo 4, 14).

A este propósito, Cirilo de Alexandria comenta de maneira sugestiva: "Je-sus chama água viva ao dom vivificante do Espirito, o único através do qual a humanidade, apesar de ter sido completamente abandonada, como os tron-cos nos montes, seca e privada, devido às insídias do diabo, de todas as es-pécies de virtudes, é restituida à antiga beleza da natureza... O Salvador cha-ma água à graça do Espirito Santo, e se alguém participar d'Ele, terá em si mesmo a nascente dos ensinamentos divinos, de forma que não terá mais necessidade dos conselhos dos outros, e poderá exortar todos os que tem se-de da Palavra de Deus. Eram assim, quando estavam nesta vida e na terra, os santos profetas, os apóstolos e os sucessores do seu ministério. A seu res-peito foi escrito: tirareis água com alegria da fonte da salvação" (Comen-tário ao Evangelho de João II, 4, Roma 1994, págs. 272.275).

Infelizmente a humanidade abandona com frequência esta nascente que tira a sede a todo o ser da pessoa, como realça com amargura o profeta Jere-mias: "Abandonou-Me, a Mim, fonte de águas vivas, para cavar cisternas, cisternas rotas, que não podem reter as águas" (Jer 2, 13). Também Isaías, poucas páginas atrás, tinha exaltado "as águas de Siloé que correm tranqui-las", simbolo do Senhor presente em Sião, e ameaçara o castigo da inunda-ção das "águas abundantes e impetuosas do rio Eufrates" (Is 8, 6-7), símbo-lo do poder militar e económico e da idolatria, águas que, então, fascinavam Judá, mas que o teriam submergido.

5. Outro convite "Naquele dia direis" começa a segunda estrofe (cf. Is 12, 4-6), que é um apelo continuo ao louvor jubiloso em honra do Senhor. Mul-tiplicam-se os imperativos para cantar: "Louvai, invocai, manifestai, procla-mai, cantai, bradai, exultai".

No centro do louvor está uma única profissão de fé em Deus salvador, que intervém na história e está ao lado da sua criatura, partilhando as suas vi-cissitudes: "O Senhor... fez obras maravilhosas... Quão grande no meio de ti é o Santo de Israel" (vv. 5.6). Esta profissão de fé tem também uma função missionária: "narrai as suas obras entre os povos... anunciai-as em toda a terra" (vv. 4.5). A salvação obtida deve ser testemunhada no mundo, de maneira que toda a humanidade corra para aquelas nascentes de paz, de ale-gria e de liberdade.
(17 de abril de 2002)

Cântico de Isaías (26)
O hino depois da vitória

1. No Livro do profeta Isaías convergem vozes diferentes, distribuídas num amplo arco de tempo e todas colocadas sob o nome e a inspiração desta grandiosa testemunha da Palavra de Deus, que viveu no século VIII a.C.

Dentro deste amplo rolo de profecias, que também Jesus abriu e leu na sina-goga da sua aldeia, Nazaré (cf. Lc 4, 17-19), encontra-se uma série de capí-tulos, que vai do 24 ao 27, geralmente intitulada pelos estudiosos "o grande apocalipse de Isaías". De facto, encontramos outra, menor, nos capítulos 34-35. Em páginas muitas vezes fervorosas e repletas de símbolos, delineia-se uma poderosa descrição poética do juízo divino acerca da história e exalta-se a expectativa da salvação por parte dos justos.

Muitas vezes, como acontecerá no Apocalipse de João, se opõem duas cida-des antitéticas entre si: a cidade rebelde, encarnada nalguns centros históri-cos daquela época, e a cidade santa, onde os fiéis se reúnem.

Pois bem, o Cântico que agora ouvimos proclamar, e que é tirado do capitu-lo 26 de Isaías, é precisamente a celebração jubilosa da cidade da salva-ção. Ela eleva-se forte e gloriosa, porque foi o próprio Senhor que lançou as suas bases e os muros de defesa, tornando-a habitação segura e tranquila (cf. v. 1). Agora ele abre de par em par as suas portas para receber o povo dos justos (cf. v. 2), que parece repetir as palavras do Salmista quando, diante do templo de Sião, exclama: "Abri-me as portas da justiça, desejo entrar para dar graças ao Senhor. Esta é a porta do Senhor; por ela entram apenas os justos" (Sl 117, 19-20).

3. Quem entra na cidade da salvação deve ter uma característica fundamen-tal: "Carácter firme... confiança em vós... confiar" (cf. Is 26, 3-4). É a fé em Deus, uma fé sólida, baseada n'Ele, que é a "rocha perene" (v. 4).

É a confiança, já expressa na raiz originária hebraica da palavra "amen", sintética profissão de fé no Senhor, que como cantava o rei David é "minha força, minha rocha, minha fortaleza, meu abrigo, meu escudo; meu Deus e meu abrigo em quem me refugio, meu escudo, minha defesa e meu castelo" (cf. Sl 17, 2-3; 2 Sm 22, 2-3).

O dom que Deus oferece aos fiéis é a paz (cf. Is 26, 3), o dom messiânico por excelência, síntese de vida na justiça, na liberdade e na alegria da comunhão.

4. É um dom recordado com vigor no versículo final do Cântico de Isaías: "Senhor, proporcionai-nos a paz, porque todas as nossas empresas vós as realizais" (v. 12). Este versículo chamou a atenção dos Padres da Igreja: na-quela promessa de paz eles viram as palavras de Cristo que ressoaram al-guns séculos mais tarde: "Deixo-vos a paz, a Minha paz vos dou" (Jo 14, 27).
No seu Comentário ao Evangelho de João, São Cirilo de Alexandria recorda que, ao dar a paz, Jesus oferece o seu próprio Espírito. Por conseguinte, Ele não nos deixa órfãos, mas permanece connosco através do Espírito. E São Cirilo comenta: o profeta "invoca que seja dado o Espírito divino, por meio do qual fomos readmitidos na amizade com Deus Pai, nós, que antes anda-vamos afastados d'Ele devido ao pecado que reinava em nós". O comentário torna-se depois oração: "Concedei-nos a paz, ó Senhor. Então admitiremos que tudo possuímos, e parecer-nos-á que nada falta àquele que recebeu a plenitude de Cristo. De facto, é plenitude de qualquer bem que Deus habite entre nós através do Espírito (cf. Cl 1, 19)" (vol. III, Roma 1994, pág. 165).

5. Demos um último olhar ao texto de Isaías. Ele apresenta uma reflexão so-bre "o caminho recto" (cf. v. 7) e uma declaração de adesão às justas deci-sões de Deus (cf. vv. 8-9). A imagem dominante é a do caminho, clássica na Bíblia, como já Oseias, um profeta pouco anterior a Isaías, tinha declarado: "Quem é sábio para compreender estas coisas, inteligente para as conhecer? Porque os caminhos do Senhor são rectos, os justos andam por eles, mas os pecadores neles tropeçam" (14, 10).

No cântico de Isaías há outra componente, que se revela muito sugestiva também para o uso litúrgico que dele faz a Liturgia das Laudes. Tem-se, com efeito uma menção do alvorecer, esperado depois de uma noite empe-nhada na busca de Deus: "A minha alma deseja-vos de noite e o meu espíri-to dentro de mim busca-vos pela manhã" (26, 9).

É precisamente no alvorecer, quando começa o trabalho e a vida quotidiana já vibra nos caminhos da cidade, que o fiel deve empenhar-se de novo a ca-minhar "na vereda dos vossos juízos, Senhor" (v. 8), esperando n'Ele e na Sua palavra, única fonte de paz.

Emergem então dos seus lábios as palavras do Salmista, que desde o alvore-cer professa a sua fé: "Vós, Senhor, sois o meu Deus, anseio por Vós. A mi-nha alma está sedenta de Vós... O Vosso amor é mais precioso do que a vida" (Sl 62, 2.4). Com a alma fortalecida ele pode enfrentar o novo dia.
(2 de outubro de 2002)

Cântico de Isaías (33)
Deus julgará com justiça

1. Entre os Cânticos bíblicos, que se entrelaçam com os Salmos na Liturgia das Laudes, encontramos um breve texto que hoje proclamámos. Ele é tira-do de um capítulo do Livro do profeta Isaías, o trigésimo da sua grande e admirável recolha de oráculos divinos.

O Cântico começa com os versículos anteriores aos que foram citados (cf. vv. 10-12), com o anúncio de uma entrada poderosa e gloriosa de Deus so-bre a história humana : "Agora eu me levantarei, diz o Senhor, agora me er-guerei e vou subir" (v. 10). As palavras de Deus destinam-se aos que estão "longe" e aos que estão "perto", isto é, a todas as nações da terra, mesmo às mais distantes, e a Israel, o povo que está "perto" do Senhor devido à alian-ça (cf. v. 13).

Noutra passagem do Livro de Isaías é afirmado: "Porei nos seus lábios este cântico: Paz àquele que está longe e àquele que está perto, diz o Senhor, e eu o sararei" (Is 57, 19). Agora, ao contrário, as palavras do Senhor tornam-se duras, assumem a tonalidade do julgamento sobre o mal dos que estão "longe" e dos que estão "perto".

2. De facto, logo a seguir, difunde-se o medo entre os habitantes de Sião nos quais se escondem pecado e impiedade (cf. Is 33, 14). Eles estão cons-cientes de viver ao lado do Senhor que reside no templo, escolheu caminhar com eles na história e transformou-se em "Emanuel", "Deus-connosco" (cf. Is 7, 14). Pois bem, o Senhor justo e santo não pode tolerar a impiedade, a corrupção e a injustiça. Como "fogo devorador" e "chama perene" (cf. Is 33, 14), Ele desencadeia-se contra o mal para o aniquilar.

Já no capítulo 10, Isaías admoesta: "A luz de Israel será um fogo, o seu San-to, uma chama, que abrasará e devorará" (v. 17). Também o Salmista canta-va: "Tal como... ao contacto com o fogo, se derrete a cera, assim se dissi-pam os ímpios na presença do Senhor" (Sl 67, 3). Deseja dizer-se, no âm-bito da economia veterotestamentária, que Deus não é indiferente face ao bem e ao mal, mas mostra o seu desdém e a sua cólera em relação à malda-de.
3. O nosso cântico não termina com esta cena sombria de julgamento. Aliás, reserva a parte mais ampla e intensa à santidade acolhida e vivida como si-nal da conversão e reconciliação com Deus que se verificou. Na esteira de alguns Salmos, como o 14 e o 23, que realçam as condições requeridas pelo Senhor para viver em comunhão jubilosa com Ele na liturgia do templo, Isaías enumera seis compromissos morais para o verdadeiro crente, fiel e justo (cf. Is 33, 15), que pode habitar, sem sofrer dano algum, junto do fogo divino, que para ele é fonte de benefícios.

O primeiro compromisso consiste em "caminhar na justiça", ou seja, consi-derar a lei divina como lâmpada que ilumina o caminho da vida. O segundo, coincide com o falar leal e sincero, sinal de relações sociais correctas e au-tênticas. Como terceiro compromisso, Isaías propõe que se "recuse um lucro que seja fruto de vexames", combatendo assim a opressão dos pobres e a ri-queza injusta.

Depois, o crente compromete-se a condenar a corrupção política e judicial "sacudindo as mãos para não aceitar dádivas", imagem sugestiva que indica a recusa de doações feitas para desviar a aplicação das leis e o curso da jus-tiça.

4. O quinto compromisso é expresso com o gesto significativo de "fechar os ouvidos" quando são feitas propostas sanguinolentas, actos de violência a serem perpetrados. O sexto e último compromisso é expresso com uma ima-gem que, inicialmente, nos desorienta porque não corresponde ao nosso mo-do de falar. Quando falamos de "fechar um olho", desejamos dizer: "fingir não ver para não ter a obrigação de intervir"; mas o profeta diz que o ho-mem honesto "fecha os olhos para não ver o mal", no sinal de uma recusa completa de qualquer contacto com o mal.

São Jerónimo, no seu comentário a Isaías, desenvolve da seguinte forma o conceito, tendo em consideração o conjunto do trecho: "Qualquer forma de iniquidade, de opressão e de injustiça, é decisão de sangue: e mesmo se não mata com a espada, contudo mata com a intenção. "E fecha os olhos para não ver o mal": é feliz a consciência que não ouve e não contempla o mal! Por conseguinte, quem se comporta assim, habitará "no excelso", ou seja, no reino dos céus ou na altíssima gruta da fortíssima Pedra, em Jesus Cristo" (In Isaiam prophetam, 10, 33: PL 24, 367).

Desta forma, Jerónimo introduz-nos na compreensão justa daquele "fechar os ouvidos" recordado pelo profeta: trata-se de um convite a recusar absolu-tamente qualquer forma de conivência com o mal. Como é fácil observar, são chamados em causa os sentidos principais do corpo: mãos, pés, olhos, ouvidos e língua são envolvidos no agir moral humano.

5. Pois bem, quem opta por seguir este comportamento honesto e justo po-derá ter acesso ao templo do Senhor, onde irá receber a segurança daquele bem-estar exterior e interior que Deus oferece a quem está em comunhão com Ele. O profeta emprega duas imagens para descrever este êxito jubiloso (cf. v. 16): a segurança em fortalezas incorruptíveis e a abundância do pão e da água, símbolo de vida próspera e feliz.

A tradição interpretou espontaneamente o sinal da água como imagem do baptismo (cf. por ex. a Carta de Barnabé 11, 5), enquanto o pão se transfi-gurou para os cristãos em sinal da Eucaristia. É quanto se lê, por exemplo, no comentário de São Justino mártir, o qual vê nas palavras de Isaías uma profecia do "pão" eucarístico, "memória" da morte redentora de Cristo (cf. Diálogo com Trifónio, Paulinas 1988, pág. 242).
(30 de outubro de 2002)

Cântico de Isaías (38)
As angústias de um moribundo a alegria de um restabelecido

1. A Liturgia das Horas, nos vários Cânticos que são postos em paralelo com os Salmos, apresenta-nos também um hino de agradecimento que tem este título: "Cântico de Ezequias, rei de Judá, quando adoeceu e foi curado da sua enfermidade" (Is 38, 9). Ele está inserido numa parte do livro do pro-feta Isaías com a característica histórico-narrativa (cf. Is 36-39), cujos dados realçam com algumas variantes os que são oferecidos pelo Segundo Livro dos Reis (cf. cap. 18-20).

Nós, agora, na esteira da Liturgia das Laudes, ouvimos e transformamos em oração, duas grandes estrofes daquele Cântico que descrevem os dois movi-mentos típicos das orações de agradecimento: por um lado, é recordado o pesadelo do sofrimento do qual o Senhor libertou o seu fiel e, por outro, canta-se com alegria a gratidão pela vida e pela salvação reconquistada.
O rei Ezequias, um soberano justo e amigo do profeta Isaías, tinha sido atin-gido por uma grave doença, que o profeta Isaías declarara mortal (cf. Is 38, 1). "Ezequias voltou o seu rosto para a parede e fez ao Senhor esta oração: "Senhor, lembrai-vos de que tenho andado fielmente diante de vós, de todo o coração, segundo a vossa vontade". E começou a derramar lágrimas abun-dantes. Então a palavra do Senhor foi dirigida a Isaías, nestes termos: "Vai e diz a Ezequias: Eis o que diz o Senhor, o Deus de teu pai David: Ouvi a tua oração e vi as tuas lágrimas; vou acrescentar à tua vida mais quinze anos"" (Is 38, 2-5).

2. Neste ponto brota do coração do Rei o cântico de reconhecimento. Como se disse, ele volta-se antes de tudo para o passado. Segundo a antiga con-cepção de Israel, a morte introduzia num horizonte subterrâneo, chamado em hebraico sheol, onde a luz se apagava, a existência se atenuava e se fazia quase espectral, o tempo parava, deixava de haver esperança e, sobretudo, deixava de se ter a possibilidade de invocar e encontrar Deus no culto.

Por isso, Ezequias recorda em primeiro lugar as palavra cheias de amargura pronunciadas quando a sua vida estava deslizando em direcção aos confins da morte: "Não verei mais o Senhor na terra dos viventes" (v. 11). Também o Salmista rezava assim no dia da doença: "Quando chegar a morte, nin-guém se lembra de Vós; na mansão dos mortos quem vos louvará?" (Sl 6, 6). Ao contrário, libertado do perigo da morte, Ezequias pode recordar com vigor e com alegria: "Os vivos são os que vos louvam como eu vos louvo a-gora" (Is 38, 19).

3. O Cântico de Ezequias adquire, precisamente sobre este tema uma nova tonalidade, se for lido à luz da Páscoa. Já no Antigo Testamento se abriam grandes clareiras de luz nos Salmos, quando o orante proclamava a sua cer-teza de que "Vós não me entregareis à mansão dos mortos, nem deixareis que o Vosso amigo veja o sepulcro. Ensinar-me-eis o caminho da vida; na vossa presença (gozamos) a plenitude da alegria, na Vossa direita (encon-traremos) as delícias eternas" (Sl 15, 10-11; cf. Sl 48 e 72). O autor do Li-vro da Sabedoria, por seu lado, jamais hesitará em afirmar que a esperança dos justos está "cheia de imortalidade" (Sab 3, 4), porque ele está conven-cido de que a experiência de comunhão com Deus vivida durante a existên-cia terrena não será infringida. Nós permaneceremos sempre, para além da morte, apoiados e protegidos pelo Deus eterno e infinito, porque "as almas dos justos estão na mão de Deus e nenhum tormento os tocará" (Sab 3, 1).
Sobretudo com a morte e a ressurreição do Filho de Deus, Jesus Cristo, uma semente de eternidade é lançada à terra e feita germinar na nossa caducida-de mortal, e por isso podemos repetir as palavras do Apóstolo, baseadas no Antigo Testamento: "Quando este corpo corruptível se revestir de imortali-dade, então cumprir-se-á o que está escrito: "A morte foi tragada pela vitó-ria. Onde está, ó morte, a tua vitória? Onde está, ó morte, o teu aguilhão?"" (1 Cor 15, 54-55; cf. Is 25, 8; Os. 13, 14).

4. Mas o cântico do rei Ezequias convida-nos também a reflectir sobre a nossa fragilidade de criaturas. As imagens são sugestivas. A vida humana é descrita com o símbolo nómada da tenda: nós somos sempre peregrinos e hóspedes na terra. Recorre-se também à imagem da tela, que é tecida e que pode permanecer incompleta quando se corta o fio e o trabalho é interrom-pido (cf. Is 38, 12). Também o Salmista tem a mesma sensação: "Eis que fizestes os meus dias de uns tantos palmos, a minha existência, perante ti, é como um nada; cada um não é mais do que um sopro. Cada homem passa como uma simples sombra: é em vão que se agita" (Sl 38, 6-7). É necessário reencontrar a consciência dos nossos limites, saber que "a soma da nossa vida como declara ainda o Salmista é de setenta anos, os mais fortes chegam aos oitenta; mas a sua grandeza não passa de atribulação e miséria, porque eles passam depressa e nós desaparecemos" (Sl 89, 10).

5. No dia da doença e do sofrimento é, contudo, justo elevar a Deus a pró-pria lamentação, como nos ensina Ezequias que, usando imagens poéticas, descreve o seu pranto como o piar da andorinha e o gemer de uma pomba (cf. Is 38, 14). E, mesmo se não hesita em confessar que sente Deus como um adversário, como um leão que quebra os ossos (cf v. 13), não deixa de o invocar: "Senhor, estou em agonia, confortai-me!" (v. 14).

O Senhor não permanece indiferente às lágrimas do sofredor e, mesmo por caminhos que nem sempre coincidem com os das nossas expectativas, res-ponde, conforta e salva. É como confessa Ezequias no final, convidando to-dos a ter esperança, a rezar, a ter confiança, na certeza de que Deus não abandona as suas criaturas: "Senhor, salvai-me e soaremos as nossas harpas no templo do Senhor, todos os dias da nossa vida" (v. 20).

6. A tradição latina medieval conserva deste Cântico do rei Ezequias um co-mentário espiritual de Bernardo de Claraval, um dos místicos mais repre-sentativos do monaquismo ocidental. Trata-se do terceiro dos Sermões vá-rios, em que Bernardo, aplicando à vida de cada um o drama vivido pelo so-berano de Judá e, interiorizando o seu conteúdo, escreve entre outras coisas: "Louvarei ao Senhor em todos os tempos, isto é, de manhã até à noite, como aprendi a fazer, e não como os que te louvam quando tu lhes fazes o bem, nem como os que crêem durante um certo tempo, mas no momento da tenta-ção cedem; e como os santos, direi: Se recebemos o bem da mão de Deus, porque não devemos aceitar também o mal?... Assim estes dois momentos do dia serão um tempo de serviço a Deus, porque à noite permanecerá o pranto, e de manhã o eco da alegria. Mergulharei no sofrimento à noite a fim de poder gozar, depois, a alegria da manhã" (Scriptorium Claravallense, Sermo III, n. 6, Milão 2000, págs. 59-60).

Por conseguinte, a súplica do rei é lida por São Bernardo como uma repre-sentação do cântico orante do cristão, que deve ressoar, com a mesma cons-tância e serenidade, tanto nas trevas da noite e da provação como na luz do dia e da alegria.
(27 de fevereiro de 2002)

Cântico de Isaías (40,10-17)
O Bom Pastor: o Deus Altíssimo e Sapientíssimo

1. No livro do grande profeta Isaías, que viveu no oitavo século a. C., en-contram-se também reunidas as vozes de outros profetas, seus discípulos e sucessores. É o caso daquele que os estudiosos da Bíblia chamaram "o Se-gundo Isaías", o profeta do regresso de Israel do exílio na Babilónia, que se verificou no sexto século a. C. A sua obra constitui os capítulos 40-55 do li-vro de Isaías e, precisamente, do primeiro destes capítulos é tirado o Cânti-co que entrou na Liturgia das Laudes há pouco proclamado.

Este Cântico é composto por duas partes: os primeiros dois versículos pro-vêm do final de um belíssimo oráculo de consolação que anuncia o regresso dos exilados a Jerusalém, sob a orientação do próprio Deus (cf. Is 40, 1-11). Os versículos seguintes formam o começo de um discurso apologético, que exalta, por um lado, a omnisciência e a omnipotência de Deus e, por outro, submete os fabricantes de ídolos a uma dura crítica.

2. Por conseguinte, no começo do texto litúrgico aparece a figura poderosa de Deus, que volta a Jerusalém precedido dos seus troféus, assim como Já-cob tinha voltado à Terra Santa precedido pelos seus rebanhos (cf. Gn 31, 17; 32, 17). Os troféus de Deus são os Hebreus exilados, que Ele arrancou das mãos dos seus conquistadores. Por conseguinte, Deus é apresentado "como um pastor" (Is 40, 11). Muito frequentemente na Bíblia e noutras tra-dições antigas, esta imagem recorda a ideia de orientação e de domínio, mas aqui as características são sobretudo ternas e apaixonadas, porque o pastor é também companheiro de viagem das suas ovelhas (cf. Sl 22). Ele cuida do rebanho, não só alimentando-o e preocupando-se para que não se tresmalhe, mas também inclinando-se com ternura sobre os cordeiros e as ovelhas-mães (cf. Is 40, 11).

3. Concluída a descrição da entrada em cena do Senhor rei e pastor, eis a re-flexão sobre o seu agir como Criador do universo. Ninguém pode estar ao seu nível nesta obra grandiosa e extraordinária: não o homem, sem dúvida, e muito menos os ídolos, seres mortos e impotentes. O profeta recorre depois a uma série de interrogações retóricas, nas quais já está incluída a resposta. Elas são pronunciadas numa espécie de processo: ninguém pode competir com Deus e apropriar-se do seu imenso poder ou da sua ilimitada sabedoria.
Ninguém está em condições de medir o imenso universo criado por Deus. O profeta faz compreender como os intrumentos humanos são ridiculamente desapropriados para esta tarefa. Por outro lado, Deus foi um artífice soli-tário; ninguém foi capaz de o ajudar ou de o aconselhar num projecto tão imenso como o da criação cósmica (cf vv. 13-14).

Na sua décima oitava Catequese baptismal, São Cirilo de Jerusalém, com base no nosso Cântico, convida a não medir Deus com o metro da nossa li-mitação humana: "Para ti, homem tão pequeno e frágil, a distância que vai da Gótia à Índia, da Espanha à Pérsia, é grande, mas para Deus, que tem nas suas mãos o mundo inteiro, qualquer terra está próxima" (As catequeses, Roma 1993, pág. 408).

4. Depois de ter celebrado a omnipotência de Deus na criação, o profeta tra-ça o seu senhorio sobre a história, ou seja, sobre as nações, sobre a huma-nidade que povoa a terra. Os habitantes dos territórios conhecidos, mas tam-bém os das regiões remotas, que a Bíblia chama "ilhas" distantes, são uma realidade microscópica em relação à grandeza infinita do Senhor. As ima-gens são brilhantes e intensas: os povos são "como uma gota de água num balde", "como o grão na balança", como "o pó fino" (Is 40, 15).

Ninguém seria capaz de preparar um sacrifício digno deste grandioso Se-nhor e rei: não seriam suficientes todas as vítimas sacrificais da terra, nem sequer todas as florestas de cedros do Líbano para acender o fogo deste ho-locausto (cf. v. 16). O profeta conduz o homem à consciência do seu limite face à grandeza infinita e à omnipotência soberana de Deus. A conclusão é lapidar: "Todos os povos são, diante dele, como se não existissem; diante dele são apenas nada e vacuidade" (v. 17).

5. Por conseguinte, o fiel é convidado, desde o início do dia, a adorar o Se-nhor omnipotente. São Gregório de Nissa, Padre da Igreja da Capadócia (IV século), meditava assim as palavras do Cântico de Isaías: "Todas as vezes que ouvimos pronunciar a palavra "omnipotente", pensamos no facto de que Deus mantém unidas todas as coisas na existência, tanto as inteligíveis, co-mo as que pertencem à criação material. De facto, por isso, ele mantém o círculo da terra, tem nas suas mãos os confins da terra, contém o céu dentro de um mão-cheia, mede a água com a mão, engloba em si mesmo toda a criação intelectual: para que todas as coisas permaneçam na existência, mantidas com força pelo poder que as abraça" (Teologia trinitária, Milão 1994, pág. 625).

São Jerónimo, por seu lado, manifesta-se estupefacto face a outra verdade surpreendente: a de Cristo, que, "era de condição divina... despojou-se a Si mesmo, tomando a condição de servo, tornando-se semelhante aos homens" (Fil 2, 6-7). Aquele Deus infinito e omnipotente observa ele fez-se peque-nino e limitado. São Jerónimo contempla-o no presépio de Belém e excla-ma: "Ele que contém o universo numa mão-cheia, ei-lo encerrado numa es-treita manjedoura" (Carta 22, 39, em Obras escolhidas, I, Turim 1971, pág. 379).
(20 de novembro de 2002)

Cântico de Isaías (42,10-16)
Hinos ao Senhor vitorioso e salvador

1. No livro que tem o nome do profeta Isaías, os estudiosos identificaram a presença de vozes diferentes, todas colocadas sob o patrocínio do grande profeta que viveu no oitavo século a.C. É o caso do hino vigoroso de alegria e de vitória que agora foi proclamado como parte da Liturgia das Laudes da quarta semana. Os exegetas relacionam-no com o chamado Segundo Isaías, um profeta que viveu no sexto século a.C., no tempo da vinda dos Hebreus do exílio da Babilónia. O hino abre com um apelo a "cantar ao Senhor um cântico novo" (cf. Is 42, 10), precisamente como aconteceu noutros Salmos (cf. 95, 1 e 97, 1).

A "novidade" do cântico para o qual o profeta convida inspira-se certamente na abertura do horizonte da liberdade, como mudança radical na história de um povo que conheceu a opressão e a permanência em terra estrangeira (cf. Sl 136).

2. A "novidade" tem com frequência na Bíblia o sabor de uma realidade perfeita e definitiva. É quase o sinal do começo de uma era de plenitude sal-vífica que sela a história atormentada da humanidade. O Cântico de Isaías apresenta esta nobre tonalidade, que se adapta bem à oração cristã.

O mundo, na sua globalidade que inclui a terra, o mar, as ilhas, os desertos e as cidades (cf. Is 42, 10-12), é convidado o elevar ao Senhor um "cântico novo". Todo o espaçço está envolvido com os seus extremos confins hori-zontais, que compreendem também o desconhecido, e com a sua dimensão vertical, que parte da planície deserta, onde se encontram as tribus nómadas de Kedar (cf. Is 21, 16-17), e sobe até aos montes: ali pode-se colocar a ci-dade de Sela, identificada por muitos com Petra, no território dos Edomitas, uma cidade situada entre picos rochosos.

Todos os habitantes da terra são convidados a formar um coro imenso para aclamar o Senhor com alegria e lhe dar glória.

3. Depois do solene convite ao cântico (cf. vv. 10-12), o profeta faz entrar em cena o Senhor, representado como o Deus do Êxodo, que libertou o seu povo da escravidão egípcia: "O Senhor avança, como um herói, como um guerreiro" (v. 13). Ele semeia o terror entre os adversários, que oprimem os outros e cometem a injustiça.

Também o cântico de Moisés descreve o Senhor durante a travessia do Mar Vermelho como um "herói em guerra", pronta para estender a sua direita poderosa e aniquilar os inimigos (cf. Êx 15, 3-8). Com o regresso dos He-breus da deportação da Babilónia está para se cumprir um novo êxodo e os fiéis devem ter a certeza de que a história não está entregue ao destino, ao caos, ou às potências opressoras: a última palavra compete ao Deus justo e forte. Já o Salmista cantava: "Prestai-nos auxílio na angústia, porque é vão qualquer socorro humano" (Sl 59, 13).
4. Tendo entrado em cena, o Senhor fala e as suas palavras veementes (cf. Is 42, 14-16) falam de juizo e salvação. Ele começa por recordar que "durante muito tempo" esteve "em silêncio", ou seja, não interveio. O silêncio divino é com frequência, para o justo, motivo de perplexidade e até de escândalo, como afirma o longo brado de Job (cf. 3, 1-26). Contudo, não se trata de um silêncio que indica uma ausência, como se a história estivesse abandonada nas mãos dos perversos e o Senhor permanecesse indiferente e impassível. Na realidade, aquele silêncio leva a uma reacção semelhante à angústia de uma mulher que está para dar à luz e, ofegante, grita. É o juizo divino sobre o mal, representado com imagens de aridez, destruição, deserto (cf. v. 15), que tem como meta um resultado vivo e fecundo.

Com efeito, o Senhor faz surgir um mundo novo, uma era de liberdade e de salvação. A quem era cego são-lhe abertos os olhos, para que possa gozar da luz resplandecente. O caminho torna-se plano e a esperança floresce (cf. v. 16), tornando possível continuar a confiar em Deus e no seu futuro de paz e de felicidade.

5. Todos os dias o crente deve saber distinguir os sinais da acção divina, mesmo quando ela está escondida pela passagem, aparentemente monótona e sem meta, do tempo. Como escrevia um apreciado autor cristão moderno, "a terra está invadida por um êxtase cósmico: existe nela uma realidade e uma presença eterna que, contudo, normalmente dorme sob o véu da rotina. A realidade eterna deve revelar-se agora, como numa revelação de Deus, através de tudo o que existe" (R. Guardini, Sabedoria dos Salmos, Bréscia, 1976, pág. 52).

Descobrir com os olhos da fé, esta presença divina no espaço e no tempo, mas também em nós próprios, é fonte de esperança e de confiança, mesmo quando o nosso coração está perturbado e abalado "como se agitam as árvo-res das florestas impulsadas pelo vento" (Is 7, 2). De facto, o Senhor entra em cena para reger e julgar "o mundo com justiça e todos os povos com ver-dade" (cf. Sl 95, 13).
(2 de abril de 2003)

Cântico de Isaías (45,15-25)
Todos os povos se convertam ao Senhor

"Na verdade, vós sois um Deus escondido" (Is 45, 15). Este versículo, que introduz o Cântico proposto para as Laudes de sexta-feira da primeira sema-na do Saltério, é tirado da meditação de Isaías sobre a grandeza de Deus, manifestada na criação e na história: um Deus que se revela, embora perma-neça escondido na impenetrabilidade do seu mistério. Por definição, Ele é o "Deus absconditus". Nenhum pensamento o pode compreender. O homem só pode contemplar a sua presença no universo, como que seguindo os seus passos, prostrado diante dele na oração e no louvor.

O contexto histórico, a partir do qual nasce esta meditação, é o da surpre-endente libertação que Deus ofereceu ao seu povo, no tempo do exílio babi-lónico. Quem é que teria pensado que, um dia, os exilados de Israel podiam voltar para a sua pátria? Olhando para o poder babilónico, eles só podiam desesperar. Todavia, eis o grande anúncio, a surpresa de Deus, que vibra nas palavras do profeta: como no tempo do Êxodo, Deus há-de intervir. E se en-tão tinha derrotado a resistência do faraó com castigos tremendos, agora es-colhe um rei, Ciro da Pérsia, para vencer o poder babilónico e restituir a li-berdade a Israel.

2. "Vós sois um Deus escondido, o Deus de Israel, o Salvador" (Ibidem). Com estas palavras, o profeta convida a reconhecer que Deus age na histó-ria, mesmo quando não se manifesta na linha de vanguarda. Dir-se-ia que se encontra "nos bastidores". Ele é o criador misterioso e invisível que respeita a liberdade das suas criaturas mas, ao mesmo tempo, tem nas suas mãos o destino das vicissitudes do mundo. A certeza da acção providencial de Deus é fonte de esperança para o crente, que sabe que pode contar com a presença constante daquele "que formou a terra e a consolidou" (Ibid., v. 18).

Com efeito, o acto criativo não é um episódio que se perde na noite dos tempos, de maneira que o mundo, depois daquele início, se deva considerar como que abandonado em si mesmo. Deus tira constantemente do ser a cria-ção que saiu das suas mãos. Reconhecê-lo é também confessar a sua unici-dade: "Não fui Eu, o Senhor? Não há outro Deus fora de mim" (Ibid., v. 21). Por definição, Deus é o Único. Nada lhe pode ser comparado. Tudo lhe é subordinado. Daqui, também a rejeição da idolatria, em relação à qual o profeta anuncia palavras severas: "Nada disto compreendem os que trazem o seu ídolo de madeira e dirigem as suas súplicas a um deus incapaz de os salvar" (Ibid., 20). Como é que nos podemos pôr em adoração, diante de um produto realizado pelo homem?
3. À nossa sensibilidade contemporânea, esta polémica poderia parecer ex-cessiva, como se visasse as imagens consideradas em si mesmas, sem com-preender que lhes pode ser atribuído um valor simbólico, compatível com a adoração espiritual do único Deus. Sem dúvida, aqui entra em jogo a sábia pedagogia divina que, através de uma rígida disciplina de exclusão das ima-gens, salvaguardou Israel das contaminações politeístas. Partindo do rosto de Deus, que se manifestou na encarnação de Jesus Cristo, a Igreja reconhe-ceu, durante o segundo Concílio de Niceia (a. 787), a possibilidade de re-correr às imagens sagradas, contanto que estas sejam compreendidas no seu valor essencial de relação.

Todavia, subsiste a importância desta admoestação profética em relação a todas as formas de idolatria, com frequência dissimuladas mais do que no uso impróprio das imagens, nas atitudes com que os homens e as coisas são considerados como valores absolutos e substitutos do próprio Deus.

4. Sob o ponto de vista da criação, o hino leva-nos para o terreno da histó-ria, onde Israel pôde experimentar muitas vezes o poder benéfico e miseri-cordioso de Deus, a sua fidelidade e a sua providência. Em particular, na li-bertação do exílio manifestou-se uma vez mais o amor de Deus pelo seu po-vo, e isto aconteceu de maneira tão evidente e surpreendente, que o profeta chama os próprios "sobreviventes de entre as nações" a testemunhar. Convi-da-os a discutir, se podem:

"Congregai-vos, vinde, aproximai-vos todos juntos, sobreviventes de entre as nações" (Ibidem). A conclusão a que o profeta chega é de que a interven-ção do Deus de Israel é inquestionável.

Então, manifesta-se uma magnífica perspectiva universalista. Deus procla-ma: "Convertei-vos a mim e sereis salvos, confins todos da terra, porque Eu sou Deus e não há outro" (Ibid., v. 22).

Assim, torna-se evidente que a predilecção com que Deus escolheu Israel como seu povo não significa um acto de exclusão mas, pelo contrário, um acto de amor de que toda a humanidade é destinada a beneficiar.

Desta forma delineia-se, já no Antigo Testamento, aquela concepção "sacra-mental" da história da salvação, que vê na eleição especial dos filhos de Abraão e, em seguida, dos discípulos de Cristo na Igreja, não um privilégio que "fecha" e "exclui", mas o sinal e o instrumento de um amor universal.
5. O convite à adoração e a oferta da salvação dizem respeito a todos os po-vos: "Todo o joelho se dobrará diante de mim, toda a língua jurará por mim" (Ibid., v. 23). Ler estas palavras numa perspectiva cristã significa ter no pensamento a revelação completa do Novo Testamento que, em Cristo, in-dica "um Nome que está acima de todo o nome" (Fl 2, 9), de tal maneira que, "ao nome de Jesus, todo o joelho se dobre nos Céus, na Terra e nos In-fernos, e toda a língua confesse que Jesus Cristo é o Senhor, para a glória de Deus Pai" (Ibid., vv. 10-11).

Através deste Cântico, as nossas Laudes matutinas adquirem proporções u-niversais, dando voz também a quantos ainda não receberam a graça de co-nhecer Cristo. Trata-se de um louvor que se faz "missionário", levando-nos a percorrer todos os caminhos, anunciando que Deus se manifestou em Je-sus como o Salvador do mundo.
(31 de outubro de 2001)

Cântico de Isaías (61,10-62,5)
Júbilo do profeta pela nova Jerusalém

1. Abriu-se como um Magnificat o admirável Cântico que a Liturgia das Laudes nos propõe e que agora foi proclamado: "Com grande alegria rejubi-lei no Senhor, e o meu coração exulta no meu Deus" (Is 61, 10). O texto es-tá inserido na terceira parte do Livro do profeta Isaías, uma parte que os es-tudiosos enquadram numa época mais tardia, quando Israel, tendo voltado do exílio na Babilónia (VI século a.C.), recomeça a sua vida como povo li-vre na terra dos antepassados e edifica de novo Jerusalém e o templo. Não é por acaso que a cidade santa, como veremos, está no centro do Cântico e o horizonte que se está a abrir é luminoso e repleto de esperança.

2. O profeta abre o seu cântico representando o povo renascido, envolvido em maravilhosas vestes, como um casal de esposos, preparado para o gran-de dia da celebração nupcial (cf. v. 20). Imediatamente a seguir, é recordado outro símbolo, expressão de vida, de alegria e de novidade: o vegetal das se-mentes (cf. v. 11).

Os profetas recorrem à imagem das sementes, de formas diferentes, para re-presentar o rei messiânico (cf. Is 11, 1; Jer 23, 5; Zc 3, 8; 6, 12). O messias é uma semente fecunda que renova o mundo, e o profeta explicita o sentido profundo desta vitalidade: "o Senhor Deus fará germinar a justiça" (Is 61, 11), portanto a cidade santa tornar-se-á um jardim de justiça, isto é, de fide-lidade e de verdade, de direito e de amor. Como dizia pouco antes o profeta, "Darás às tuas muralhas o nome de "Salvação", e de "Glória" às tuas portas" (Is 60, 18).

3. O profeta continua a levantar a sua voz: o cântico é incansável e quer re-presentar o renascimento de Jerusalém, diante da qual está para começar uma nova era (cf. Is 62, 1). A cidade é representada como uma esposa que se prepara para celebrar as núpcias.

O simbolismo esponsal, que sobressai com vigor nesta passagem (cf. vv. 4-5), é, na Bíblia, uma das imagens mais intensas para exaltar o vínculo de in-timidade e o pacto de amor estabelecido entre o Senhor e o povo eleito. A beleza feita de "salvação", de "justiça" e de "glória" (cf. vv. 1-2) será tão maravilhosa que ela poderá ser "coroa fúlgida na mão do Senhor" (cf. v. 3). O elemento decisivo será a mudança do nome, como acontece também nos nossos dias quando a jovem se casa. Assumir um "nome novo" (cf. v. 2) sig-nifica quase revestir uma nova identidade, empreender uma missão, mudar radicalmente a vida (cf. Gn 32, 25-33).

4. O novo nome que assumirá a esposa Jerusalém, destinada a representar todo o povo de Deus, é ilustrado no contraste que o profeta especifica: "Não mais serás chamada a "Desamparada", nem a tua terra a "Deserta", antes serás chamada: "Minha dilecta" e a tua terra a "Desposada"" (Is 62, 4). Os nomes que indicavam a situação anterior de abandono e de desolação, ou seja, a devastação da cidade por obra dos Babilónios e o drama do exílio, é agora substituído pelos nomes do renascimento e são palavras de amor e de ternura, de festa e de felicidade.

A este ponto toda a atenção se concentra no esposo. E eis a grande surpresa: o próprio Senhor atribui a Sião o novo nome nupcial. É maravilhosa, sobre-tudo, a declaração final, que resume o tema do cântico de amor que o povo entoou: "Assim como o jovem desposa a donzela, assim o teu construtor te desposará; e assim como a esposa faz a felicidade do seu marido, assim tu serás a alegria do teu Deus" (v. 5).

5. O cântico já não celebra as núpcias entre um rei e uma rainha, mas cele-bra o amor profundo que une para sempre Deus e Jerusalém. Na sua esposa terrena, que é a nação santa, o Senhor encontra a mesma felicidade que o marido experimenta na esposa amada. O Deus distante e transcendente, juiz justo, é substituído agora por um Deus próximo e enamorado. Este simbo-lismo nupcial transferir-se-á para o Novo Testamento (cf. Ef 5, 21-32) e será retomado e desenvolvido pelos Padres da Igreja. Por exemplo, Santo Ambrósio recorda que nesta perspectiva "o marido é Cristo, a esposa é a Igreja, esposa pelo amor, virgem pela pureza intacta" (Exposições do Evan-gelho segundo Lucas: Obras exegéticas X/II, Milão-Roma 1978, pág. 289).

E prossegue, noutra obra sua: "A Igreja é bela. Por isso o Verbo de Deus lhe diz: "És toda bela, minha amiga, e em ti não há motivos de censura" (Cân-tico 4, 7), porque a culpa foi cancelada... Por isso o Senhor Jesus levado pe-lo desejo de um amor tão grande, da beleza das suas vestes e da sua graça, porque agora naqueles que foram purificados já não há qualquer mancha de culpa diz à Igreja: "coloca-me como selo no teu coração, como selo no teu braço" (Cântico 8, 6), ou seja: és bela, minha alma, és toda bela, nada te falta! "Coloca-me como selo no teu coração", para que através dele a tua fé resplandeça na plenitude do sacramento. Resplandeçam também as tuas obras e mostrem a imagem de Deus, à semelhança do qual foste criada" (Os mistérios, n. 49.41: Obras dogmáticas, III, Milão-Roma 1982, págts. 156-157).
(18 de junho de 2003)

Cântico de Isaías (66,10-14)
Consolação e alegria na cidade de Deus

1. Foi tirado da última página do Livro de Isaías o hino que acabámos de escutar, um cântico de alegria dominado pela figura maternal de Jerusalém (cf. 66, 11) e, além disso, pela solicitude amorosa do próprio Deus (cf. v. 13). Os estudiosos da Bíblia consideram que esta secção final, aberta a um futuro esplêndido e festivo, seja o testemunho de uma voz posterior, a de um profeta que celebra o renascimento de Israel depois do intervalo obscuro do exílio na Babilónia. Estamos, pois, no século VI a.C., dois séculos após a missão de Isaías, o grande profeta sob cujo nome se encontra toda a obra inspirada.

Agora, nós seguiremos o fluir jubiloso deste breve cântico, que começa com três imperativos que são precisamente um convite à felicidade: "alegrai-vos", "exultai" e "regozijai-vos" (cf. v. 10). Trata-se de um fio luminoso que percorre frequentemente as últimas páginas do Livro de Isaías: os aflitos de Sião são confortados, coroados e cobertos com o "óleo da alegria" (61, 3); o próprio profeta "com grande alegria rejubila no Senhor, e o seu coração e-xulta no seu Deus" (61, 10); "assim como a esposa faz a felicidade do seu marido, assim Deus vai alegrar-se" pelo seu povo (cf. 62, 5). Na página pre-cedente à que agora é objecto do nosso cântico e da nossa oração, é o pró-prio Senhor que participa na felicidade de Israel, que está prestes a nascer como nação: "Antes se gozará em alegria e felicidade eterna naquelas coisas que vou criar. Olhai, vou criar uma Jerusalém destinada à alegria, e o seu povo ao júbilo. E Jerusalém será a minha alegria, e o meu povo o meu júbi-lo" (65, 18-19).

2. A fonte e a razão desta alegria interior estão na reencontrada vitalidade de Jerusalém, renascida das cinzas da ruína, que se tinha abatido sobre ela quando o exército babilónico a demoliu. Com efeio, fala-se do seu "luto" (66, 10), já deixado para trás.

Como acontece com frequência em várias culturas, a cidade é representada com imagens femininas, aliás, maternais. Quando uma cidade está em paz, é semelhante a um seio protegido e seguro; aliás, é como uma mãe que ama-menta os seus filhos com abundância e ternura (cf. 66, 11). Nesta pers-pectiva, a realidade que a Bíblia chama, com uma expressão feminina, "a filha de Sião", ou seja, Jerusalém, volta a ser uma cidade-mãe que acolhe, nutre e alegra os seus filhos, isto é, os seus habitantes. Em seguida, sobre este cenário de vida e de ternura desce a palavra do Senhor, que tem a tona-lidade de uma bênção (cf. 66, 12-14).

3. Deus recorre a outras imagens ligadas à fecundidade: com efeito, fala de rios e de córregos, ou seja, de águas que simbolizam a vida, da exuberância da vegetação, da prosperidade da terra e dos seus habitantes (cf. 66, 12). A prosperidade de Jerusalém, a sua "paz" (shalom), dádiva generosa de Deus, assegurará aos seus filhos uma existência rodeada de ternura maternal: "Os seus filhinhos serão levados ao colo e acariciados sobre o seu regaço" (ibid.) e esta ternura maternal será a ternura do próprio Deus: "Como uma mãe consola o seu filho, assim Eu vos consolarei" (66, 13).

Assim, o Senhor recorre à metáfora maternal para descrever o seu amor pe-las suas criaturas.

Também antes, no Livro de Isaías, se lê um trecho que atribui a Deus um perfil maternal: "Acaso pode uma mãe esquecer-se do menino que amamen-ta, não ter carinho pelo fruto das suas entranhas? Ainda que ela se esque-cesse dele, Eu nunca te esqueceria" (49, 15). No nosso cântico, as palavras do Senhor, dirigidas a Jerusalém, terminam por retomar o tema da vitalida-de interior, expresso com outra imagem de fertilidade e de energia: a da rel-va fresca, imagem aplicada aos ossos, para indicar o vigor do corpo e da e-xistência (cf. 66, 14).

4. Nesta altura, diante da cidade-mãe, é fácil alargar o nosso olhar a ponto de contemplar o perfil da Igreja, virgem e mãe fecunda. Terminemos a nos-sa meditação sobre a Jerusalém renascida, com uma reflexão de Santo Am-brósio, tirada da sua obra As virgens: "A Santa Igreja, é imaculada na sua união marital: fecunda pelos seus partos, é virgem pela sua castidade, mas mãe pelos filhos que gera. Por conseguinte, nós nascemos de uma virgem, que concebeu não por obra do homem, mas por obra do Espírito. Portanto, nascemos de uma virgem, não entre as dores físicas, mas no meio do júbilo dos anjos. Somos alimentados por uma virgem, não com o leite do corpo, mas com o leite de que fala o Apóstolo, quando diz ter amamentado, na ida-de frágil, o adolescente povo de Deus".

"Que mulher desposada tem mais filhos do que a Santa Igreja? Ela é virgem pela santidade que recebe nos sacramentos e é mãe dos povos. A sua fecun-didade é confirmada também pelas Escrituras, que dizem: "São mais nume-rosos os filhos da desamparada, do que os da mulher casada" (Is 54, 1; Gl 4, 27); a nossa mãe não tem marido, mas um esposo, porque tanto a Igreja nos povos como a alma nos indivíduos imunes a qualquer infidelidade, fecundas na vida do espírito sem que faltem ao pudor, desposam o Verbo de Deus co-mo um esposo eterno" (I, 31: SAEMO 14/1, pp. 132-133).
(16 de julho de 2003)

Cântico de Jeremias (14,17-21)
A lamentação do povo em tempos de fome e de guerra

1. O cântico que o profeta Jeremias, do seu horizonte histórico, eleva ao céu (cf. 14, 17-21), é de amargura e de sofrimento. Ouvimo-lo ressoar agora co-mo invocação, enquanto a Liturgia das Laudes o propõe no dia em que co-memora a morte do Senhor, a sexta-feira. O contexto que dá origem a esta lamentação é representado por um flagelo que muitas vezes atinge a terra do Próximo Oriente: a seca. Mas a este drama natural o profeta junta outro não menos aterrador, a tragédia da guerra: "Se saio aos campos, eis que en-contro homens atravessados pela espada; se regresso à cidade, eis que vejo outros dizimados pela tortura da fome" (v. 18). Infelizmente, a descrição é tragicamente actual em muitas regiões do nosso planeta.

2. Jeremias entra em cena com o rosto molhado de lágrimas: o seu choro é um choro ininterrupto pela "filha do seu povo", isto é, por Jerusalém. De facto, segundo um símbolo bíblico muito conhecido, a cidade é representada com uma imagem feminina, "a filha de Sião". O profeta participa profunda-mente na "calamidade" e na "ferida mortal" do seu povo (v. 17). Muitas ve-zes as suas palavras estão marcadas pelo sofrimento e pelas lágrimas, por-que Israel não se deixa envolver na mensagem misteriosa que o sofrimento encerra em si. Noutra página, Jeremias exclama: "Se não ouvirdes isto, a minha alma chorará em segredo por causa do vosso orgulho, e os meus o-lhos chorarão amargamente, por causa da deportação do rebanho do Se-nhor" (13, 17).

3. Devemos procurar o motivo da invocação dilacerante do profeta, como se dizia, em dois acontecimentos trágicos: a espada e a fome, isto é, a guerra e a carestia (cf. Jer 14, 18). Por conseguinte, encontramo-nos numa situação histórica atormentada e é significativo o retrato do profeta e do sacerdote, os guardas da Palavra do Senhor, os quais "vagueiam pela terra sem nada com-preenderem" (ibid.).

A segunda parte do Cântico (cf. vv. 19-21) já não é uma lamentação indivi-dual, na primeira pessoa do singular, mas uma súplica colectiva dirigida a Deus: "Por que nos feristes sem esperança de cura?" (v. 19). Além da espa-da e da fome, há, de facto, uma tragédia maior, a do silêncio de Deus, que já não se revela e parece ter-se fechado no seu céu, quase desgotoso pelo agir da humanidade. As perguntas que lhe são dirigidas tornam-se, por isso, ten-sas e explícitas em sentido tipicamente religioso: "Acaso, rejeitaste inteira-mente Judá? A Vossa alma aborreceu Sião?" (v. 19). Agora, sentimo-nos sozinhos e abandonados, privados de paz, de salvação e de esperança. O po-vo, abandonado a si mesmo, encontra-se quase perdido e invadido pelo terror.

Não é porventura esta solidão existencial a fonte profunda de tanta insatis-fação, com que nos deparamos também nos nossos dias? Tanta insegurança e tantas reacções desconsideradas têm a sua origem no facto de terem aban-donado Deus, rochedo de salvação.

4. Neste ponto verifica-se a mudança: o povo volta para Deus e dirige-lhe uma intensa oração. Reconhece antes de mais o próprio pecado com uma breve mas sentida confissão da culpa: "Senhor! Conhecemos a nossa malí-cia... Pecámos realmente contra Vós" (v. 20). O silêncio de Deus era, por conseguinte, provocado pela recusa do homem. Se o povo se converte e vol-ta para o Senhor, também Deus se mostrará disponível para ir ao seu encon-tro e para o abraçar.

No final, o profeta usa duas palavras fundamentais: a "recordação" e a "a-liança" (v. 21). Deus é convidado pelo seu povo a "recordar-se", ou seja, a retomar a continuidade da sua benevolência generosa, manifestada tantas vezes no passado com intervenções decisivas para salvar Israel. Deus é con-vidado a recordar-se de que ele se uniu ao seu povo através de uma aliança de fidelidade e de amor. Precisamente devido a esta aliança, o povo pode esperar que o Senhor há-de intervir para o libertar e salvar. O compromisso por ele assumido, a honra do seu "nome", o facto da sua presença no tem-plo, "o trono da sua glória", estimulam Deus depois do juízo pelo pecado e pelo silêncio a estar de novo próximo do seu povo para lhe dar de novo vi-da, paz e alegria.

Por conseguinte, juntamente com os Israelitas, também nós podemos ter a certeza de que o Senhor não nos abandona para sempre mas, depois de todas as provas purificadoras, ele volta a fazer "resplandecer a Sua face sobre ti e é benevolente... e concede a paz" (cf. 6, 25-26).

5. Em conclusão, podemos comparar com a súplica de Jeremias uma co-movedora exortação dirigida por São Cipriano aos cristãos de Cartago, Bis-po daquela cidade no terceiro século. Em tempos de perseguição, São Ci-priano exorta os seus fiéis a implorar o Senhor. Esta imploração não é idên-tica à súplica do profeta, porque não contém uma confissão dos pecados, não sendo a perseguição um castigo pelos pecados, mas uma participação na paixão de Cristo. De igual modo, trata-se de uma imploração também pre-mente como a de Jeremias. "Imploremos o Senhor, diz São Cipriano, com sinceridade e em harmonia, sem nunca deixar de pedir e confiantes de obter.
Imploremo-lo gemendo e chorando, como é justo que implorem os que são colocados entre os desventurados que choram e outros que temem as des-venturas, entre os numerosos prostrados pelo massacre e os poucos que per-manecem em pé. Peçamos que nos seja restituída depressa a paz, que seja-mos ajudados nos nossos esconderijos e nos perigos, que se cumpra o que o Senhor se digna mostrar aos seus servos: a restauração da sua Igreja, a segu-rança da nossa salvação eterna, o céu azul depois da chuva, a luz depois das trevas, a tranquilidade depois das tempestades e os remoinhos, a ajuda pie-dosa do seu amor de pai, as grandezas que conhecemos da majestade divi-na" (Epístola 11, 8, em S. Pricoco M. Simonetti, A oração dos cristãos, Mi-lão 2000, pp. 138-139).
(11 de dezembro de 2002)

Cântico de Jeremias (31)
Deus liberta e reúne o seu povo na alegria

1. "Nações, ouvi a palavra do Senhor! Levai a notícia às ilhas longínquas" (Jr 31, 10). Qual é a notícia que está para ser anunciada com estas solenes palavras de Jeremias, que ouvimos no cântico que há pouco proclamámos? Trata-se de uma notícia confortadora, e não é ocasional que os capítulos que a contêm (cf. 30-31), sejam qualificados como "Livro da consolação". O anúncio refere-se directamente ao antigo Israel, mas já deixa de alguma for-ma entrever a mensagem evangélica.

Eis o centro deste anúncio: "Porque o Senhor resgatou Jacob e o libertou das mãos do seu dominador" (Jr 31, 11). O quadro histórico destas palavras é constituído por um momento de esperança experimentado pelo povo de Deus, a cerca um século desde quando o Norte do País, em 722, fora ocupa-do pelo poder assírio. Agora, no tempo do profeta, a reforma religiosa do rei Josias exprime a volta do povo à aliança com Deus a faz surgir a esperança de que o tempo do castigo tenha terminado. Começa a delinear-se a pers-pectiva de que o Norte possa voltar à liberdade e Israel e Judá se recom-ponham na unidade. Todos, também as "ilhas mais distantes", deverão ser testemunhas deste acontecimento religioso: Deus, pastor de Israel, está para intervir. Ele, que permitiu a dispersão do seu povo, agora vem reuni-lo.

2. O convite à alegria é desenvolvido com imagens que empenham profun-damente. É um oráculo que faz sonhar! Delineia um futuro em que os exila-dos "virão e cantarão", e encontrarão não só o templo do Senhor, mas tam-bém todos os bens: o trigo, o vinho, o azeite, o pequeno rebanho e o gado. A Bíblia não conhece um espiritualismo abstracto. A alegria prometida não se refere apenas ao íntimo do homem, porque o Senhor cuida da vida humana em todas as suas dimensões. O próprio Jesus não deixará de realçar este as-pecto, convidando os seus discípulos a terem confiança na Providência tam-bém para as necessidades materiais (cf. Mt 6, 25-34). O nosso Cântico in-siste sobre esta perspectiva: Deus quer fazer com que todos os homens se-jam felizes. A condição que ele prepara para os seus filhos é expressa pelo símbolo do "jardim bem regado" (Jr 31, 12), imagem de vigor e fecundi-dade. O luto converte-se em festa, ficamos saciados de delícias (cf. v. 14) e repletos de bens, a ponto que é espontâneo cantar e dançar. Será uma alegria irreprimível, uma alegria do povo.

3. Os acontecimentos historicos dizem-nos que este sonho não se realizou naquela época. Mas, não certamente por Deus não ter cumprido a sua pro-messa: desta desilusão foi responsável mais uma vez o povo, com a sua infi-delidade. O mesmo livro de Jeremias encarrega-se de o mostrar com o de-senvolvimento de uma profecia que se torna difícil e dura, e leva progressi-vamente a algumas das fases mais tristes da história de Israel. Não só os exilados do Norte não voltarão, mas a própria Judeia será ocupada por Na-bucodonosor em 587 a. C.. Então começarão dias amargos, quando, junto dos rios da Babilónia, se deverão suspender as harpas (cf. Sl 136, 2). Não poderá haver no coração qualquer disposição para cantar para satisfazer os algozes; não se pode rejubilar, se somos arrancados à força da pátria, a terra onde Deus estabeleceu a sua habitação.

4. Mas, todavia, a alegria que caracteriza este oráculo não perde o seu sig-nificado. De facto, permanece firme a motivação última sobre a qual se ba-seia, e que é expressa sobretudo por alguns versículos significativos, que precedem os que são propostos pela Liturgia das Horas. É necessário tê-los bem presentes, quando se lêem as expressões de alegria do nosso Cântico. Descrevem em termos vibrantes o amor de Deus pelo seu Povo. Indicando um pacto irrevogável:

"Amei-te com um amor eterno" (Jr 31, 3). Cantam a alegria paterna de um Deus que chama a Efraim seu primogénito e o cobre de ternura: "Partiram em lágrimas, conduzi-los-ei em grande consolação, por caminhos direitos em que não tropeçarão; porque sou como um pai para Israel" (Jr 31, 9). Mesmo se a promessa não pôde ser então realizada por falta de empenho da parte dos filhos, o amor do Pai permanece na sua total e comovedora ternu-ra.
5. Este amor constitui o fio de ouro que relaciona as fases da história de Israel, com as suas alegrias e tristezas, com os seus êxitos e fracassos. Deus não deixa de ser amoroso, e o próprio castigo é a sua expressão, assumindo um significado pedagógico e salvífico.

Na rocha firme deste amor, o convite à alegria do nosso Cântico evoca um futuro de Deus que, mesmo se é adiado, virá mais cedo ou mais tarde, ape-sar de todas as fraquezas do homem. Este futuro realizou-se na Nova Alian-ça com a morte e ressurreição de Cristo e com o dom do Espírito. Contudo, ele terá a sua realização plena na volta escatológica do Senhor. À luz destas certezas, o "sonho" de Jeremias permanece uma oportunidade histórica real, condicionada pela fidelidade dos homens, e sobretudo uma meta final, ga-rantida pela fidelidade de Deus e já inaugurada pelo seu amor em Cristo.

Por conseguinte, ao ler este oráculo de Jeremias, devemos deixar ressoar em nós o evangelho, a bonita notícia promulgada por Cristo, na sinagoga de Nazaré (Cf. Lc 4, 16-21). A vida cristã é chamada a ser uma verdadeira "alegria", que só pode ser ameaçada pelos nossos pecados. Ao fazer-nos re-citar estas palavras de Jeremias, a Liturgia das Horas convida-nos a apoiar a nossa vida em Cristo, o nosso Redentor (cf. Jr 31, 11) e a procurar nele o segredo da verdadeira alegria na nossa vida pessoal e comunitária.
(10 de outubro de 2001)

Cântico de Daniel (3,26-27.29.34-41)
Oração de Azarias na fornalha

1. O Cântico que agora foi entoado pertence ao texto grego do Livro de Da-niel e apresenta-se como súplica elevada ao Senhor com fervor e sincerida-de. É a voz de Israel que está a viver a difícil vicissitude do exílio e da dias-pora entre os povos. De facto, quem entoa o cântico é um hebreu, Azarias, inserido no horizonte babilónico no tempo do exílio de Israel, depois da destruição de Jerusalém por obra do rei Nabucodonosor.

Azarias, com outros dois fiéis hebreus, está "no meio do fogo" (Dn 3, 25), como um mártir pronto a enfrentar a morte para não atraiçoar a sua cons-ciência e a sua fé. Foi condenado à morte por se ter recusado a adorar a es-tátua imperial.
2. A perseguição é considerada por este Cântico uma pena justa com que Deus purifica o povo pecador: "Foi por efeito dum juízo equitativo que nos infligistes tudo isto confessa Azarias por causa dos nossos pecados" (v. 28). Estamos assim na presença de uma oração penitencial, que não termina no desencorajamento ou no medo, mas na esperança.

Sem dúvida, o ponto de partida é amargo, a desolação é grave, a prova é pe-sada, o juízo divino sobre o pecado do povo é severo: "Agora não há nem príncipe, nem profeta, nem chefe, nem holocausto, nem sacrifício, nem o-blação, nem incenso, nem mesmo um local para Vos oferecer as nossas pri-mícias e encontrar misericórdia" (v. 38). O templo de Sião está destruído e parece que o Senhor já não habita no meio do seu povo.

3. Na situação trágica do presente, a esperança procura a sua raiz no pas-sado, ou seja, nas promessas feitas aos pais. Por conseguinte, remonta-se a Abraão, Isaac e Jacob (cf. v. 35), aos quais Deus tinha garantido bênçãos e fecundidade, terra e grandeza, vida e paz. Deus é fiel e nunca faltará às suas promessas. Mesmo se a justiça exige que Israel seja punido devido às suas culpas, permanece a certeza de que a última palavra será a da misericórdia e do perdão. Já o profeta Ezequiel referia estas palavras do Senhor: "Por-ventura comprazer-Me-ei com a morte do pecador, oráculo do Senhor Deus, e não com o facto de ele se converter e viver?... Pois Eu não me comprazo com a morte de quem quer que seja" (Ez 18, 23.32). Sem dúvida, agora é o tempo da humilhação: "estamos reduzidos a nada diante das nações, esta-mos hoje humilhados em face de toda a terra, por causa dos nossos peca-dos" (Dn 3, 37). Contudo a expectativa não é a morte, mas uma vida nova, depois da purificação.

4. O orante aproxima-se do Senhor oferecendo-lhe o sacrifício mais precio-so e agradável: o "coração constrangido" e o "espírito humilhado" (v. 39; cf. Sl 50, 19). É precisamente o centro da existência, o eu renovado da pro-va é oferecido a Deus, para que o receba em sinal de conversão e de consa-gração ao bem.

Com esta disposição interior acaba o receio, terminam a confusão e a ver-gonha (cf. Dn 3, 40), e o espírito abre-se à confiança num futuro melhor, quando se realizarem as promessas feitas aos pais.

A frase final da súplica de Azarias, do modo como é proposta pela liturgia, é de grande impacto emotivo e de profunda intensidade espiritual: "É de to-do o coração que agora vos seguimos, que Vos veneramos, que procuramos a Vossa face" (v. 41). Tem-se o eco de outro Salmo: "O meu coração pres-sente os teus dizeres: "Procurai a minha face!" É a tua face, Senhor, que eu procuro" (Sl 26, 8).

Já chegou o momento em que o nosso caminhar está a abandonar as vias perversas, as veredas sinuosas e as estradas tortuosas (cf. Pr 2, 15). Enca-minhamo-nos para seguir o Senhor, estimulados pelo desejo de encontrar o seu rosto. E ele não está irado, mas cheio de amor, como se revelou no pai misericordioso em relação ao filho pródigo (cf. Lc 15, 11-32).

5. Concluímos a nossa reflexão sobre o Cântico de Azarias com a oração es-crita por São Máximo, o Confessor, no seu Discurso ascético (37-39), para o qual se inspira precisamente no texto do profeta Daniel. "Pelo teu nome, Senhor, não nos abandones para sempre, não disperses a tua aliança e não afastes a tua misericórdia de nós (cf. Dn 3, 34-35) pela tua piedade, Pai nosso que estás no céu, pela compaixão do teu Filho unigénito e pela mise-ricórdia do teu Santo Espírito... Ouve a nossa súplica, ó Senhor, e não nos abandones para sempre. Nós não confiamos nas nossas obras de justiça, mas na tua piedade, mediante a qual conservas a nossa estirpe... Não desprezes a nossa indignidade, mas tem compaixão de nós segundo a tua grande pieda-de, e segundo a plenitude da tua misericórdia purifica-nos dos nossos peca-dos, para que, sem condenações, nos aproximemos da tua santa glória e se-jamos considerados dignos da protecção do teu Filho unigénito".

São Máximo conclui: "Sim, ó Senhor pai omnipotente, atende a nossa súpli-ca, porque nós não reconhecemos mais nenhum além de ti" (Humanidade e divindade de Cristo, Roma 1979, págs. 51-52).
(14 de maio de 2003)

Cântico de Ezequiel (36)
Deus renovará o seu povo

1. O Cântico que agora ressoou aos nossos ouvidos, foi composto por um dos grandes profetas de Israel. Trata-se de Ezequiel, testemunha de uma das épocas mais trágicas que o povo hebraico viveu: a época da queda do reino de Judá e da sua capital, Jerusalém, a que se seguiu a amarga vicissitude do exílio na Babilónia (VI século a.C.). É tirado do capítulo 36 de Ezequiel o trecho que passou a fazer parte da oração cristã das Laudes.

O contexto desta página, transformada pela liturgia em hino, quer captar o sentido profundo da tragédia vivida pelo povo naqueles anos. O pecado de idolatria tinha contaminado a terra dada em herança pelo Senhor a Israel. Ele, mais do que outras causas, é responsável definitivamente pela perda da pátria e da dispersão entre as nações. De facto, Deus não permanece indife-rente face ao bem e ao mal; ele entra misteriosamente em acção na história da humanidade com o seu julgamento que, mais cedo ou mais tarde, há-de desmascarar o mal, defender as vítimas e indicar o caminho da justiça.

2. Mas a meta da acção de Deus nunca é a ruína, a condenação pura e sim-ples, a aniquilação do pecador. É o mesmo profeta Ezequiel que refere estas palavras divinas: "Porventura comprazer-Me-ei com a morte do pecador... e não com o facto de ele se converter e viver?... Pois eu não me comprazo com a morte de quem quer que seja... Convertei-vos e vivei" (18, 23.32). Nesta perspectiva consegue-se compreender o significado do nosso Cântico, repleto de esperança e de salvação. Depois da purificação mediante a prova e o sofrimento, está prestes a surgir o alvorecer de uma nova era, que já o profeta Jeremias tinha anunciado quando falou de uma "nova aliança" entre o Senhor e Israel (cf. 31, 31-34). O próprio Ezequiel, no capítulo 11 do seu livro profético, tinha proclamado estas palavras divinas: "Dar-lhes-ei um coração novo e infundirei no seu íntimo um espírito novo. Arrancarei da sua carne o coração de pedra e dar-lhes-ei um coração de carne, para que cami-nhem segundo os meus preceitos e observem as minhas leis e as cumpram. Eles serão o meu povo e eu serei o seu Deus" (11, 19-20).

No nosso Cântico (cf. Ez 36, 24-28) o profeta retoma este oráculo e comple-ta-o com um esclarecimento maravilhoso: o "espírito novo" dado por Deus aos filhos do seu povo será o seu Espírito, o Espírito do próprio Deus (cf. v. 27).

3. Por conseguinte, é anunciada não só uma purificação, expressa através do sinal da água que lava as impurezas da consciência. Não se tem apenas o as-pecto, mesmo se é necessário, da libertação do mal e do pecado (cf. v. 25). A mensagem de Ezequiel realça sobretudo outro aspecto muito mais sur-preendente. De facto, a humanidade está destinada a nascer para uma nova existência. O primeiro símbolo é o do "coração" que, na linguagem bíblica remete para a interioridade, para a consciência pessoal. Ao nosso peito será arrancado o "coração de pedra", gelado e insensível, sinal da obtinação no mal. Nele Deus inserirá um "coração de carne", ou seja, uma fonte de vida e de amor (cf. v. 26). O espírito vital, que na criação nos tinha tornado cria-turas vivas (cf. Gn 2, 7) será substituído pela nova economia de graça do Espírito Santo que nos ampara, nos move, nos guia para a luz da verdade e derrama "o amor de Deus nos nossos corações" (Rm 5, 5).

4. Assim, surgirá aquela "nova criação" que será descrita por São Paulo (cf. 2 Cor 5, 17; Gl 6, 15), quando afirmará a morte em nós do "homem velho", do "corpo do pecado", porque "já não somos escravos do pecado" mas cria-turas novas, transformadas pelo Espírito de Cristo ressuscitado: "Despistes-vos do homem velho com as suas obras e revestistes-vos do novo, que não cessa de se renovar à imagem d'Aquele que o criou" (Col 3, 9-10; cf. Rm 6, 6). O profeta Ezequiel anuncia um novo povo, que o Novo Testamento verá comvocado pelo próprio Deus através da obra do seu Filho. Esta comuni-dade com o "coração de carne" e com o "espírito" infundido conhecerá uma presença viva e operante do próprio Deus, que animará os crentes agindo neles com a sua graça eficaz. "Aquele que observa os Seus mandamentos dirá São João permanece em Deus e Deus nele. E nisto conhecemos que Ele permanece em nós pelo Espírito que nos deu" (1 Jo 3, 24).

5. Concluímos a nossa meditação sobre o Cântico de Ezequiel ouvindo São Cirilo de Jerusalém que, na sua Terceira catequese baptismal, entrevê na pá-gina profética o povo do baptismo cristão.

Com o baptismo recorda são perdoados todos os pecados, até as transgres-sões mais graves. Por isso, o Bispo se dirige aos seus ouvintes: "Tem con-fiança, Jerusalem, o Senhor eliminará as tuas iniquidades (cf. Sof 3, 14-15). O Senhor lavará as vossas iniquidades...: "derramará sobre vós água pura e sereis purificados de todas as manchas e pecados" (Ez 36, 25). Os anjos fazem-vos coroa, exultantes, e depressa cantarão: "Quem é esta, que sobe o deserto, apoiada no seu amado?" (Ct 8, 5). Ela, de facto, é a alma, outrora escrava e agora livre de chamar ao seu Senhor irmão adoptivo, que açolhen-do o seu propósito sincero lhe diz: "Oh, como és formosa, minha amada, co-mo és formosa!" (Ct 4, 1)... Assim exclama ele aludindo aos fru-tos de uma confissão feita com uma consciência recta... Queira Deus que to-dos... man-tenhais viva a recordação destas palavras e delas tireis benefícios transpon-do-as em obras santas para vos apresentardes irrepreensíveis ao Esposo mis-tico e para obterdes do Pai o perdão dos pecados" (n. 16: As catequeses, Roma 1993, pág. 79-80).
(10 de setembro de 2003)

Cântico de Daniel (3,52-57)
Toda a criatura louve ao Senhor

1. "Obras do Senhor, bendizei todas o Senhor" (Dn 3, 57). Uma serenidade cósmica invade este Cântico tirado do livro de Daniel, que a Liturgia das Horas propõe para as Laudes do Domingo na primeira e terceira semanas. E esta maravilhosa oração de ladainha condiz bem com o Dies Domini, o Dia do Senhor, que em Cristo ressuscitado nos faz contemplar o ápice do desíg-nio de Deus sobre o cosmos e a história. Com efeito, n'Ele, Alfa e Ómega, Princípio e Fim da história (cf. Ap 22, 13), a própria criação adquire o senti-do completo porque, como recorda João no prólogo do seu Evangelho "tudo começou a existir por meio d'Ele" (Jo 1, 3). Na Ressurreição de Cristo en-contra-se o vértice da história da salvação, abrindo a vicissitude humana pa-ra o dom do Espírito e da adopção filial, à espera do retorno do Esposo divi-no, que entregará o mundo a Deus Pai (cf. 1 Cor 15, 24).

2. Neste trecho em forma de ladainha, são como que passadas em revista to-das as coisas. O olhar volta-se para o sol, a lua e os astros; detém-se na i-mensidão das águas, eleva-se rumo às montanhas e contempla as várias si-tuações atmosféricas; passa do calor ao frio, da luz às trevas; considera o mundo mineral e vegetal, analisando as diversas espécies animais. Depois, o apelo torna-se universal: chama ao princípio os anjos de Deus, atinge todos os "filhos do homem", mas empenha de forma especial o povo de Deus, Is-rael, os seus sacerdotes, os justos. É um coro imenso, uma sinfonia em que as várias vozes elevam o seu cântico a Deus, Criador do universo e Senhor da história. Recitado à luz da revelação cristã, ele dirige-se a Deus trinitário, como a liturgia nos convida a fazer, acrescentando ao Cântico uma fórmula trinitária: "Bendigamos ao Pai, ao Filho e ao Espírito Santo".

3. De certa forma, neste Cântico reflecte-se a alma religiosa universal, que no mundo vislumbra os vestígios de Deus, elevando-se à contemplação do Criador. Mas no contexto do livro de Daniel, o hino apresenta-se como ac-ção de graças recitado por três jovens israelitas Ananias, Azarias e Misael condenados a morrer queimados numa fornalha, por se terem recusado a adorar a estátua de ouro de Nabucodonosor, mas milagrosamente preserva-dos das chamas. Por detrás deste acontecimento há a singular história de salvação, em que Deus escolhe Israel como seu povo e com ele faz uma a-liança. Os três jovens israelitas desejam ser fiéis precisamente a esta alian-ça, mesmo ao preço de irem ao encontro do martírio na fornalha ardente. A sua fidelidade encontra-se com a fidelidade de Deus, que envia um anjo pa-ra afastar deles as chamas (cf. Dn 3, 49).

Desta forma, este Cântico coloca-se na linha dos cantos de louvor por um perigo evitado, contidos no Antigo Testamento. Entre eles, é famoso o cân-tico de vitória que aparece no capítulo 15 do Êxodo, onde os antigos he-breus exprimem o seu reconhecimento ao Senhor por aquela noite em que seriam inevitavelmente aniquilados pelo exército do faraó, se o Senhor não lhes tivesse aberto um caminho entre as águas, fazendo precipitar "no mar o cavalo e o cavaleiro" (v. 1).

4. Não é por acaso que, na solene vigília pascal, a liturgia nos faz repetir to-dos os anos o hino cantado pelos israelitas no Êxodo. Aquele caminho que lhes foi aberto anunciava profeticamente a nova senda que Cristo ressus-citado inaugurou para a humanidade na noite santa da sua Ressurreição dos mortos. A nossa passagem simbólica através das águas baptismais permite-nos reviver uma experiência análoga de passagem da morte para a vida, gra-ças à vitória sobre a morte, que Jesus alcançou em favor de todos nós.

Ao repetirmos na liturgia dominical das Laudes o Cântico dos três jovens israelitas, nós discípulos de Cristo queremos colocar-nos na mesma onda de gratidão pelas grandes obras realizadas por Deus, tanto na criação como, so-bretudo, no mistério pascal.

Com efeito, o cristão vislumbra aqui uma relação entre a libertação dos três jovens, de quem nos fala o Cântico, e a Ressurreição de Jesus. Nesta última, os Actos dos Apóstolos vêem realizada a oração dos fiéis que, como o Sal-mista, cantam com confiança: "Tu não abandonarás a minha alma na habita-ção dos mortos, nem permitirás que o teu Santo conheça a decomposição" (Act 2, 27; Sl 15, 10).

A relação deste Cântico com a Ressurreição é bastante tradicional. Existem antiquíssimos testemunhos da presença deste hino na oração do Dia do Se-nhor, que é a Páscoa semanal dos cristãos. Além disso, as catacumbas roma-nas conservam restos iconográficos em que se aparecem os três jovens que rezam incólumes no meio das chamas, testemunhando desta maneira a efi-cácia da oração e a certeza da intervenção do Senhor.
5. "Bendito sois Vós no firmamento dos céus, digno de louvor e glória eter-nos!" (Dn 3, 56). Ao entoar este hino na manhã de Domingo, o cristão sen-te-se grato não só pelo dom da criação, mas também porque é destinatário do cuidado paterno de Deus, que em Cristo o elevou à dignidade de filho.

Um cuidado paternal que nos faz considerar com um novo olhar a própria criação e apreciar a sua beleza, na qual se entrevê, como que em filigrana, o amor de Deus. É com estes sentimentos que Francisco de Assis contempla-va a criação e elevava o seu louvor a Deus, nascente última de toda a bele-za. Torna-se espontâneo imaginar que a exaltação deste texto bíblico ecoava na sua alma quando, em São Damião, depois de ter alcançado o vértice do sofrimento no corpo e no espírito, compôs o "Cântico do irmão sol" (cf. Fontes Franciscanas, 263).
(2 de maio de 2001)

Cântico de Daniel (3,52-57)
Todas as criaturas louvem ao Senhor

1. O cântico que acabou de ser proclamado é constituído pela primeira parte de um longo e bonito hino que se encontra inserido na tradução grega do li-vro de Daniel. Cantam-no três jovens hebreus lançados numa fornalha por terem recusado adorar a estátua do rei de Babilónia, Nabucodonosor. Outra parte do mesmo cântico é proposto pela Liturgia das Horas para as Laudes do domingo, na primeira e na terceira semana do Saltério litúrgico.

O livro de Daniel, como se sabe, reflecte os fermentos, as esperanças e tam-bém as expectativas apocalípticas do povo eleito, o qual, na época dos Ma-cabeus (II século a. C.) lutava para poder viver de acordo com a Lei dada por Deus.

Na fornalha, os três jovens, milagrosamente preservados das chamas, can-tam um hino de louvor dirigido a Deus. Este hino é semelhante a uma ladai-nha, repetitiva e, ao mesmo tempo, nova: as suas invocações elevam-se até Deus como espirais de incenso, que percorrem o espaço em formas seme-lhantes mas nunca iguais. A oração não teme a repetição, como o apaixo-nado não hesita declarar infinitas vezes à amada todo o seu afecto. Insistir nas mesmas questões é sinal de intensidade e de numerosas formas nos sen-timentos, nas pulsações interiores e nos afectos.
2. Ouvimos proclamar o início deste hino cósmico, contido no terceiro capítulo de Daniel, nos versículos 52-57. É a introdução, que precede o grandioso desfile das criaturas envolvidas no louvor. Um olhar panorâmico para todo o cântico no seu prolongamento litânico, faz-nos descobrir uma sucessão de elementos que constituem o enredo de todo o hino. Ele começa com seis invocações dirigidas directamente a Deus; a elas, segue-se um ape-lo universal a "todas as obras do Senhor", para que abram os seus lábios i-maginários ao louvor (cf. v. 57).

É esta a parte sobre a qual hoje reflectimos e que a liturgia propõe para as Laudes do domingo da segunda semana. Logo a seguir, o cântico prolonga-se convocando todas as criaturas do céu e da terra para louvar e engrandecer o seu Senhor.

3. O nosso trecho inicial será retomado outra vez pela liturgia, nas Laudes do domingo da quarta semana. Por isso, escolheremos agora apenas alguns elementos para a nossa reflexão. O primeiro é o convite ao louvor: "Bendi-to, sois, Senhor...", que, no final, se transforma em "Bendizei...!".

Existem na Bíblia duas formas de bênção, que se entrelaçam entre si. Por um lado, encontra-se a que vem de Deus: o Senhor abençoa o seu povo (cf. Nm 6, 24-27). É uma bênção eficaz, fonte de fecundidade, felicidade e pros-peridade. Por outro, encontra-se o louvor que da terra se eleva para o céu. O homem, beneficiado pela generosidade divina, bendiz a Deus, louvando-o, agradecendo-lhe, exclamando: "Bendiz, ó minha alma, o Senhor!" (Sl 102, 1; 103, 1).

A bênção divina é muitas vezes mediada pelos sacerdotes (cf. Nm 6, 22-23.27; Sir 50, 20-21) através da imposição das mãos; ao contrário, o louvor humano é expresso no hino litúrgico, que a assembleia dos fiéis eleva ao Se-nhor.

4. Outro elemento que consideramos no âmbito do trecho agora proposto à nossa meditação é constituído pela antífona. Poderíamos imaginar que o so-lista, no templo repleto de povo, entoasse o louvor: "Bendito sois vós, Se-nhor...", enumerando as várias maravilhas divinas, enquanto a assembleia dos fiéis repetia constantemente a fórmula: "Sois digno de louvor e de gló-ria pelos séculos dos séculos". Era o que já acontecia com o Salmo 135, o chamado "Grande Hallel", ou seja, o grande louvor, onde o povo repetia: "É eterna a vossa misericórdia", enquanto um solista enumerava os vários actos de salvação realizados pelo Senhor em favor do seu povo.

Objecto de louvor, no nosso Salmo, é em primeiro lugar o nome "glorioso e santo" de Deus, cuja proclamação ressoa no templo, também ele "santo glo-rioso". Os sacerdotes e o povo, enquanto contemplam, na fé, Deus que está sentado "no trono do Seu reino", sentem o Seu olhar sobre si, que "penetra os abismos" e esta consciência faz surgir do seu coração o louvor. "Bendi-to... bendito...". Deus, que "está sentado em cima dos querubins" e tem co-mo habitação o "firmamento do céu", contudo está próximo do seu povo, que por isso se sente protegido e seguro.

5. A proposta deste cântico repetida na manhã de domingo, a Páscoa sema-nal dos cristãos, é um convite a abrir os olhos diante da nova criação que te-ve origem precisamente com a ressurreição de Jesus. Gregório de Nissa, um Padre da Igreja grega do quarto século, explica que com a Páscoa do Senhor "são criados um novo céu e uma nova terra... é plasmado um homem dife-rente renovado à imagem do seu criador através do nascimento do alto" (cf. Jo 3, 3.7). E continua: "Assim como quem olha para o mundo sensível de-duz por meio das coisas visíveis a beleza invisível... assim quem olha para este novo mundo da criação eclesial vê nele Aquele que se tornou tudo em todos, orientando a mente pela mão, através das coisas compreensíveis da nossa natureza racional, isto é, para quem supera a compreensão humana" (Langerbeck H., Gregorii Nysseni Opera, VI, 1-22 passim, pág. 385).

Por conseguinte, ao entoar este cântico, o crente cristão é convidado a con-templar o mundo da primeira criação, entrevendo nele o perfil da segunda, inaugurada com a morte e a ressurreição do Senhor Jesus. E esta contempla-ção conduz a todos pela mão, para entrarem, quase dançando de alegria, na única Igreja de Cristo.
(12 de dezembro de 2001)

Cântico de Daniel (3)
Todas as criaturas louvem ao Senhor

1. No capítulo 3 do Livro de Daniel encontra-se inserida uma luminosa ora-ção litânica, um verdadeiro e peculiar Cântico das criaturas, que a Liturgia das Laudes nos propõe várias vezes, em diversos fragmentos.
Ouvimos agora a parte fundamental, um grandioso coro cósmico, emoldura-do por duas antífonas que o resumem: "Bendito sois no firmamento dos céus, digno de louvor e glória eternos! Obras do Senhor, bendizei todas o Senhor, a ele glória e louvor eterno!" (vv. 56-57).

Entre estas duas aclamações desenvolve-se um solene hino de louvor, que se exprime com o convite repetido "bendizei": formalmente, trata-se apenas de um convite a bendizer a Deus dirigido a toda a criação; na realidade, tra-ta-se de um cântico de agradecimento que os fiéis elevam ao Senhor por to-das as maravilhas do universo. O homem faz-se voz da criação inteira para louvar e agradecer a Deus.

2. Este hino, cantado por três jovens hebreus que convidam todas as criatu-ras a louvar a Deus, nasce numa situação dramática. Os três jovens, perse-guidos pelo soberano da Babilónia, encontram-se imersos na fornalha ar-dente devido à sua fé. E contudo, mesmo se estavam prestes a sofrer o mar-tírio, eles não hesitam em cantar, em rejubilar, em louvar. O sofrimento áspero e violento da prova desaparece, parece que se dissolve na presença da oração e da contemplação.

É precisamente esta atitude de abandono confiante que suscita a intervenção divina.

De facto, como afirma a sugestiva narração de Daniel, "O anjo do Senhor, porém, tinha descido até Azarias e seus companheiros, na fornalha, e afasta-va o fogo. Mudou o lugar da fornalha em lugar onde soprava como que uma brisa matinal: o fogo nem sequer os tocou e nem lhes causou qualquer mal nem a menor dor" (vv. 49-50). Os pesadelos desaparecem como o nevoeiro ao sol, os receios dissipam-se, o sofrimento é eliminado quando todo o ser humano se torna louvor e confiança, expectativa e esperança. Eis a força da oração quando é pura, intensa, abandono total a Deus, providencial e reden-tor.

3. O cântico dos três jovens faz desfilar diante dos nossos olhos uma espécie de procissão cósmica, que parte do céu povoado de anjos, onde também bri-lham o sol, a lua e as estrelas. Lá de cima Deus derrama sobre a terra o dom das águas que estão acima dos céus (cf. v. 60), isto é, as chuvas e a brisa matinal (cf. v. 64).

Contudo, eis que começam também a soprar os ventos, a explodir os relam-pagos e a irromper as estações com o calor e com o gelo, com o fervor do verão, mas também com a geada, o gelo, a neve (cf. vv. 65-70.73). O poeta insere no cântico de louvor ao Criador também o ritmo do tempo, o dia e a noite, a luz e as trevas (cf. vv. 71-72). No final o olhar poisa também sobre a terra, partindo dos cumes dos montes, realidades que parecem unir terra e céu (cf. vv. 74-75).

Eis que então se unem no louvor a Deus as criaturas vegetais que germinam na terra (cf. v. 76), as nascentes que trazem vida e frescor, os mares e os rios com as suas águas abundantes e misteriosas (cf. vv. 77-78). De facto, o can-tor evoca também "os monstros marinhos" ao lado dos peixes (cf. v. 79), co-mo sinal do caos aquático primordial ao qual Deus impôs regras para serem observadas (cf. Sl 3-4; Job 38, 8-11; 40, 15; 41, 26).

Depois é a vez do grande e variado reino animal, que vive e se move nas águas, na terra e nos céus (cf. Dn 3, 80-81).

4. O último actor da criação que entra na cena é o homem. Primeiro, o olhar alarga-se a todos os "filhos do homem" (cf. v. 82); depois, a atenção con-centra-se em Israel, o povo de Deus (cf. v. 83); a seguir, é a vez de quantos se consagraram totalmente a Deus não só como sacerdotes (cf. v. 84), mas também como testemunhas de fé, de justiça e de verdade. São os "servos do Senhor", os "espíritos e as almas dos justos", os "mansos e humildes de co-ração" e, entre eles, sobressaem os três jovens, Ananias, Azarias e Misael, que deram voz a todas as criaturas num louvor universal e perene (cf. vv. 85-88).

Ressoaram constantemente os três verbos da glorificação divina, como nu-ma ladainha: "bendizei, louvai, exaltai" o Senhor. Esta é a alma autêntica da oração e do cântico: celebrar o Senhor sem parar, na alegria de pertencer a um coro que engloba todas as criaturas.

5. Gostaríamos de concluir a nossa meditação dando voz aos Padres da Igre-ja, como Orígenes, Hipólito, Basílio de Cesareia e Ambrósio de Milão, que comentaram a narração dos seis dias da criação (cf. Gn 1, 1-2, 4a) precisa-mente em conexão com o Cântico dos três jovens.

Limitamo-nos a citar o comentário de Santo Ambrósio, o qual, ao referir-se ao quarto dia da criação (cf. Gn 1, 14-19), imagina que a terra fala e, ao fa-lar sobre o sol, encontra todas as criaturas unidas no louvor a Deus: "Bom é deveras o sol, porque serve, ajuda a minha fecundidade, alimenta os meus frutos. Ele foi-me dado para o meu bem, está submetido comigo às can-seiras. Geme comigo, para que chegue a adopção dos filhos e a redenção do género humano, para que possamos ser, também nós, libertados da escravi-dão. Ao meu lado, juntamente comigo louva o Criador, juntamente comigo eleva um hino ao Senhor nosso Deus. Onde o sol bendiz, ali bendiz a terra, bendizem as árvores de fruto, bendizem os animais, bendizem comigo as aves" (Os seis dias da criação, SAEMO, I, Milão-Roma 1977-1994, págs. 192-193).

Ninguém é excluído da bênção do Senhor, nem sequer os monstros do mar (cf. Dn 3, 79). Com efeito, Santo Ambrósio prossegue: "Até as serpentes louvam o Senhor, porque a sua natureza e o seu aspecto revelam aos nossos olhos alguma beleza e mostram ter a sua justificação" (Ibid., págs. 103-104).

Com mais razão nós, seres humanos, devemos acrescentar a este concerto de louvor a nossa voz feliz e confiante, acompanhada por uma vida coerente e fiel.
(10 de julho de 2002)

Cântico de Daniel (3,52-57)
Todas as criaturas louvem ao Senhor

1. "Os três jovens então não tiveram senão uma só voz para louvar, glori-ficar e bendizer a Deus, na fornalha" (Dn 3, 51). Esta frase introduz o Cânti-co solene que agora acabamos de ouvir num seu fragmento fundamental. Ele encontra-se no Livro de Daniel, na parte que chegou até nós só em lín-gua grega, e é entoado por testemunhas corajosas da fé, que não quiseram ajoelhar-se para adorar a estátua do rei e preferiram enfrentar uma morte trágica, o martírio na fornalha ardente.

São três jovens hebreus, situados pelo autor sagrado no contexto histórico do reino de Nabuconodosor, o terrível soberano da Babilónia que aniquilou a cidade santa de Jerusalém em 586 a.C. e deportou os Israelitas "para as margens dos rios da Babilónia" (cf. Sl 136). Mesmo no perigo extremo, quando as chamas já atingem os seus corpos, eles encontram a força para "louvar, glorificar e bendizer a Deus" com a certeza de que o Senhor da criação e da história não os abandonará à morte e ao nada.

2. O autor bíblico, que escreveu alguns séculos mais tarde, recorda este he-róico acontecimento para estimular os seus contemporâneos a manterem al-to o estandarte da fé durante as perseguições dos reis sírio-helénicos do se-gundo século a. C. É precisamente naquela época que se regista a corajosa reacção dos Macabeus, combatentes pela liberdade da fé e da tradição he-braica.

O cântico, tradicionalmente chamado "dos três jovens", assemelha-se a uma chama que ilumina a obscuridade do tempo da opressão e da perseguição, um tempo que se repetiu muitas vezes na história de Israel e na própria his-tória do cristianismo. E nós sabemos que o perseguidor nem sempre assume o rosto violento e macabro do opressor, mas com frequência apraz-se em issolar o justo, com o engano e a ironia, perguntando-lhe sarcasticamente: "Onde está o teu Deus?" (Sl 41, 4.11).

3. No louvor que os três jovens elevam, do crisol da sua prova, ao Senhor Omnipotente estão incluídas todas as criaturas. Eles tecem uma espécie de tapeçaria multicolor onde brilham os astros, passam as estações, se movem os animais, se aproximam os anjos e, sobretudo, onde cantam os "servos do Senhor", os "piedosos" e os "humildes de coração" (cf. Dn 3, 85.87).

O trecho que há pouco foi proclamado precede esta magnífica recordação de todas as criatuas. Constitui a primeira parte do Cântico que, por sua vez, recorda a presença gloriosa do Senhor, transcendente mas próxima. Sim, porque Deus está no céu, onde "penetra com o olhar os abismos" (cf. 3, 35), mas também se encontra "no templo santo e glorioso" de Sião (cf. 3, 53). Ele está sentado no "trono do seu reino" eterno e infinito (cf. 3, 54), mas é também aquele que está "sentado sobre os querubins" (cf. 3, 55), na arca da aliança colocada no Santo dos Santos do templo de Jerusalém.

4. Um Deus acima de nós, capaz de nos salvar com o seu poder; mas tam-bém um Deus próximo do seu povo, no meio do qual Ele quis habitar no seu "templo santo e glorioso", manifestando assim o seu amor. Um amor que Ele revelará em plenitude fazendo "habitar entre nós", o seu Filho Jesus Cristo "cheio de graça e de verdade" (cf. Jo 1, 14). Ele revelará em plenitu-de o seu amor enviando-nos o Filho para partilhar em tudo, excepto o peca-do, a nossa condição marcada pelas provações, opressões, solidão e morte.
O louvor dos três jovens ao Deus Salvador continua de várias formas na Igreja. Por exemplo, São Clemente Romano, no final da sua Carta aos Co-ríntios, insere uma longa oração de louvor e confiança, completamente cheia de reminiscências bíblicas e na qual ressoa a antiga liturgia romana. É uma oração de gratidão ao Senhor que, não obstante o aparente triunfo do mal, leva a história a bom termo.

5. Eis um trecho dessa oração:

"Tu abriste os olhos do nosso coração (cf. Rf 1, 18) / para que te conhe-cêssemos a ti, o Único (cf. Jo 17, 3) / Altíssimo no mais alto dos céus / o Santo que repousa entre os santos / que humilhas a violência dos soberbos (cf. Is 13, 11) / que desfazes os desígnios dos povos (cf. Sl 32, 10) / que exaltas os humildes / e abates os soberbos (cf. Job 5, 11). / Tu que enri-queces e empobreces / que matas e dás a vida (cf. Dt 32, 39) / o único bem-feitor dos espíritos / e Deus de todos os homens / que perscrutas os abismos (cf. Dn 3, 55) / que observas as obras humanas / que socorres quantos se en-contram em perigo / e salvas os dispersos (cf. Jdt 9, 11) / criador e guarda de todos os espíritos / que multiplicas os povos sobre a terra / e que, entre todos, escolheste os que te amam / por meio de Jesus Cristo / o teu Filho muito amado / mediante o qual nos instruístes, nos santificastes e nos hon-rastes" (Clemente Romano, Carta aos Coríntios, 59, 3: Os Padres apostóli-cos, Roma 1976, pp. 88-89).
(19 de fevereiro de 2003)

Cântico de Habacuc (3,2-4.13a.1-19a)
Deus vem para julgar

"Senhor, ouvi a tua mensagem,/ temo, Senhor, a tua obra! / Em nosso tempo faze revivê-la, em nosso tempo manifesta-a, na cólera lembra-te de ter compaixão!" (Hab 3,2)

1. A Liturgia das Laudes propõe-nos uma série de cânticos bíblicos de pro-funda intensidade espiritual, para acompanhar a oração fundamental dos Salmos. Hoje ouvimos um exemplo tirado do terceiro e último capítulo do livro de Habacuc. Este profeta viveu nos finais do século XII a.C., quando o reino de Judá se sentia esmagado entre duas superpotênctias que se expan-diam, por um lado o Egipto e, por outro, a Babilónia.

Contudo, muitos estudiosos consideram este hino final como uma citação. Por conseguinte, no apêndice ao breve escrito de Habacuc encontra-se um verdadeiro e próprio cântico litúrgico, "em tom de lamentação" que deve ser acompanhado por "instrumentos de corda", como dizem duas notas coloca-das no início e no final do Cântico (cf. Hab 3, 1.19b). A Liturgia das Lau-des, no prosseguimento da antiga oração de Israel, convida-nos a transfor-mar em cântico cristão esta composição, escolhendo alguns dos seus versí-culos mais significativos (cf. vv. 2-4.13a.15-19a).

2. O hino, que revela também uma notável força poética, apresenta uma grandiosa imagem do Senhor (cf. vv. 3-4). A sua figura domina solenemen-te todo o cenário do mundo e o universo é percorrido por um estremecimen-to perante o seu andar solene. Ele prossegue do sul, de Teman e do monte Faran (cf. v. 3), isto é, da zona do Sinai, sede da grande epifania reveladora de Israel. Também no Salmo 67 se descreve "o Senhor que vém do Sinai ao Santuário" de Jerusalém (cf. v. 18). O seu aparecimento, de acordo com uma constante da tradição bíblica, está circundado de luz (cf. Hab 3, 4).

É uma irradiação do seu mistério transcendente mas que se comunica à hu-manidade: de facto, a luz está fora de nós, não a podemos prender ou parar; contudo ela envolve-nos, ilumina-nos e aquece-nos. Assim é Deus, distante e próximo, não se pode prender mas está ao nosso lado, ou melhor, sempre pronto para estar connosco e em nós. Quando se revela a sua majestade, a terra responde com um coro de louvor: é a resposta cósmica, uma espécie de oração à qual o homem dá voz.

A tradição cristã viveu esta experiência interior não só no âmbito da espiri-tualidade pessoal, mas também em audaciosas criações artísticas. Pondo de lado as majestosas catedrais da Idade Média, mencionamos sobretudo a arte do oriente cristão com os seus admiráveis ícones e com as geniais arquitec-turas das suas igrejas e dos seus mosteiros.

A respeito disto, a Igreja de Santa Sofia de Constantinopla é uma espécie de arquétipo no que se refere à demarcação do espaço da oração cristã, na qual a presença e a incapacidade de conter a luz permitem sentir tanto a intimi-dade como a transcendência da realidade divina. Ele penetra toda a comu-nidade orante até à profundidade dos ossos e, ao mesmo tempo, convida-a a ultrapassar-se a si mesma para se imergir completamente na inefabilidade do mistério. São também significativas as propostas artísticas e espirituais, que caracterizam os mosteiros daquela tradição cristã. Naqueles verdadeiros e próprios espaços sagrados e o pensamento dirige-se imediatamente para o Monte Athos o tempo contém em si um sinal da eternidade. O mistério de Deus manifesta-se e esconde-se naqueles espaços através da oração contí-nua dos monges e dos eremitas, que sempre foram considerados semelhan-tes aos anjos.

3. Mas voltemos ao Cântico do profeta Habacuc. Para o autor sagrado a en-trada do Senhor no mundo tem um significado bem determinado. Ele quer entrar na história da humanidade, "no decorrer dos anos", como se repete por duas vezes no versículo 2, para julgar e melhorar esta vicissitude, que nós conduzimos de maneira tão confusa e, muitas vezes, pervertida.

Então, Deus mostra a sua indignação (cf. v. 2c) contra o mal. E o cântico faz referência a uma série de intervenções divinas inexoráveis, mesmo sem especificar se se trata de acções directas ou indirectas. Recorda-se o Êxodo de Israel, quando a cavalaria do Faraó foi afundada no mar (cf. v. 15). Mas faz-se aparecer também a perspectiva da obra que o Senhor está para reali-zar em relação ao novo opressor do seu povo. A intervenção divina é descri-ta de maneira quase "visível" através de uma série de imagens agrícolas: "Porque então a figueira não brotará; nulo será o produto das vinhas, faltará o fruto da oliveira, e os campos não darão de comer. Não haverá mais ove-lhas no aprisco, nem bois nos estábulos" (v. 17). Tudo o que é sinal de paz e de fertilidade é eliminado e o mundo mostra-se como um deserto. Esta é a imagem querida a outros profetas (cf. Jer 4, 19-26; 12, 7-13; 14, 1-10), para ilustrar o juízo do Senhor que não é indiferente perante o mal, a opressão e a injustiça.

4. Face à irrupção divina, o orante fica aterrorizado (cf. Hab 3, 16), tudo é um frémito, sente-se o esvaziar da alma, é atingido pelo tremor, porque o Deus da justiça é inefável, de maneira muito diferente dos juízes da terra.

Mas a entrada do Senhor tem também outra função, que o nosso cântico e-xalta com alegria. De facto, ele na sua indignação não se esquece da cle-mência compassiva (cf. v. 2). Ele sai do horizonte da sua glória não só para destruir a arrogância dos ímpios, mas também para salvar o seu povo e o seu consagrado (cf. v. 13), isto é, Israel e o seu rei. Ele também deseja ser libertador dos oprimidos, fazer desabrochar a esperança no coração das vítimas, iniciar uma nova era de justiça.

5. Por isso o nosso cântico, apesar de estar assinalado pelo "tom de lamen-to", transforma-se num hino de alegria. De facto, as calamidades anunciadas têm por finalidade a libertação dos oprimidos (cf. v. 15). Por isso, elas dão origem à alegria do justo que exclama: "Eu, porém, exultarei no Senhor, alegrar-me-ei em Deus, meu Salvador" (v. 18). A mesma atitude é sugerida por Jesus aos seus discípulos no tempo dos cataclismas apocalípticos: "Quando estas coisas começarem a acontecer, cobrai ânimo e levantai as vossas cabeças, porque a vossa libertação está próxima" (Lc 21, 28).

No cântico de Habacuc é muito bonito o versículo final, que exprime a sere-nidade readquirida. O Senhor é definido como fizera David no Salmo 17 não só como "a força" do seu fiel, mas também como aquele que lhe dá agi-lidade, vigor, serenidade nos perigos. David cantava: "Eu vos amo, Senhor, minha força... Ele iguala os meus pés aos do veado, e mantém-me de pé nas alturas" (Sl 17, 2.34). Agora o nosso cantor exclama: "O Senhor Deus é a minha força, Ele torna os meus pés ágeis como os da corça, e faz-me cami-nhar nas alturas" (Hab 3, 19). Quando o Senhor está ao nosso lado, já não se receiam os pesadelos nem os obstáculos, mas prossegue-se o caminho da vi-da, apesar de ser áspero, com um andar leve e com alegria.
(15 de maio de 2002)


Cântico do Benedictus (Lc 1,68-79)

1. Tendo chegado ao fim do longo itinerário no âmbito dos Salmos e dos Cânticos da Liturgia das Laudes, queremos meditar sobre aquela oração que, todas as manhãs, marca o momento orante das Laudes. Trata-se do Be-nedictus, o Cântico entoado pelo pai de João Baptista, Zacarias, quando o nascimento daquele filho tinha mudado a sua vida, afastando a dúvida que o tinha tornado mudo, uma significativa punição pela sua falta de fé e de lou-vor.

Mas agora, Zacarias pode celebrar Deus que salva e fá-lo com este hino, narrado pelo evangelista Lucas de uma forma que, sem dúvida, reflecte o uso litúrgico no âmbito das primeirras comunidades cristãs (cf. Lc 1, 68-79).

O mesmo evangelista define-o como um cântico profético, que se abre atra-vés do sopro do Espírito Santo (cf. 1, 67). De facto, encontramo-nos diante de uma bênção que proclama as acções salvíficas e a libertação oferecida pelo Senhor ao seu povo. Por conseguinte, a leitura "profética" da história, isto é, a descoberta do sentido íntimo e profundo de toda a vicissitude hu-mana, orientada pela mão escondida mas laboriosa do Senhor, que se entre-laça com a mais frágil e incerta do homem.

2. O texto é solene e, no original grego, compõe-se unicamente por duas fra-ses (cf. vv. 68-75; 76-79). Depois da introdução, marcada pela bênção de louvor, podemos identificar no corpo do Cântico quase três estrofes, que exaltam igual número de temas, destinados a marcar toda a história da sal-vação: a aliança davídica (cf. vv. 68-71), a aliança abraâmica (cf. vv. 72-75), e o Baptista que nos introduz na nova aliança em Cristo (cf. vv. 76-79). De facto, toda a oração tende para aquela meta que David e Abraão indi-cam com a sua presença.

O vértice encontra-se precisamente numa frase quase conclusiva: "Visitar-nos-á a luz do alto" (cf. v. 78). A expressão, à primeira vista paradoxal com o facto de unir "o alto" e o "surgir", na realidade é significativa.

3. Com efeito, no original grego o "sol que surge" é anatolè, uma palavra que em si significa tanto a luz solar que brilha no nosso planeta, como o re-bento que nasce. As duas imagens na tradição bíblica têm um valor mês-siânico.

Por um lado, Isaías recorda-nos, falando do Emanuel, que "o povo que an-dava nas trevas viu uma grande luz; habitavam numa terra de sombras, mas uma luz brilhou" (9, 1). Por outro lado, referindo-se ainda ao rei Emanuel, representa-o como "um rebento que brotou do tronco de Jessé", isto é, da di-nastia davídica, um rebento envolvido pelo Espírito de Deus (cf. Is 11, 1-2).
Por conseguinte, com Cristo surge a luz que ilumina todas as criaturas (cf. Jo 1, 9) e floresce a vida, como dirá o evangelista João unindo precisamente estas duas realidades: "N'Ele estava a Vida e a Vida era a luz dos homens" (1, 4).

4. A humanidade que está envolvida "nas trevas e na sombra da morte" é iluminada por este esplendor de revelação (cf. Lc 1, 79). Como anunciara o profeta Malaquias, "para vós que temeis o Meu nome brilhará o sol de justi-ça" (3, 20). Este sol "guiará os nossos passos no caminho da paz" (Lc 1, 79).
Movamo-nos então, tendo como ponto de referência aquela luz; e os nossos passos incertos, que durante o dia muitas vezes se desviam por caminhos obscuros e perigosos, são amparados pela luz da verdade que Cristo difunde no mundo e na história.

A este ponto, queremos citar as palavras de um mestre da Igreja, um dos seus Doutores, o britânico Beda, o Venerável ( séc. VII-VIII ) que na sua Homilia para o nascimento de São João Baptista, comentava assim o Cânti-co de Zacarias: "O Senhor... visitou-nos como um médico visita os doentes, porque para curar a enfermidade arreigada da nossa soberba, ofereceu-nos o novo exemplo da sua humildade; redimiu o seu povo, porque nos libertou com o preço do nosso sangue a nós que nos tínhamos tornado servos do pe-cado e escravos do antigo inimigo... Cristo encontrou-nos quando jazíamos "nas trevas e na sombra da morte", ou seja, oprimidos pela longa cegueira do pecado e da ignorância... Trouxe-nos a luz verdadeira do seu conheci-mento e, afastou as trevas do erro, mostrou-nos o caminho seguro para a pá-tria celeste. Dirigiu os passos das nossas obras para fazer com que andás-semos pelo caminho da verdade, que nos mostrou, e para nos fazer entrar na casa da paz eterna, que nos prometeu".

5. Por fim, inspirando-se noutros textos bíblicos, o Venerável Beda concluía da seguinte forma, dando graças pelos dons recebidos: "Dado que possuí-mos estes dons da bondade eterna, irmãos caríssimos..., bendizemos tam-bém nós o Senhor em todos os tempos (cf. Sl 33, 2), porque "visitou e redi-miu o seu povo". Esteja sempre nos nossos lábios o seu louvor, conserve-mos a sua recordação e, por nosso lado, proclamamos a virtude daquele que "nos chamou das trevas para a Sua luz admirável" (1 Pd 2, 9). Pedimos con-tinuamente a sua ajuda, para que conserve em nós a luz do conhecimento que nos trouxe, e nos conduza até ao dia da perfeição" (Homilias sobre o Evangelho, Roma 1990, págs. 464-465).
(1 de outubro de 2003)












Apêndice


I Semana

D- Sal 62,2-9
Dan 3,57-88.56
Sal 149

II–Sal 5,2-10.12-13
ICro 29,10-13
Sal 28

III-Sal 23
Tob 13,1-10
Sal 32

IV-Sal 35
Jud 16,2-3.13-15
Sal 46

V –Sal 56
Jer 31,10-14
Sal 47

VI-Sal 50
Is 45,15-25
Sal 99

Sa-Sal 118,145-152
Ex 15,1-4.8-13.17-18
Sal 116





















II Semana

D- Sal 117
Dan 3,52-57
Sal 150

II- Sal 41
Sir 36,1-7.13-16
Sal 18A

III- Sal 42
Is 38,10-14.17-20
Sal 64

IV-Sal 76
ISam 2,1-10
Sal 96

V- Sal 79
Is 12,1-6
Sal 80

VI- Sal 50
Hab 3,2-4.13.15-19
Sal 147

Sa- Sal 91
Deut 32,1-12
Sal 8





















III Semana

D- Sal 92
Dan 3,57-88.56
Sal 148

II- Sal 83
Is 2,2-5
Sal 95

III- Sal 84
Is 26,1-4.7-9.12
Sal 66

IV-Sal 85
Is 33,13-16
Sal 97

V- Sal 86
Is 40,10-17
Sal 98

VI- Sal 50
Jer 14,17-21
Sal 99

Sa- Sal 118,145-152
Sab 9,1-6.9-11
Sal 116





















IV Semana

D- Sal 117
Dan 3,52-57
Sal 150

II- Sal 89
Is 42,10-16
Sal 134,1-12

III- Sal 100
Dan 3,26-27.29.34-41
Sal 143,1-10

IV-Sal 107
Is 61,1-10-62,5
Sal 145

V- Sal 142,1-11
Is 66,10-14a
Sal 146

VI- Sal 50
Tob 13,10-15.17-19
Sal 147

Sa- Sal 91
Ez 36,24-28
Sal 8


Indice

Salmos e Cânticos das Laudes 1
por João Paulo II 1
Introdução 3
Os Salmos na Tradição da Igreja 3
A Liturgia das Horas, oração da Igreja 5
Salmos 9
Salmo 5 9
A oração da manhã para obter a ajuda do Senhor 9
Salmo 8 11
A grandeza do Senhor e a dignidade do homem 11
Salmo 8 13
Grandeza do Senhor e dignidade do homem 13
Salmo 14 16
A alegria dos que entram no templo 16
Salmo 18 18
Hino a Deus criador 18
Salmo 23 21
O Senhor entra no seu templo 21
Salmo 28 23
O Senhor proclama solenemente a sua palavra 23
Salmo 32 25
Hino à providência de Deus 25
Salmo 35 28
Malícia do pecador, bondade do Senhor 28
Salmo 41 30
Anseio pelo Senhor e pelo seu Templo 30
Salmo 42 32
Desejo do Templo de Deus 32
Salmo 46 35
O Senhor é o rei do universo 35
Salmo 47 37
Acção de graças pela salvação do povo 37
Salmo 50 40
Senhor, tende piedade de mim 40
Salmo 50 42
Senhor, tende piedade de mim! 42
Salmo 50 45
Tende piedade de mim, ó Senhor! 45
Salmo 50 47
Tende piedade de mim, Senhor 47
Salmo 56 49
A prece matutina no sofrimento 49
Salmo 62 51
A alma sedenta do Senhor 51
Salmo 64 54
A alegria das criaturas de Deus pela Sua providência 54
Salmo 66 56
Todos os povos glorifiquem o Senhor 56
Salmo 76 59
Deus renova os prodígios do seu amor 59
Salmo 79 61
Visitai, Senhor, a vossa vinha 61
Salmo 80 63
Solene convite a renovar a Aliança 63
Salmo 83 65
Desejo do templo do Senhor 65
Salmo 84 68
A nossa salvação está próxima 68
Salmo 85 70
Oração a Deus na aflição 70
Salmo 86 73
Jerusalém, mãe de todos os povos 73
Salmo 89 75
Desça sobre nós a bondade do Senhor 75
Salmo 91 77
Louvor ao Senhor criador 77
Salmo 91 80
Louvor ao Senhor Criador 80
Salmo 92 82
O poder de Deus Criador 82
Salmo 95 85
Deus é rei e juiz do universo 85
Salmo 97 87
A vitória do Senhor na sua vinda final 87
Salmo 97 89
A glória do Senhor no juízo 89
Salmo 98 92
Santo é o Senhor nosso Deus 92
Salmo 99 94
A alegria dos que entram no templo 94
Salmo 99 96
A alegria dos que entram no templo 96
Salmo 100 98
Programa de um rei fiel a Deus 98
Salmo 107 100
Louvor a Deus e pedido de auxílio 100
Salmo 116 102
Convite a louvar a Deus pelo seu amor 102
Salmo 116 105
Convite a louvar a Deus pelo seu amor 105
Salmo 117 107
Cântico de alegria e de vitória 107
Salmo 117 109
Cântico de alegria e de vitória 109
Salmo 118 111
Promessa de observar a lei de Deus 111
Salmo 118 113
Promessa de observar a lei de Deus 113
Salmo 134 115
Louvai ao Senhor que faz maravilhas 115
Salmo 135 118
A paz, "novidade" imersa na história da Páscoa de Cristo 118
Salmo 142 119
A oração na tribulação 119
Salmo 143 122
A oração do rei pela vitória e a paz 122
Salmo 145 124
Feliz quem espera no Senhor 124
Salmo 146 126
O poder e a bondade do Senhor 126
Salmo 147 128
A Jerusalém reconstruída 128
Salmo 147 131
A Jerusalém reconstruída 131
Salmo 148 133
Glorificação de Deus Senhor e Criador 133
Salmo 149 136
Festa dos amigos de Deus 136
Salmo 150 138
Todo o ser vivo louve o Senhor 138
Salmo 150 141
Todos os seres vivos louvem ao Senhor 141
Cânticos 144
Cântico do Êxodo (15,1-18) 144
Hino de vitória pela travessia do Mar Vermelho 144
Cântico do Deuteronômio (31,30-32,12) 146
Os benefícios de Deus a favor do povo 146
Cântico de Ana (I Sam 2,1-5) 149
A alegria e a esperança dos humildes encontra-se em Deus 149
Cântico I Crónicas (29,10-13) 151
"Só a Deus a honra e a glória" 151
Cântico de Tobias (13) 153
Deus castiga e salva 153
Cântico de Tobias (13) 156
Acção de graças pela libertação do povo 156
Cântico de Judite (16,1-17) 158
O Senhor é criador do mundo e protege o seu povo 158
Cântico da Sabedoria (9,4-10) 160
Dai-me, Senhor, a sabedoria 160
Cântico do Eclesiástico (36) 162
Oração pelo povo santo de Deus 162
Cântico de Isaías (2) 165
A nova cidade de Deus, centro de toda a humanidade 165
Cântico de Isaías (12,1-6) 167
Exultação do povo redimido 167
Cântico de Isaías (26) 169
O hino depois da vitória 169
Cântico de Isaías (33) 172
Deus julgará com justiça 172
Cântico de Isaías (38) 174
As angústias de um moribundo a alegria de um restabelecido 174
Cântico de Isaías (40,10-17) 177
O Bom Pastor: o Deus Altíssimo e Sapientíssimo 177
Cântico de Isaías (42,10-16) 179
Hinos ao Senhor vitorioso e salvador 179
Cântico de Isaías (45,15-25) 181
Todos os povos se convertam ao Senhor 181
Cântico de Isaías (61,10-62,5) 184
Júbilo do profeta pela nova Jerusalém 184
Cântico de Isaías (66,10-14) 186
Consolação e alegria na cidade de Deus 186
Cântico de Jeremias (14,17-21) 188
A lamentação do povo em tempos de fome e de guerra 188
Cântico de Jeremias (31) 191
Deus liberta e reúne o seu povo na alegria 191
Cântico de Daniel (3,26-27.29.34-41) 193
Oração de Azarias na fornalha 193
Cântico de Ezequiel (36) 195
Deus renovará o seu povo 195
Cântico de Daniel (3,52-57) 198
Toda a criatura louve ao Senhor 198
Cântico de Daniel (3,52-57) 200
Todas as criaturas louvem ao Senhor 200
Cântico de Daniel (3) 202
Todas as criaturas louvem ao Senhor 202
Cântico de Daniel (3,52-57) 205
Todas as criaturas louvem ao Senhor 205
Cântico de Habacuc (3,2-4.13a.1-19a) 207
Deus vem para julgar 207
Cântico do Benedictus (Lc 1,68-79) 210
Apêndice 213
Indice 214

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