"Muito obrigado" - os três níveis da gratidão
Dizíamos que a limitação do conhecimento humano reflete-se na linguagem: não podemos expressar o que as coisas são, na medida em que não sabemos completamente o que elas são. Além do mais, muitas vezes, uma palavra acentua originariamente só um dentre os muitos aspectos que a realidade designada oferece. E pode ocorrer que, com o passar do tempo, essa realidade mude, evolua substancialmente a ponto de perder a conexão com o étimo da palavra, que permanece a mesma. Isto não nos choca, pois, no uso quotidiano, as palavras vão perdendo transparência: falamos em salada de frutas porque envolve mistura e nem notamos que salada deriva de sal. Do mesmo modo, o barbeiro, hoje em dia, quase já não faz barbas, mas cortes de cabelo; como também o tintureiro já não tinge, mas só lava; o garrafeiro compra jornais velhos e muito poucas garrafas; o chauffeur não aquece, mas dirige o carro; e nem nos lembraríamos de associar funileiro a funil.
Se essas incompatibilidades não nos causam
estranheza é porque a linguagem tornou-se opaca para nós: dizemos colar, colarinho,
coleira, torcicolo e tiracolo e não reparamos em que derivam de colo, pescoço (daí que
seja incompreensível, à primeira vista, a expressão "sentar no colo").
Essas considerações são importantes
preliminares ao estudo da gratidão e das formulações que ela recebe nas diversas
línguas. Tomás ensina que a gratidão é uma realidade humana complexa (e daí também o
fato de que sua expressão verbal seja, em cada língua, fragmentária: este ou aquele
aspecto-gancho é o acentuado): "A gratidão se compõe de diversos graus. O primeiro
consiste em reconhecer (ut recognoscat) o benefício recebido; o segundo, em louvar
e dar graças (ut gratias agat); o terceiro, em retribuir (ut retribuat) de
acordo com suas possibilidades e segundo as circunstâncias mais oportunas de tempo e
lugar" (II-II, 107, 2, c).
Este ensinamento, aparentemente tão simples,
pode ser reencontrado nos diferentes modos de que as diversas línguas se valem para
agradecer: cada uma acentuando um aspecto da multifacética realidade da gratidão.
Algumas línguas expressam a gratidão, tomando-a no primeiro nível: expressando mais
nitidamente o reconhecimento do agraciado. Aliás reconhecimento (como reconnaissance
em francês) é mesmo um sinônimo de gratidão. Neste sentido, é interessantíssimo
verificar a etimologia: na sabedoria da língua inglesa to thank (agradecer) e to
think (pensar) são, em sua origem, e não por acaso, a mesma palavra. Ao definir a
etimologia de thank o Oxford English Dictionnary é claro: "The primary
sense was therefore thought"(6). E, do mesmo modo, em
alemão, zu danken (agradecer) é originariamente zu denken (pensar). Tudo
isto, afinal, é muito compreensível, pois, como todo mundo sabe, só está
verdadeiramente agradecido quem pensa no favor que recebeu como tal. Só é agradecido
quem pensa, pondera, considera a liberalidade do benfeitor. Quando isto não acontece,
surge a justíssima queixa: "Que falta de consideração!"(7).
Daí que S. Tomás - fazendo notar que o máximo negativo é a negação do grau ínfimo
positivo (a última à direita de quem sobe é a primeira à esquerda de quem desce...) -
afirme que a falta de reconhecimento, o ignorar é a suprema ingratidão(8):
"o doente que não se dá conta da doença não quer se curar"(9).
A expressão árabe de agradecimento shukran,
shukran jazylan situa-se diretamente naquele segundo nível: o de louvor do
benfeitor e do benefício recebido. Já a formulação latina de gratidão, gratias ago,
que se projetou no italiano, no castelhano (grazie, gracias) e no francês (merci,
mercê)(10) é relativamente complexa. Tomás diz (I-II, 110, 1) que
seu núcleo, graça comporta três dimensões: 1) obter graça, cair na graça, no
favor, no amor de alguém que, portanto, nos faz um benefício; 2) graça indica também
dom, algo não devido, gratuitamente dado, sem mérito por parte do beneficiado; 3) a
retribuição, "fazer graças", por parte do beneficiado. No tratado De Malo
(9,1), acrescenta-se um quarto significado de gratias agere: o de louvor; quem
considera que o bem recebido procede de outro, deve louvar.
No amplo quadro que expusemos - o das
expressões de gratidão em inglês, alemão, francês, castelhano, italiano, latim e
árabe - ressalta o caráter profundíssimo de nossa forma: "obrigado"(11).
A formulação portuguesa, tão encantadora e singular, é a única a situarse,
claramente, naquele mais profundo nível de gratidão de que fala Tomás, o terceiro (que,
naturalmente, engloba os dois anteriores): o do vínculo (ob-ligatus), da
obrigação, do dever de retribuir. Podemos, agora, analisar a riqueza de sugestões que
se encerra também na forma japonesa de agradecimento(12). Arigatô
remete aos seguintes significados primitivos: "a existência é difícil",
"é difícil viver", "raridade", "excelência (excelência da
raridade)". Os dois últimos sentidos acima são compreensíveis: num mundo em que a
tendência geral é a de cada um pensar em si, e, quando muito, regularem-se as relações
humanas pela estrita e fria justiça, a excelência e a raridade salientam-se como
característica do favor. Mas, "dificuldade de existir" e "dificuldade de
viver", à primeira vista, nada teriam que ver com o agradecimento. No entanto, S.
Tomás ensina (II-II, 106, 6) que a gratidão deve - ao menos na intenção - superar o
favor recebido. E que há dívidas por natureza insaldáveis: de um homem em relação a
outro, seu benfeitor, e sobretudo em relação a Deus: "Como poderei retribuir ao
Senhor - diz o Sl. 115 - por tudo o que Ele me tem dado?". Nessas situações de
dívida impagável - tão freqüentes para a sensibilidade de quem é justo - o homem
agradecido sente-se embaraçado e faz tudo o que está a seu alcance (quid-quid potest),
tendendo a transbordar-se num excessum que se sabe sempre insuficiente(13)
(cfr. III, 85, 3 ad 2). Arigatô aponta assim para o terceiro grau de gratidão,
significando a consciência de quão difícil se torna a existência (a partir do momento
em que se recebeu tal favor, imerecido e, portanto, se ficou no dever de retribuir, sempre
impossível de cumprir...).
Retirado de :http://hottopos.com/notand1/antropologia_e_formas_quotidiana.htm
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